Alailton Ferreira, 17 anos, com problemas mentais. Qual foi seu crime? |
Alguns disseram que Alailton tentou roubar uma moto. Outros disseram que ele tentou estuprar uma mulher. Outros, ainda, disseram que ele tentou abusar de uma criança. Na verdade, ninguém sabe exatamente o que Alailton fez ou tentou fazer.
Mas atualmente não é necessário que haja uma acusação específica. Basta que alguém seja eleito o alvo da fúria "justiceira" da sociedade, para que uma multidão - real ou virtual - atribua a si o direito de "fazer justiça" - o que quer que isso signifique.
Alailton, adolescente negro de 17 anos, com problemas mentais, foi brutalmente linchado por uma turba furiosa, na cidade de Serra, no Espírito Santo. Levado ao hospital, não resistiu aos ferimentos e morreu.
Destaco o seguinte trecho da matéria publicada a respeito do fato no site Pragmatismo Político:
"Aos gritos de 'mata logo' e de vários xingamentos, o espancamento aconteceu às margens da BR 101, na tarde do último domingo (6), no bairro de Vista da Serra II, cidade da Serra, a cerca de 30 km da capital Vitória, no Espírito Santo. Só depois de duas horas de muita violência, a Polícia Militar chegou ao local, colocou o jovem na viatura e o levou até a Unidade de Pronto Atendimento. 'Os policiais militares descreveram no boletim de ocorrência que foi necessário utilizar spray de pimenta para conter os populares', disse o delegado-chefe do DPJ, Ludogério Ralff."
Segundo reportagem da Gazeta Online, um morador do local, Ueder Santos, afirmou: "ninguém viu esse tal estupro ou mesmo quem é a suposta vítima. O menino até disse que era 'noiado', e ele nem reagia."
A barbárie praticada contra Alailton, tenha ele ou não cometido qualquer crime, é sintomática da sede de vingança - recuso-me a usar a palavra "justiça" em circunstâncias tão vis - da sociedade contra o aumento da criminalidade. Uma vingança algo esquizofrênica, que emula o ato que pretende punir, num retorno pavoroso à Lei de Talião.
Que parcela significativa da sociedade aplauda essa selvageria, sem se dar conta de que, ao fazê-lo, se transforma naquilo que condena, é preocupante. Mais desconcertante do que ver "gente de bem" (essa peculiar fauna que assim se autointitula) defendendo e apoiando atos dessa natureza, é ver que essa mesma "gente de bem" não tem consciência do quanto se aproxima, em termos essenciais, da... chamemos de "gente do mal" (que deve ser linchada, esquartejada e retalhada em público), ao apoiar e defender esse tipo de reação.
Quem aplaude a selvageria das ruas também aplaude a selvageria do interior dos presídios. Se o bandido não foi literalmente para o inferno, a cadeia deve servir como simulacro deste. E o "sorriso sorridente de São Paulo diante da chacina" (tristemente eternizado por Caetano e Gil em Haiti, de 1993) já não é mais só paulista. Já é um sorriso maranhense, carioca, baiano, mineiro... é um sorriso brasileiro.
Mas, como lembrava Nietzsche, "quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti."
A recente moda dos "justiceiros" (novamente, a mais inadequada das palavras), dos criminosos presos aos postes, das cabeças decepadas em presídios, do retorno àquela violência sistêmica apontada por Foucault em Vigiar e Punir, conta com o endosso (antes silencioso, agora cada vez mais alto) dessa "gente de bem", que encontra nos Bolsonaros, Rogers, Lobões, Sheherazades, Azevedos, Constantinos et alli todo um panteão de novos profetas, capazes de verbalizar seus medos e suas estranhezas diante de um mundo que eles não são mais capazes de compreender.
Assim, não apenas retornamos à Idade Média, mas temos quem vibre com isso, e pior, quem nos diga que é assim que as coisas devem ser.
Enquanto isso, os Alailtons da vida continuam a ser massacrados (qual foi mesmo o crime dele?) e a "gente de bem", que sonega impostos, que compra CD pirata, que falsifica carteira de estudante, que compra sua cannabis (de quem mesmo?), que suborna o policial quando cai na "blitz", aplaudindo e sorrindo, repete o velho bordão: bandido bom é bandido morto.