quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Morrer em Santa Maria


Como não há desfecho possível, o circo depravado da mídia
percorre sua própria fita de Moebius, voraz e desorientado,
dando voltas e mais voltas sem chegar a lugar algum.

     Não se fala em mais nada. Não se pensa em mais nada. Não se discute mais nada.
     E talvez seja o momento em que o silêncio se faz mais necessário.
     Paradoxalmente, diante do indizível, parece que todo mundo tem algo a dizer. Ou a gritar, porque nessas horas a histeria mostra todos os seus dentes.
     O seu filho/vizinho/namorado/irmão/primo/melhor amigo sai para uma balada e diz "até amanhã, porque vou chegar tarde e você vai estar dormindo". E da próxima vez que você o vê, ele está carbonizado ou num saco plástico e não é mais uma pessoa, é um número, uma estatística, um nome citado numa reportagem de televisão. E enquanto você tenta assimilar que uma parte sua também morreu em Santa Maria, um repórter imbecil enfia o microfone na sua cara e pergunta "como você está se sentindo?"
     E porque mais de 200 jovens morreram e é preciso racionalizar o que, no fundo, não tem sentido, a tragédia é destrinchada, revirada, dissecada e analisada por "especialistas" que, até o dia anterior, nunca tinham visto nada igual. E o sono da razão gera os monstros de sempre.
     Mas não há o que explique. As causas podem ser encontradas. A falha, as falhas. Mas isso não consola, não esclarece e, principalmente, não dá ao drama o desfecho que permite superá-lo. É isso o que se busca: a conclusão, o final. E ele não existe.
     Como o desfecho não é possível, o circo midiático percorre sua própria fita de Moebius, voraz e desorientado, sem chegar a lugar algum. Diante do vazio que se segue à tragédia, só resta aos jornais e à televisão repetir o fato ad aeternum et ad nauseam, realimentando-se dele como se fosse o fígado de Prometeu. Não explica, não justifica, não redime e não consola. Mas prende a atenção, que é o que interessa.
     Um site divulga as fotos do local após o incêndio; um advogado vocifera num programa de TV, delirando de forma quase ininteligível; um cartunista idiota faz uma charge infeliz e insensível; um jornal relembra "os piores incêndios da história". O sofrimento de parentes e sobreviventes é explorado à exaustão. Não ajuda em nada, mas movimenta as engrenagens desse absurdo teatro do patético. Ou desse patético teatro do absurdo.     
     E a cada notícia vazia, a cada "relato de sobrevivente", a cada "análise de especialista", a tragédia se repete, os mortos morrem outra vez, e aos amigos e parentes, que também morrem de novo, o luto é negado. Em Santa Maria a morte é plural, um gerúndio interminável.
     As autoridades cumprem seu papel no sinistro valdeville. Prometem investigar, empurram a responsabilidade de um para outro, reclamam da politização do fato. E, claro, começam a fiscalizar todas as outras boates do país, como se fosse uma grande novidade o fato de que praticamente todas estão em condições idênticas ou similares às da casa incendiada. A fiscalização, como sempre, não vai dar em nada. Tudo ficará regular pelos próximos meses, até a próxima tragédia - que não ocorrerá numa casa noturna, mas num barco (alguém lembra do Bateau Mouche?), num jogo de futebol, num grande show ou numa igreja. E o ciclo se reiniciará.
     Completando esse circo depravado, os onipresentes desocupados que veem no local do incêndio a Meca do mês fazem sua já tradicional romaria. Acendem velas, levantam cartazes, choram compulsivamente pelos desconhecidos (principalmente se há um repórter por perto), exigem providências das "autoridades", embora não saibam exatamente quais. Eles são uma confraria à parte, uma comunidade imersa em seu próprio mundo, "puxa, eu não te encontrava desde o julgamento dos Nardoni!". Porque, para eles, só há vida na presença da morte.
     E porque a mídia, as autoridades e os desocupados não vivem sem que o sangue corra, porque a história a ser contada precisa ser cheia de som e fúria, é preciso prender os vilões. Mesmo que não haja fundamento jurídico para as prisões, é necessário que a sociedade veja os donos da boate e os membros da banda algemados, atrás das grades. O estardalhaço é fundamental. E como ocorre em toda prisão midiática, o bom senso fica de fora e ninguém pergunta: "Mas e os bombeiros? E o prefeito? E os seguranças que, no início, não deixaram as pessoas saírem da boate? Eles não vão presos? E por que é mesmo que esses outros sujeitos estão presos?" - porque o que vale para Chico deveria valer para Francisco, mas não é assim que as coisas funcionam nessa ópera farsesca.
     É um sórdido cabaré de iniquidades armado em torno das vítimas, que, na sabedoria dos mortos, guardam seu silêncio. Enquanto nós, os vivos, ruidosamente reviramos as cinzas do incêndio, sem nada encontrar, nelas ou em nós.
     Caetano estava certo.
     Nós somos uns boçais.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O Estado Moralista


Myrian Rios: preconceituosa e homofóbica, a deputada
quer "resgatar os valores morais, sociais, éticos e espirituais" da
sociedade.  Dá até medo pensar que valores são esses.


    25 de outubro de 1970, Maracanãzinho, Rio de de Janeiro. No show de encerramento do V Festival Internacional da Canção, o maestro Erlon Chaves, presidente do júri, chocou a plateia e a audiência da TV Globo. Quebrando o clima comportadinho do festival, Erlon entrou no palco de sarongue, acompanhado das sensuais dançarinas da da Banda Veneno. Enquanto cantava Eu também quero mocotó, de Jorge Ben Jor, beijava várias dançarinas. Uma delas tirou-lhe a camisa. Erlon voltou-se para o público e disse: "Em cada beijo que vou dar nelas, estarei beijando todas as mulheres do Maracanãzinho". Mas quando o maestro, negro, começou a beijar as dançarinas - todas loiras - a plateia explodiu numa vaia estrondosa. No dia seguinte, uma segunda-feira, Erlon foi chamado ao SOPS (Serviço de Ordem Política e Social) para se explicar. Foi preso pouco depois. Na sexta-feira daquela semana, o presidente Médici fez um discurso em cadeia nacional, destacando o dever do Estado de salvaguardar "nossas instituições livres e cristãs". No sábado de manhã, 20 mil policiais deram início à maior operação repressiva da história do Rio de Janeiro. O que veio depois, todos sabem.
    16 de janeiro de 2013. O governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, sanciona a Lei 6.394/2013, que institui o "Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Espirituais" no âmbito daquele Estado.
     O texto da lei, que se resume a cinco artigos curtíssimos (quem se interessar pode ler a lei aqui), não tem, a rigor, conteúdo jurídico nenhum - mas é uma carta de intenções muito claras. O parágrafo único do artigo 1º diz que o Programa "deverá envolver diretamente a comunidade escolar, a família, lideranças comunitárias, empresas públicas e privadas, meios de comunicação, autoridades locais e estaduais e as organizações não governamentais e comunidades religiosas, por meio de atividades culturais, esportivas, literárias, mídia, entre outras, que visem a reflexão sobre os valores morais, sociais, éticos e espirituais", e o artigo 2º prevê convênios e parcerias entre o Executivo e a sociedade civil para alcançar os objetivos propostos.
     Na mesma semana, um juiz de Macaé/RJ, mandou recolher das livrarias da cidade todos os exemplares de Cinquenta tons de cinza, Cinquenta tons mais escuros e Cinquenta tons de liberdade, todos da escritora E. L. James, supostamente com o intuito de "preservar as crianças e adolescentes" da cidade, já que os livros, com conteúdo erótico, não estavam lacrados.
     O Rio de Janeiro, portanto, vive um surto moralista promovido pelos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário). É como se o fantasma da ditadura viesse novamente assombrar os cariocas.
     Mais do que simplesmente bizarro, é altamente preocupante que os poderes públicos resolvam decidir, em nome da sociedade, o que é moral e imoral. A Lei 6.394, ao tratar de "resgate de valores morais, sociais, éticos e espirituais", já deixa bem claro que: a) de acordo com o Estado do Rio de Janeiro, esses valores foram perdidos, já que precisam ser "resgatados"; b) cabe ao Estado dizer o que é moral e imoral, o que é ético e antiético; e c) cabe ao Estado (em conjunto com as "comunidades religiosas") determinar quais são os valores espirituais que a sociedade deve seguir.
     A autora do projeto de lei é a deputada Myrian Rios, da bancada evangélica carioca. Em entrevista ao Globo, a deputada afirmou que "infelizmente, a sociedade de uma maneira geral vem cada dia mais se desvencilhando dos valores morais, sociais, éticos e espirituais. Sem esse tipo de valor, tudo é permitido, se perde o conceito de bom e ruim, do certo e errado. Perde-se o critério do que se pode e deve fazer e o que não se pode" (o link para a reportagem do Globo está aqui).
     Então, cabe ao Estado - ou melhor (digo, pior), à Myrian Rios, me dizer o que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode? Mas o que será que é "certo" e "errado" para a deputada? O que pode e o que não pode?
     Em 2011, ao discursar contra uma PEC que alteraria a Constituição carioca, incluindo, dentre os direitos fundamentais, o direito à orientação sexual, Myrian Rios afirmou: "Eu tenho que ter o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa, se for da minha vontade. Digamos que eu tenho duas meninas em casa, seja mãe de duas meninas, e resolva contratar uma babá. E essa babá mostra que a orientação sexual dela é ser lésbica. Se a minha orientação sexual não for essa, for contrária, e eu querer [sic] demiti-la, eu não posso. Eu vou estar enquadrada nessa PEC, como preconceituosa e discriminativa. Ué, são os mesmos direitos. (...) O direito que a babá tem de se manifestar da orientação sexual dela como lésbica, eu tenho como mãe, de não querê-la na minha casa, de ser babá das minhas filhas. Me dá licença? São os mesmos direitos. Com essa PEC, eu vou ter que manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas, e sabe Deus, se ela inclusive não vai cometer a pedofilia com elas. Eu não vou poder fazer nada. Eu não vou poder demiti-la" (leia a notícia aqui).
     Então, para a deputada Myrian Rios (que é, sim, preconceituosa e "discriminativa", com ou sem PEC, alguém faça o favor de avisá-la), há uma clara relação entre a homossexualidade e a pedofilia. De acordo com esse parâmetro, a homossexualidade é "imoral", se insere no "tudo é permitido" criticado pela deputada, e o valor moral da heterossexualidade (com a consequente crítica e repressão ao que não o seja) deve ser resgatado pelo Estado.
     São esses os valores que precisam ser resgatados? É esse o "certo", é isso que "pode"? O perigo dessa mentalidade é claríssimo. O que implica esse "resgate" de valores? O que o Estado pretende fazer para "resgatá-los"?
     A história mostra que todos - todos - os Estados que pretenderam regular a vida "moral" de sua população resultaram em ditaduras. Não há qualquer exceção. Nenhuma. Nem é preciso chegar ao Estado fundamentalista, basta a intenção do controle moral (e o que pode ser a "moral correta" numa sociedade plural?) para que o totalitarismo se instaure.
     O período de maior moralismo da nossa história recente foi - adivinhem? - a fase da ditadura. Enquanto o discurso oficial propagandeava a defesa da moral e dos bons costumes, unhas eram arrancadas nos porões do DOI-CODI. Não por acaso, o golpe de 1964 foi dado 13 dias depois da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", organizada pela Liga das Senhoras Católicas ("Vermelho bom, só o batom!", bradavam as combativas senhorinhas).
     O fato é que não é função do Estado cuidar da moral e da vida espiritual dos cidadãos (como ficam os ateus cariocas nessa história?), pelo menos desde que o Estado se separou da Igreja - e isso já há alguns séculos. O perigo é ainda maior quando esse "dever" cai nas mãos dos moralistas.
     Myrian Rios é uma moralista da pior espécie - evangélica, parece se envergonhar do próprio passado de modelo, atriz e sex symbol. A deputada tem todo o direito de se converter, mudar de vida, usar uma burca se quiser. Mas que cuide só da própria vida. Que cada um, parlamentar ou não, lide com os próprios traumas e autorrejeições da maneira que achar melhor, seja com terapia ou exorcismo - mas que não envolva ninguém além de si mesmo nesse processo.
    É fácil perceber que o patrulheiro moralista não busca a redenção alheia, mas a própria. Como o garotão homofóbico que não resiste à tentação de "espancar uma bicha", o patrulheiro moralista busca matar nos outros o que vê em si mesmo. Se alguém duvida disso, a história recente é cheia de casos emblemáticos.
     Em 2008, o governador de Nova York Eliot Spitzer renunciou ao cargo após ser ligado a uma rede de prostituição. Investigações mostraram que ele havia gasto mais de US$ 80.000,00 com prostitutas de luxo. Antes de ser governador, Spitzer era um promotor público que combatia ferozmente... a prostituição.
Jimmy Swaggart: as lágrimas mais fajutas
da história da humanidade.
     O ultramoralista pastor Jimmy Swaggart, considerado por alguns o maior televangelista do mundo, também foi pego em 1988 com prostitutas. Seu pedido de perdão, entre as lágrimas de crocodilo mais insinceras já derramadas pelo homem, é uma das cenas mais patéticas da história da televisão.
     E não esqueçamos, é claro, do nosso proclamado bastião nacional da moralidade, o ex-senador Demóstenes Torres. Aclamado pela mídia como exemplo de ética e honestidade, um dos mais intransigentes parlamentares na condenação pública de seus colegas corruptos (que exigia publicamente maior rigor na apuração de crimes), Demóstenes Torres revelou-se um bandido contumaz e um corrupto da pior espécie, e teve seu mandato cassado por quebra de decoro parlamentar.
     Eu poderia lembrar ainda alguns casos de pedofilia envolvendo a (também ultramoralista) Igreja Católica, mas o ponto aqui é escrever um texto curto, não um livro...
     O patrulheiro moralista é sempre assim, feroz na batalha contra o que, nos outros, lhe parece seu reflexo. É justamente do que a sociedade não precisa.
     Não é função do Estado dizer o que devo ou não ler (Cinquenta tons de cinza deve ser uma porcaria, mas é o público, e não um juiz, quem deve decidir se a leitura vale ou não a pena), o que devo ou não fazer da minha vida sexual e do meu espírito. Se o poder público quer moralizar algo, que olhe, antes de mais nada, para as próprias entranhas. A classe política anda muito carente de valores morais para pretender impor à sociedade o que quer que seja nesse terreno.



quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O que se diz e o que se entende

   
Falta de atenção, mal-entendido, piada?
Não, racismo.


     Num dos primeiros textos deste blog (Não somos racistas?, de 05.09.2012) critiquei os argumentos de jornalistas como Arnaldo Jabor e Ali Kamel, que defendem a teoria de que não há racismo no Brasil, e sim "classismo" - ou seja, o preconceito não é contra o negro, é contra o pobre. Um negro bem vestido não sofreria preconceito.
     Basta andar pelos shopping centers, universidades e restaurantes de primeira linha brasileiros para perceber como a tese do "classismo" é furada. Basta ver quantos CEO's, quantos apresentadores de telejornais, quantos galãs de novela e heróis de filmes brasileiros são negros para que se note o racismo patente da sociedade brasileira.
     Se alguém ainda achar que nada disso é suficiente, o noticiário da última semana não deixa qualquer dúvida, mínima que seja, sobre o quanto o Brasil é racista.
     Ontem, 23 de janeiro, foi divulgada no site da revista Carta Capital a Ordem de Serviço nº 8º BPMI 822/20/12, assinada pelo capitão da PM Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, que orienta policiais que atuam num bairro nobre de Campinas a abordarem transeuntes que estiverem em atitude suspeita, "especialmente indivíduos de cor parda e negra" (leia a reportagem aqui).
    Diante da revolta e da comoção causadas pelo documento, o Comando da PM negou que a ordem tenha teor racista. A assessoria da PM afirmou que "houve uma falta de atenção na escrita do documento, mas isso não é um caso de preconceito", e que "o próprio capitão Beneducci é pardo".
     Falta de atenção? Não, racismo.
     Não sei se o capitão é ou não pardo, mas isso retira o caráter racista do documento? No último texto que publiquei no blog (E agora, José? E agora, você?), imaginei uma situação em que um menino negro é vítima do preconceito de um porteiro também negro (uma situação, infelizmente, nada incomum). Determinar que especialmente indivíduos de cor parda e negra devem ser abordados é uma "falta de atenção na escrita"?
     Também ontem, o G1 informou que um garoto negro de 7 anos, filho adotivo de pais brancos, foi praticamente enxotado de uma revendedora da BMW, embora estivesse acompanhando os pais. Segundo a matéria, o casal foi à loja da BMW para comprar um carro. Enquanto conversavam com o vendedor, o menino se afastou. O gerente disse para a criança: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja" - e voltando-se para os pais do menino: "Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes". Os pais saíram da loja e enviaram um e-mail à empresa, que, após muito relutar, afirmou que o gerente "entendeu que o casal não estava acompanhado por qualquer pessoa, incluindo a criança. e já que ela estava absolutamente desacompanhada na loja, o funcionário teria alertado o garoto que ele não poderia ali permanecer e que tudo não passou de um mal-entendido".
     Mal-entendido? Não, racismo.
     Se fosse uma criança branca, o gerente provavelmente presumiria (ou ao menos suspeitaria) que o menino era filho do casal. Porque era negro, o gerente deduziu imediatamente que era um menino de rua, um pedinte. O casal criou uma página no facebook, Preconceito racial não é mal-entendido, que até o momento já teve mais de 71.000 opções "curtir". Segundo a mãe do garoto, o garoto já passou por situações constrangedoras anteriormente, na escola, num bar e num clube.
     O caso é quase uma repetição do que aconteceu, há um ano, no restaurante Nono Paolo, quando o filho de um casal de espanhóis, um menino etíope, foi expulso por um garçom - os pais o encontraram na calçada do lado de fora do restaurante.
     Em dezembro passado, o site Pragmatismo Político divulgou uma acusação de racismo contra o ator Luís Salém, que, na saída de um ensaio técnico de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, teria dito, junto a um grupo de negros: "Nossa! Isso aqui é um quilombo?" Não satisfeito, teria dito a um dos integrantes do grupo: "E você? É preto? Você é preto e feio. Vai tratar de estudar e se formar sem cotas!" Questionado, o ator não negou o ocorrido, e procurou se justificar da seguinte maneira: "Pode ter sido uma piada, mas não sou preconceituoso, não tenho motivo para ofender ninguém, apoio todas as causas, tenho amigos negros e sou totalmente contra preconceito. Sou comediante, humorista e faço piadas, pode ser que ele tenha entendido errado."
     Piada? Não, racismo.
     "Isso é um quilombo", "você é preto, vai tratar de estudar e se formar sem cotas" já mostra que o ator é, sim, racista, mas nada supera o "tenho [até] amigos negros" (o "até" está mais do que subentendido na frase), um clássico do repertório do racismo não assumido. Só faltou dizer: "Até abraço se precisar..."
     Os fatos acima - e são apenas alguns de muitos, de inúmeros, de incontáveis, que ocorrem todos os dias, em todos os cantos do Brasil - e as justificativas de seus protagonistas parecem sugerir que não há, de fato, racismo no Brasil. Existem pessoas que se expressam sem atenção, pessoas que não entendem o que os outros querem dizer e pessoas que fazem piadas. Mas racismo, ah!, isso não existe! Isso é coisa da imaginação dos negros, que veem racismo em tudo quanto é lugar, como afirmaram alguns internautas em comentários à notícia publicada pela Carta Forense.
     E por falar nisso, ao ler os comentários desses internautas, descubro que faço parte do grupo dos que não entendem o que os outros querem dizer. Porque, quando leio comentários como esses, enxergo racismo, mas é claro que essas pessoas não devem se considerar racistas (talvez seja falta de atenção na escrita, ou piada):

"Isto chama-se Síndrome da Perseguição! Aposto que se eu sair com uma camisa 100% Branco vou ser taxado de neonazista. Vamos esquecer esse lance de Negros e Brancos, encarem isso como mais um adjetivo... e se a PM não trabalhar com 'adjetivos' como os policiais exercerão suas funções de proteção ao cidadão?"

"Essa coisa do politicamente correto está saindo dos limites da razão e do bom senso, e terá um efeito horrível: jogar para sempre negros contra brancos, gays contra heteros, mulheres contra homens, filhos contra pais, todos contra todos. Mas talvez seja isso mesmo que a esquerda gramscista almeje, ou seja, implodir por dentro a por eles tão detestada sociedade capitalista judaico cristã, para então implementar a tão sonhada ditadura socialista a la cuba..."

"Sinceramente no Brasil o verdadeiro discriminado é o branco pobre."

"Esse pessoal dos DH são um bando de chatos. Já foi explicado que se tratava de um grupo específico. Se fossem brancos, ninguém se importaria, já que nascer branco, hetero e rico nesse país é ser considerado sub-raça."

     Impossível ler as justificativas da PM, do gerente da BMW, do Luís Salém (além dos comentários que transcrevi), sem lembrar da confissão de Fernando Pessoa, "Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza" - essa confissão que nunca virá dessas pessoas, embora a vileza seja tão evidente - ou da lucidez de Cecília Meireles, que, na clássica crônica O que se diz e o que se entende, se espanta: "O meu assombro é pensarem que eu sempre quero dizer outra coisa. Não! eu sempre quero dizer o que digo!"
     E eu, talvez ingenuamente, acredito que as pessoas (quase) sempre querem dizer o que dizem.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

E agora, José? E agora, você?




     Você não foi sorteado na loteria da vida. Nasceu no Brasil, negro e muito pobre.
     Felizmente, você e seus irmãos tiveram uma mãe que, embora pobre, se esforçou para dar aos filhos carinho, atenção e o que sua experiência de mulher simples entendia ser uma boa educação. A duras penas, você, que nunca gostou muito de estudar, concluiu o ensino fundamental, numa escola pública que não ensinou muito, porque, quando havia professores, eles não conheciam bem as matérias, eram desinteressados e não tinham o respeito dos alunos.
     Embora você nunca tenha, na infância e na adolescência, se envolvido com o crime, muitos dos seus amigos de bairro viraram aviões do tráfico. Você não deixou de falar com nenhum deles, manteve as amizades, mas preferiu trabalhar como empacotador num supermercado de um bairro chique. Você sempre teve muito medo da polícia, principalmente depois que seu pai, um pedreiro que tinha horror a bandido, foi morto numa chacina num boteco ao lado de casa, com outras seis pessoas. Todo mundo no bairro dizia que foram policiais à paisana que deram os tiros. O crime nunca foi esclarecido. Você tinha 13 anos.
     A polícia parava você com frequência. Durante toda a adolescência foi assim. Você nunca foi espancado, mas sempre foi tratado como "bandidinho" e ouviu muitos gritos, muitas ofensas dos policiais. Sempre de cabeça baixa, apavorado e quieto, com medo de ter o mesmo destino de seu pai.
     Às vezes você acompanhava sua mãe quando ela fazia a faxina em alguns apartamentos caros do bairro chique, embora as patroas claramente não gostassem da sua presença. Você até chegou a fazer amizade com o filho de uma das patroas da sua mãe, um garoto loiro que parecia muito bacana.
     Um dia, enquanto você conversava com o garoto no playground do prédio, esperando a mãe terminar o serviço, ele lhe ofereceu um baseado. Seus amigos de bairro já haviam oferecido antes, mas você sempre preferiu recusar. Dessa vez, sem saber bem por quê, você aceitou. Talvez fosse a tranquilidade do amigo, o ambiente seguro e tão diferente da sua realidade. Mal o garoto acendeu o baseado, o porteiro do prédio apareceu, viu o cigarro e começou a berrar com você. Foi um escândalo. O garoto disse que você tinha lhe oferecido o baseado. Você, é claro, negou e disse a verdade. As mães foram chamadas. Ninguém acreditou em você, nem mesmo o porteiro, também negro, morador do bairro vizinho ao seu. A mãe do garoto ameaçou chamar a polícia. Você disse que tudo bem, mas sua mãe, em prantos, se ajoelhou aos pés da patroa e lhe implorou que não fizesse isso. Você sentiu raiva e pena da mãe, daquela humilhação desnecessária. Você e sua mãe foram embora sob xingamentos. Sua mãe nunca mais voltou àquele prédio.
     A história do baseado chegou ao supermercado (a ex-patroa da mãe fazia compras e viu você empacotando as mercadorias no caixa) e você perdeu o emprego. Logo ficou claro que você não conseguiria outro trabalho naquele bairro.
     Você via seus amigos traficantes com roupas bacanas, tênis novos, as meninas do bairro caídas por eles. Como não aparecia nenhum emprego, você decidiu aceitar o convite dos seus amigos (alguns já haviam ascendido no mundo do crime, eram temidos e respeitados) e se tornar um avião do tráfico. Você nunca segurou uma arma, seu trabalho era vender umas trouxinhas de maconha na boca e só. Uma vez, um carro esporte novinho, cheio de playboys, parou na boca e comprou quase toda a droga. Você teve a impressão de que o filho da ex-patroa estava no carro.
     Você nem pensava em ficar muito tempo nessa vida, era só um bico até arrumar um emprego decente.      Mas você foi preso em flagrante menos de dois meses após começar a vender a maconha. Dessa vez os policiais não se limitaram a xingar, desceram a porrada sem dó nem piedade.
     Você foi jogado numa cela lotada de uma delegacia. O calor era insuportável. Você só conseguiu tomar banho depois de três semanas. Para dormir, era necessário fazer um revezamento, porque não havia espaço para que todos se deitassem ao mesmo tempo. Passaram-se meses até que você fosse transferido para um CDP, onde dividiu outra cela (também lotada) com latrocidas, assassinos e estupradores. Não foi uma convivência fácil. Mas foi um tremendo aprendizado sobre o mundo do crime. Você se tornou um especialista.
     Você só foi interrogado um ano e meio após a prisão. O processo se arrastou por mais dois anos. Você foi condenado por tráfico, e pegou a pena mínima - cinco anos. Mas, depois de cumprir a pena, você ainda teve de esperar quase três anos para ser colocado em liberdade. Você reclamava com os carcereiros, dizia que já tinha cumprido sua pena, mas eles respondiam que não podiam fazer nada.
     Você era outra pessoa quando saiu da prisão - amargo, embrutecido, habituado à violência. Ainda assim, você não quis voltar para o crime, foi procurar emprego. Mas ninguém dá emprego a ex-presidiário. Como você precisava sobreviver, reencontrou os amigos de infância e começou a assaltar. Você não tem mais medo de morrer - nem de matar. Se a sua vida não vale nada, por que a dos outros valeria alguma coisa?
     Numa madrugada, depois de beber e se drogar (agora você é um usuário contumaz, viciou-se na prisão),  você vê um carro de luxo parado no semáforo de uma rua deserta, com o vidro aberto. Você encosta ao lado da janela e aponta a arma para o motorista. Ele olha para você, assustado. É o filho da ex-patroa da sua mãe. Você berra, o cano da arma encostado na cabeça do motorista: "Desce do carro!" Ele acelera.

*****

     Usei a palavra "você" 47 vezes no texto acima. Peço ao leitor que retorne ao início da narrativa e substitua "você" por "José". A concordância não se altera - o que vale para você, leitor, também vale para José. Mas a leitura será a mesma?
     E agora, José? E agora, você?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

"Minhas mucaminhas!"


Mucamas: "ai, que saudade!"


     "Mucama", para quem não lembra das aulas de história da escola, era a escrava de estimação, geralmente designada para realizar trabalhos domésticos ou servir de acompanhante das sinhás, babá das crianças e, em alguns casos, brinquedo sexual de seus senhores.
     Figura comum no Brasil colonial, a mucama é, provavelmente, a herança mais resistente da escravidão. Embora a abolição tenha ocorrido em 1888, a relação entre os trabalhadores domésticos e seus patrões guardou muito daquele antigo modelo. 
     A prova inconteste de que o Brasil ainda aprecia uma boa mucama está no absurdo tratamento dado pela lei e pela Constituição aos trabalhadores domésticos. A Constituição de 1988, louvada como marco da redemocratização brasileira e apelidada de "Constituição Cidadã" por Ulysses Guimarães, ao tratar dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais no artigo 7º, estabelece 34 direitos, mas garante aos trabalhadores domésticos, no seu parágrafo único, apenas nove. Proteção contra despedida arbitrária, seguro-desemprego e FGTS são apenas alguns dos muitos direitos negados aos trabalhadores domésticos na Constituição. Embora a natureza de alguns direitos trabalhistas exclua, por suas próprias características, essa categoria (como a participação nos lucros), não há uma justificativa válida para a negação de diversos outros. Mas não é difícil compreender os aspectos culturais que levaram a essas escolhas. Afinal, os parlamentares que debateram e promulgaram a Constituição de 1988 também tinham suas mucamas.
     A mucama "light" esteve presente nos lares brasileiros desde a abolição. No Brasil, empregada doméstica não é luxo, todo mundo tem. E, até recentemente, era uma categoria mal remunerada e explorada à exaustão. Embora em menor número do que no passado, ainda hoje há muitas mucamas modernas que dormem no serviço, "morando", seis dias por semana, nos armários improvisados que as construtoras, em tom de piada de mau gosto, chamam de "dependências de empregada".
     Nos últimos anos, contudo, esse panorama vem se transformando.
     A ascensão da chamada "classe c", a facilidade de acesso ao crédito e a abertura de vagas no mercado de trabalho têm alterado o perfil do trabalhador doméstico no Brasil. É cada vez mais difícil encontrar uma empregada que aceite dormir no trabalho, ou que se submeta às humilhações a que a categoria se acostumou por décadas. Trabalhador doméstico, hoje - pasmem! - , quer ser tratado como gente.
     Até cerca de uma década atrás, não era incomum encontrar, na classe média, casas com duas empregadas. Hoje em dia, isso é uma raridade. O trabalhador doméstico atual tem casa própria, automóvel, seus filhos frequentam faculdades (ainda não as de primeira linha, em regra, mas já é uma mudança significativa) e seu salário, embora ainda baixo, é muito maior do que no passado. E agora ele compra seu próprio celular e seus eletrodomésticos - bens que, antes, eram herdados do patrão quando ficavam velhos.
     Diante desse novo quadro social, a parcela da sociedade desacostumada a lavar pratos e roupas se vê perdida. Frente a uma pia abarrotada e a um cesto cheio de roupa suja, a ex-sinhá se desespera, lembrando, saudosa, os bons tempos, os anos 80 e 90, e se lamuria: "Minhas mucaminhas!"
     Pois é, elas estão rareando. Ainda existem, infelizmente (certos maus hábitos custam a morrer), mas seu número diminui a cada dia.
    Daí o drama das patroas, que não conseguem arrumar uma "empregada decente", porque são todas "folgadas, preguiçosas, acham que podem tudo". Como afirmou uma advogada ao Estadão na reportagem Procuram-se domésticas. Paga-se bem, de 14 de janeiro, "hoje as empregadas domésticas estão por cima da carne seca". Ainda bem.
     É bom lembrar que nossa recentemente alterada realidade escravocrata não tem similar em países desenvolvidos. Nos EUA e na Europa, empregadas domésticas são artigo de luxo. Embora nosso modelo não seja, como a jabuticaba, patrimônio exclusivamente nacional, um regime escravocrata não parece combinar com desenvolvimento econômico.
     É claro que nem todo mundo se adapta à nova realidade com tanta facilidade. Em tradicionais clubes paulistanos, como o Pinheiros, o Paineiras e o Paulistano, babás têm de usar, obrigatoriamente, roupa branca. Em uma reportagem da Folha, de fevereiro de 2011, uma babá disse "ser proibida de ir ao restaurante acompanhada apenas das crianças e conta que um sócio já pediu que ela se levantasse de um banco perto da piscina". Em outubro de 2012, uma babá foi barrada na entrada do Clube Caiçaras, no Rio de Janeiro, porque não estava vestida de branco. Em 1º de novembro de 2012, foi publicado no blog Viajando com Filhos o texto Viagem levando Babás, que ensina às mães endinheiradas como "adestrar" babás em viagens internacionais - um verdadeiro manual de como deixar bem claro para a babá que ela está do outro lado de um muro invisível, mas bem real.
     Ou seja: ter um salário melhor e acesso a bens de consumo, vá lá, admite-se (fazer o quê?). Agora, querer "se misturar", parecer "um de nós", derrubar esse muro que deu tanto trabalho para construir, aí já é demais! Menos, mucaminhas!
     Mas, para desespero dos mucamistas mais resistentes, também em novembro de 2012 uma comissão especial do Congresso Nacional aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 478/2010, que, se definitivamente aprovada, dará aos trabalhadores domésticos direitos como FGTS, carga horária semanal limitada a 44 horas, hora extra e adicional noturno. Pânico no Clube Paulistano! Enquanto os Sindicatos das Empregadas Domésticas comemoram a vitória, Sindicatos de Empregadoras Domésticas (sim, isso existe no Brasil) reprovam a mudança constitucional. Em entrevista à UOL, Andréa Macedo, presidente do Sindicato das Empregadoras Domésticas de Pernambuco, diz que a alteração vai gerar um alto índice de demissões. É comovente a preocupação com o futuro incerto e sombrio dos trabalhadores domésticos, mas é provável que a PEC seja aprovada.
     Enfim, para quem achava justo e certo pagar menos de 100 dólares por mês para ter uma mucama à disposição por 24 horas, 6 dias por semana, os tempos não estão fáceis. Mas ainda há um longo caminho a ser trilhado para que os patrões dos trabalhadores domésticos não vejam a sociedade em termos de "nós" e "eles". Nós somos nós. Usemos ou não roupa branca.
     


domingo, 13 de janeiro de 2013

Não há final feliz


O Rei Pirro. A expressão "vitória de Pirro" designa uma
vitória com gosto de derrota. Como no caso de Teresa.


    No dia 09 de janeiro, escrevi o texto Alemanha, 1939 - Brasil, 2013, relatando o drama de "Tereza", que, com leve deficiência mental, precisou se esconder da Justiça para evitar uma laqueadura forçada. A notícia havia sido divulgada no site da Defensoria Pública de São Paulo e retransmitida pelo Estadão.
     Diante da provável repercussão negativa e da divulgação dos fatos, o Poder Judiciário resolveu se mexer. Segundo notícia publicada ontem na Folha de São Paulo e na UOL, "a Justiça de São Paulo decidiu anteontem liberar uma mulher de 27 anos, com deficiência intelectual, da obrigação de fazer laqueadura". De acordo com a matéria, "a intenção era evitar que ela tivesse um filho caso fosse vítima de abuso". Segundo o promotor que acompanha o caso, e que afirmou que não recorrerá da decisão, "em nenhum momento se tentou tolher algum direito da paciente. Com as condições daquela época, se houvesse gravidez, teríamos uma criança em situação de risco. A intenção era proteger ambos."
    Admito que não entendo como uma castração forçada pode ter a intenção de proteger a paciente, mas, enfim, era óbvio que esse seria o argumento (como afirmei no texto acima). De qualquer modo, a barbaridade já não será praticada.
     Final feliz, certo? Errado.
     Vou destacar apenas alguns comentários feitos por internautas à notícia publicada na UOL (por fidelidade ao pensamento de tais pessoas, os comentários seguem exatamente como foram escritos, sem correção):

"Já vi esta tragédia antes. Tinha uma fulana assim na minha rua e todos os mendigos pegavam ela! Resultado, uma aquarela do Brasil de filhos, Tinha filho B&W cara de índio, cara de japa e pai mesmo! Mas! Concordo com a decissão se caso ela seja abusada e fique grávida quem cria e paga esta conta é o defensor que lutou pela causa, não o erário! Justo, não?"

"E' simples ela trabalha e se sustenta? Tem onde morar? Ou eu vou ter que continuar ralando para prover os filhos de pessoas incapacitadas financeiramente,moralmente,culturalmente/ou psicologicamente de ter filhos aos montes ate quando ? Como cidada pagadora de altos impostos deveria ter o direito de opinar onde usar os 30% que 'e tirado do meu trabalho suado que ja nao me da lucro ha muito tempo ,so subsistencia neste pais do coitadismo!"

"A prefeitura deveria esterilizar as zumbis que permabulam pela cidade, que infestam as ruas com seus filhos imundos e banddidos!!! E castrar todos os zumbis e moradores de rua!! Basta desses parasitas da sociedade!!!!!"

"Sic! Com certeza será uma 'grande mãe'! Que absurdo! Quanta hipocrisia! Uma pessoa incapaz de cuidar de si, gerando filhos!...uma beleza! Provavelmente vai dar de presente à sociedade mais um delinquente desajustado! Esta é a 'grande justiça' brasileira! Sic!"


     Há comentários ainda piores. Felizmente, porém, também há comentários em sentido contrário. A maioria dos internautas, no entanto, considera "um absurdo" que a Justiça não castre Tereza. Afinal - segundo esse raciocínio - se ela tiver o filho que pretende, não saberá cuidar dele, a criança será sustentada por nós, contribuintes, se tornará um bandido e nos assaltará/estuprará/matará no futuro. Assim, a esterilização de Tereza - bem como dos demais "zumbis e moradores de rua" que "infestam as ruas com seus filhos imundos e bandidos" - está mais do que justificada.
     Embora comentários feitos em notícias da UOL não sejam nenhum índice estatístico preciso, creio que é possível afirmar que parcela considerável da sociedade apoia uma política de castração forçada dos indesejáveis. Já que a lei não permite que se aumente o PIB com o extermínio sistemático de pobres, impedir que eles se reproduzam parece uma boa alternativa para muita gente.
     Que fique muito claro: não estou defendendo que o Estado se isente da prática de políticas de controle de natalidade, principalmente em relação a pessoas que, por qualquer razão, não têm condições (psicológicas, financeiras, sociais etc.) para cuidar de um, dois ou dez filhos. Como todo mundo, sinto uma tremenda angústia ao ver uma viciada em crack cambaleando pelas ruas, pedindo esmolas e carregando um bebê na barriga. O Estado precisa, sim, cuidar dessas pessoas, seja para lhes dar a estrutura psicológica e social necessária para encarar as responsabilidades da maternidade, seja para lhes mostrar que um filho só será mais um problema numa vida já cheia deles, e que a criança será também uma vítima da situação, alguém que chegará ao mundo já com desvantagens e poucas chances. Daí a defender a castração compulsória, ou afirmar que todo filho de mendigo virará um marginal, há uma grande distância.
     É assustadora a quantidade de pessoas que parecem não se constranger em afirmar que o excluído social não passa de um dejeto a ser removido. A banalização da desumanização desse grande "outro", a quem o status de pessoa é negado, parece maior a cada dia. Impressão minha? Torço muito para que seja. Mas acho que não.
     Soma-se a esse quadro de intolerância social o veto da Presidente Dilma Roussef ao Projeto de Lei nº 114/2011, que dava às Defensorias Públicas autonomia financeira, o que as fortaleceria. Segundo matéria veiculada pelo site Última Instância em 21 de dezembro de 2012, o veto se deu "por contrariedade ao interesse público". Defensorias fortes contrariam o interesse público de quem? 
     As Defensorias Públicas deveriam ter força similar à dos Ministérios Públicos. Isso não acontece. O MP é uma instituição que se fortaleceu muitíssimo a partir da promulgação da Constituição de 1988. A Defensoria Pública, a despeito da sua relevância, não tem recebido do Poder Público a atenção merecida. Apenas para lembrar, no caso de Tereza foi o MP quem pediu a laqueadura forçada, o que só não ocorreu por conta da atuação da Defensoria. Uma vitória, é certo, mas isolada. E, segundo um comentário feito no Facebook em relação ao caso de Teresa, o MP faz diversos pedidos nesse sentido Brasil afora. Não sei se a informação procede ou não, mas é certo que muitos absurdos, endossados pelo Poder Judiciário, ocorrem nos cantões do Brasil quando não há a fiscalização da mídia ou a atuação de defensores (há muitas cidades no Brasil que não têm um único defensor público).
     Enfim, numa sociedade em que o desprezo aos excluídos ganha cada vez mais espaço, em que a Presidência da República não reconhece o interesse público de fortalecer as Defensorias, em que os pobres sofrem barbaridades nas mãos de autoridades públicas despreparadas, a vitória de Tereza, embora deva ser comemorada, é lamentavelmente uma exceção.
     A história dessa Tereza teve um final feliz. Mas não há final feliz para a maioria das Terezas do Brasil. E elas são muitas.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Alemanha, 1939 - Brasil, 2013


A ideia de "raça superior" como justificativa para o extermínio.
Na Alemanha de Hitler, doentes mentais não podiam procriar.

     Tereza (nome fictício) mora em Amparo e tem 28 anos. Sofre de retardo mental moderado. Apesar disso, tem namorado fixo e um sonho comum à maioria das mulheres: quer ser mãe. 
     Mas Tereza não pode ser mãe. Não por qualquer razão biológica, mas porque uma decisão judicial do ano de 2004, tomada a pedido do Ministério Público, a impede. A decisão, aliás, determinou que Tereza realize uma laqueadura, o que só não ocorreu até agora porque, ao longo dos últimos nove anos, ela usou outros dispositivos contraceptivos, como o DIU. O DIU de Tereza venceu no ano passado, mas ela se recusa a substituí-lo, pois tem medo de que, durante o procedimento, seja realizada uma laqueadura contra a sua vontade.
     Diante da recusa de Tereza em substituir o DIU, a juíza atualmente responsável pelo caso determinou que a decisão de 2004, que ordena a laqueadura, seja cumprida. Segundo o Estadão, "a laqueadura estava prevista para o dia 21 de dezembro, mas a mulher não foi encontrada, porque se escondeu em outra cidade, por temer que a encontrassem e fizessem a cirurgia que a impediria de se tornar mãe. Uma nova data será marcada para o procedimento". Ainda de acordo com a matéria, "no decorrer do processo, a mulher demonstrou angústia, ansiedade e medo de passar pela esterilização, contra a qual se manifestou todas as vezes em que foi questionada pela Justiça. Ainda em 2004, ela disse que 'mais para a frente', quando arrumasse um 'namorado bom', pretendia ter um filho. Também afirmou que não era uma 'cachorra para ser castrada'. Parentes da mulher afirmaram que ela sempre teve uma disposição natural para cuidar de crianças" (a matéria completa pode ser lida aqui). 
     Embora a decisão judicial já tenha se tornado definitiva, não cabendo, portanto, nenhum outro recurso, a Defensoria Pública de São Paulo pretende anular a sentença por meio de ação própria.
     A Defensoria divulgou hoje em seu site uma nota prestando esclarecimentos sobre o caso. Segundo informa, "um relatório de dezembro de 2012, elaborado por profissionais das áreas de saúde e assistência social que acompanham Tereza, revelam que ela cuida adequadamente de sua saúde, submetendo-se a exames regularmente; que familiares de Tereza apoiam sua recusa em fazer a laqueadura forçada; que sua prima revelou que Tereza já havia cuidado de seu filho e de outras crianças da família de maneira responsável e adequada; e que Tereza expressa desde há muito tempo o desejo de ser mãe um dia."
     Resumindo a história: Tereza, uma mulher com leve retardo mental, quer ter um filho. Mas o Estado quer forçá-la a fazer uma laqueadura, o que só não ocorreu até agora porque ela fugiu e se escondeu.
     A situação descrita na notícia do Estadão e na nota da Defensoria é estarrecedora, revoltante e inaceitável.
     É sempre preciso tomar cuidado com notícias que informam apenas parcialmente. Muitas vezes (quase sempre) não conhecemos todos os lados da história, e a imprensa brasileira, como se sabe, não prima pela ética, nem pelo cuidado na forma como divulga os fatos. Por isso, cautela nunca é demais.
     Contudo, em algumas situações, mesmo uns poucos aspectos de um fato são suficientes para que cheguemos a certas conclusões. Parece ser o caso de Tereza.
     Do que podemos extrair das notícias, Tereza tem uma família estável que a apoia. Já cuidou das crianças da família. Vem obedecendo à determinação judicial desde 2004 (por mais absurda que seja). Se ela, como quase toda mulher, tem o desejo de ser mãe, o que autoriza o Estado a impedi-la? 
     Surpreendentemente, tanto a decisão de 2004 quanto a determinação de seu cumprimento em 2012 foram proferidas por juízas, por mulheres - o que sugere a existência de abismos sociais que não respeitam nem mesmo gêneros. Por mais que se doure a pílula, por mais que se afirme que tais medidas visam sobretudo o bem de Tereza (alguém duvida que é esse o argumento?), essa postura bárbara e medieval do Estado tem nome: eugenia.
Um dos painéis da exposição "Arte Degenerada", organizada
por Hans Posse em 1937. Pinturas expressionistas colocadas
ao lado de fotografias de doentes mentais.
     Como se tivéssemos entrado numa máquina do tempo diabólica, voltamos à Alemanha de 1939, ao sonho de uma raça perfeita, livre de doenças, miscigenações e defeitos. Anos antes, em 1928, o crítico alemão Paul Schultze-Naumburg havia publicado um livro, Arte e Raça, no qual comparava pinturas modernistas (como os retratos de Modigliani) a fotografias de doentes mentais (plantando a semente do conceito de "arte degenerada" que surgiria em 1937, com a exposição de mesmo nome organizada por Hans Posse). A mesma lógica perversa segundo a qual indivíduos "imperfeitos" não deveriam ter o direito de se reproduzir, que marcou a política nazista, a lógica que o mundo supôs ter enterrado no final da Segunda Guerra, surge rediviva no interior de São Paulo. Ao doente mental nega-se o mais elementar dos direitos, na precisa expressão de Hannah Arendt: o direito a ter direitos.
Faustão e o "Latininho". A
sombra do nazismo entre nós.
     Parece que o nazismo causa repúdio como símbolo e como fato histórico, mas não como essência. Repudiam-se a suástica e as barbaridades de 1939-45, mas aceitam-se posturas que fariam o velho Adolf sorrir de orelha a orelha. Lembremos o lamentável episódio do "Latininho", o menino Rafael Pereira dos Santos, portador da Síndorme de Seckeel, que, com 87 centímetros de altura e graves problemas mentais, foi colocado no palco do Domingão do Faustão em 1996, para imitar o cantor Latino. O público e o apresentador, "saudáveis", divertiam-se com um deficiente que não tinha ideia do que estava fazendo ali. Não havia nenhuma suástica e ninguém estava falando alemão, mas a alma do nazismo nunca esteve mais presente. Tão presente quanto na postura eugênica adotada pelo Judiciário em relação a Tereza.
     Só nos resta torcer para que a Defensoria Pública consiga reverter essa situação grotesca, e para que o Judiciário não se apegue a um formalismo positivista e superficial. Só nos resta esperar que Tereza volte a ter direito a ter direitos.    

sábado, 5 de janeiro de 2013

Apocalipse Zumbi em São Paulo


Umbrella Corporation, símbolo da ganância
humana nos filmes da série Resident Evil

     "Apocalipse zumbi" é uma expressão típica da literatura e do cinema de horror para designar um cenário em que o planeta (ou um país ou região) é tomado por zumbis, que perseguem os (geralmente poucos) sobreviventes que preservaram sua humanidade.
     Paradoxalmente, a própria figura do zumbi, nos dias atuais, é a de um sobrevivente. Os outros monstros do cinema desapareceram. Os únicos, além dos zumbis, que ainda têm algum prestígio nas telas são os vampiros, mas estão de tal modo descaracterizados - agora eles são mórmons, vegetarianos e açucarados - que não podemos mais considerá-los uma forma de horror (a não ser no quesito qualidade).
     Os zumbis, contudo, persistem. Não há ano em que não saia um filme de zumbi. Talvez o sucesso do tema se deva à capacidade do zumbi de ser a perfeita metáfora da apatia e da alienação da vida moderna. No início do filme Madrugada dos mortos, de 2004, a protagonista, ao sair do trabalho, ignora notícias de distúrbios que chegam pelo rádio do carro (troca o noticiário por música), e ao chegar em casa, assiste a um reality show (o marido lhe diz: "Você perdeu, acabaram de eliminar o carteiro"). Quando os zumbis atacam, os sobreviventes conseguem se refugiar num shopping center. Nenhum desses elementos está no filme por acaso.
     Reality shows, shopping centers e zumbis - a síntese perfeita da apatia alienada da modernidade.
     O filme de zumbi é um laboratório sociológico. Embora sem a sutileza de livros como O senhor das moscas, de Willian Golding (prêmio Nobel de 1983) ou de filmes como A Experiência (o alemão Das Experiment, não confundir com o americano Species), os filmes de zumbi, a exemplo dessas obras, sempre mostram os conflitos entre os pequenos grupos humanos em situações extremas. O zumbi, sem personalidade ou identidade, é mero pretexto. Sintomaticamente, as visões da humanidade são sempre distópicas. Ganância, agressividade e egoísmo são características típicas dos sobreviventes nessas histórias. Não há otimismo quanto à natureza humana num filme de zumbi. Todo filme de zumbi é uma aula cínica sobre nossas mazelas.
     Infelizmente, São Paulo não precisa de um filme de zumbi. Temos nossa própria Zumbilândia, nosso Resident Evil nacional, nosso The Walking Dead paulistano. Não precisamos da ficção, temos a realidade. Temos a cracolândia.
     No dia 03 de janeiro, completou-se um ano do início da operação conjunta do Governo paulista e da Prefeitura de São Paulo para acabar com a cracolândia, chamada pomposamente de "Operação Integrada Centro Legal".
     Há um ano, quem passasse pela esquina da Rua Helvétia com a Alameda Dino Bueno, no centro de São Paulo, durante a noite, encontraria um cenário idêntico ao de qualquer filme de zumbi - pessoas esfarrapadas, sujas, vestindo trapos  mal pendurados em corpos esquálidos, cambaleando sem direção certa, devagar, com o olhar perdido. Crianças de 13, 14 anos, prostituindo-se por uma pedra. O crack era vendido e consumido livremente. O poder público havia abandonado a área. Não havia policiamento. A tolerância estatal com o tráfico era explícita.
     De uma hora para outra, atropelando uma agenda que vinha sendo desenvolvida por ONG's e entidades de saúde, Governo e Prefeitura decidiram acabar com o tráfico de crack de uma hora para outra. As razões dessa medida, polêmicas e complexas, não cabem aqui. A lógica empregada na operação foi de uma estupidez inominável - basta tirar o traficante e sumir com a droga, que o viciado procurará tratamento, que será colocado à sua disposição. Esse era o plano.
    Plano fadado ao fracasso, é claro. Apenas um ingênuo pensaria que, com o sumiço da droga, o usuário procuraria tratamento ao invés de buscar a droga em outro lugar - foi o que aconteceu. Como se não bastasse, os poucos usuários que tentaram buscar tratamento não o encontraram. O resultado foi o que qualquer pessoa razoável poderia prever - os usuários (e os traficantes) se espalharam, mas não desapareceram. Segundo levantamento do G1, "depois de a operação começar, o número de vias da região frequentadas por usuários saltou de 17 para 33" (leia a notícia aqui). Ou seja, em termos geográficos, a cracolândia dobrou de tamanho.

À esquerda, cena da série The Walking Dead. À direita, a cracolândia. Ou será o contrário?

    Passado um ano e constatado o fracasso da operação, o Governo volta a falar em internação compulsória dos frequentadores da cracolândia. De que adiantará? Depois de "limpo" e devolvido à sociedade, o que impedirá o drogado de voltar à cracolândia, se o que o levou à droga continuar em sua vida?
     O crack suga não só o corpo e a mente do usuário, mas sua própria humanidade, que se reduz ao mínimo. Qualquer política pública que tenha por objetivo combater o crack deve ter por foco principal o resgate dessa humanidade que a droga praticamente destrói. Espalhar os usuários pela cidade ou fazê-los "desaparecer" não resolve o problema, apenas o esconde.
     O drama da cracolândia é complexo e o Estado não pode se abster, como fazia antes. Mas é ingenuidade pretender acabar com o crack na sociedade de uma hora para outra. E, seja qual for a melhor forma de combatê-lo, o uso da força bruta contra o viciado - seja para interná-lo, seja para tirá-lo das ruas, "limpando-as" - não parece ser a solução.     
    Enquanto isso, na mais completa tradução de Sampa (bem mais do que a Rita Lee), a duas quadras da escura Rua Helvétia, a Sala São Paulo resplandece limpa, iluminada e policiada. Os viciados da cracolândia não ousam se aproximar, mesmo quando eventos grandiosos e sofisticados atraem a elite paulistana - alheia ao que se passa naquele canto mal iluminado - para o centro. São dois mundos distintos, separados por uma muralha tão imaterial quanto intransponível. Ambos habitados por seres humanos. Em ambos, cada qual a seu modo, há consciências entorpecidas. Em ambos há zumbis.
     A duzentos metros da cracolândia, os Noturnos de Chopin e Rachmaninov ressoam pelas paredes da Sala São Paulo, longe, muito longe do filme de zumbi que se desenrola na escuridão do entorno.

Sala São Paulo: ao lado da cracolândia, mas em outro planeta.


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Década perdida?


Os anos 2002-2012 foram uma nova década perdida?
Perdida para quem, cara-pálida?


     Há erros e erros. Existe o equívoco bem-intencionado, causado pelo desconhecimento ou por uma análise errônea de fatos e números, e existe o erro intencional, fruto da má-fé
     O artigo A década perdida, do historiador Marco Antonio Villa, publicado no Estadão no último dia de 2012, é uma verdadeira ode ao erro mal-intencionado (o artigo pode ser lido aqui).
     Villa ganhou recente notoriedade com a publicação de dois livros, ambos pela editora Leya: História das Constituições brasileiras (2011) e Men$alão - o julgamento do maior caso de corrupção da história política brasileira (2012). Eu havia comprado o primeiro, mas não o lera ainda, quando o segundo foi lançado. Nem reparei que o autor era o mesmo. Quando o lançamento de Men$alão foi divulgado, três peculiaridades me chamaram a atenção - o cifrão no título, o subtítulo e o fato - surpreendente, vindo de um historiador - de o livro ter sido lançado antes mesmo da conclusão do julgamento. Essas três circunstâncias me levaram a desconfiar da seriedade da obra, e (para minha sorte) decidi não comprá-la. E eu, que até então não havia lido a História das Constituições brasileiras, decidi ver do que se tratava.
     Deixo a crítica ao livro - mal escrito e superficial - para outra ocasião. Mas a obra revela uma tremenda ignorância do autor sobre o tema. Seria possível tratar-se de um erro do primeiro tipo, aquele cometido de boa-fé. Improvável, mas não impossível.
     O artigo no Estadão, contudo, é claramente, indiscutivelmente, um erro do segundo tipo.
     A começar pelo fato de que não existe qualquer análise da realidade brasileira na tal "década perdida" - de 2002 a 2012 - e sim um libelo raivoso contra Lula, o PT e "a proposta de governo - chamar de projeto seria um exagero". Uma brevíssima menção à crise internacional de 2008, ao "ponto de inflexão" de 2005 (com o escândalo do Mensalão) e ao crescimento do PIB de 1% em 2012 - a isso se resume a "análise" política e econômica de toda uma década.
     No entanto, basta ter algum contato com a realidade para constatar que, independentemente dos muitos escândalos de corrupção que marcaram a gestão petista no governo federal na última década, todos os indicadores econômicos e sociais melhoraram significativamente.
     A expressão "década perdida" geralmente é usada para designar o período de estagnação e recessão econômicas que marcou o Brasil (e de modo geral a América Latina) nos anos 80 - algo que um historiador não pode desconhecer. Talvez Villa sinta falta dos anos 80 - do Menudo, da gravata de teclas de piano, dos paletós com ombreiras imensas e dos cabelos desfiados. De qualquer modo, essa "segunda década perdida" parece não ter muito a ver com a primeira.
     Como a crítica de Villa sugere implicitamente uma preferência pelo modelo econômico neoliberal anterior (a era FHC), vale a pena fazer algumas comparações:
     1) Em 1995, o salário mínimo correspondia a 111 dólares; em 2002, último ano do governo FHC, correspondia a 78 dólares (queda de 23%); em 2003, no primeiro ano do governo Lula, caiu ainda mais, para 77 dólares. Em 2010, o salário mínimo correspondia a 291 dólares (aumento de 278%). Quem diz é o IBGE (veja o gráfico aqui). A partir de 1º de janeiro de 2013, o salário mínimo passou a ser de R$ 678, ou seja, mais ou menos 331 dólares;
     2) O mesmo IBGE informa que a taxa de desemprego no Brasil, em 1995, era de 8,4%, chegando a 12,2% em 2002 (aumento de 47%). De 2002 a 2012, caiu para 6,8% (queda de 44%). O gráfico do IBGE pode ser visto aqui. A menor taxa de desemprego da história brasileira foi registrada em agosto de 2011 - 4,7%. Atualmente, a taxa de desemprego está estimada em 6,7%.
     3) De acordo com o R7, FHC, em seus oito anos de governo, criou 5.016.672 empregos formais. O governo Lula, de 2003 até setembro de 2010, havia criado 14.725.039 vagas de emprego. Segundo notícia vinculada no site em 2010 (que pode ser lida aqui), "os 14,7 milhões de empregos gerados nos oito anos do governo Lula até setembro deste ano, portanto, superam a soma dos empregos gerados nos governos FHC, Itamar e Sarney, que juntos são 10,4 milhões em 15 anos. Isso sem contar com o fechamento de 2,2 milhões de vagas durante os três anos do governo Collor, que daria um saldo de 8,2 milhões de empregos em 18 anos."
    4) O índice de Gini, usado para medir o grau de desigualdade nos países, sendo o grau mínimo de desigualdade correspondente a zero e o grau máximo, correspondente a um, era de 0,5994 em 1995, chegando a 0,5886 em 2002 (queda de 1,9%). De 2002 a 2010, caiu para 0,5304 (queda de 9,9%). Até a revista VEJA, capaz de atribuir a Lula e ao PT a culpa até por eventuais diarreias de seus editores, reconheceu que houve um "avanço impressionante" - embora, ao melhor estilo VEJA, não tenha deixado de observar: "mérito do bom e velho capitalismo" (o link está aqui).
     Inúmeros outros dados sociais - o aumento do número de estudantes em universidades por conta de programas como o PROUNI, a ascensão da classe C etc. - são bem conhecidos e não precisam ser repetidos aqui.
    Antes que os conservadores comecem a uivar para a lua, já esclareço que os números que transcrevi não implicam - no contexto deste artigo - qualquer crítica à era FHC, na qual foram estabelecidas as bases que permitiram o crescimento espetacular do Brasil nas últimas décadas. FHC e Lula erraram muito, cada um a seu modo, mas os acertos de ambos superam seus erros. Aqui, os dados servem apenas para mostrar quão absurda é a alegação de que a década de 2002-2012 foi uma "década perdida".
     Marco Antonio Villa é (supostamente) um historiador. É impossível que ele desconheça esses aspectos da realidade brasileira. Por isso, sua "análise" da última década não pode ser entendida como um erro acidental e de boa-fé. Até porque o argumento de que a década foi perdida deveria vir acompanhado de algum dado econômico ou social, mínimo que fosse, que o confirmasse. Mas seu artigo não traz nada disso. É só a velha ladainha conservadora, o ranço já cansado de quem não consegue enxergar para além do próprio umbigo. Não à toa, o site Brasil 247 chamou seu artigo de "piada da década". E é mesmo. Se Villa se pretende um pensador de oposição, só podemos concluir que a oposição merecia coisa melhor.
      Se Lula foi capaz de eleger uma desconhecida do eleitorado em 2010, isso se deu justamente por conta do sucesso do modelo político-econômico que desenvolveu na última década, modelo que se mostrou mais eficiente e socialmente justo do que o anterior, ainda que com muitos defeitos (que também não faltaram ao anterior, por sinal).
     Talvez seja possível concluir que o período de 2002-2012 foi mesmo uma década perdida. Para o PSDB e o projeto neoliberal.