quarta-feira, 17 de abril de 2013

Gerald Thomas e a arte de ser idiota



Gerald Thomas e Nicole Bahls: a ex-panicat
está claramente adorando a "brincadeira"

      Na semana passada, o diretor teatral Gerald Thomas protagonizou um dos episódios mais bizarros da - por si só bastante bizarra - trajetória do programa Pânico.
     Alguns membros do programa, dentre eles a ex-panicat Nicole Bahls, compareceram ao lançamento de um livro do diretor. Gerald Thomas agarrou Nicole e enfiou a mão entre as pernas da ex-panicat, que usava um vestido curto. As fotos que rodaram a internet mostram o visível constrangimento de Nicole, que, mais tarde, em resposta a um de seus fãs, escreveu em seu Twitter: "Fiquei muito triste com isso. Obrigada de coração. Amanhã é outro dia. Vai passar".

     A cretinice de Gerald Thomas obviamente despertou a fúria não só dos movimentos feministas, mas de muita gente que acredita que o fato de uma mulher usar vestido curto não é justificativa para esse tipo de abuso.
     Gerald Thomas poderia ter pedido desculpas a Nicole. Poderia ter dito que extrapolou, que foi infeliz. Mas aparentemente o diretor acredita que grandes gênios universais - categoria da qual crê fazer parte - não erram, são apenas mal interpretados por nós, a burguesia primitiva, ignorante e incapaz de compreender a profundidade e a complexidade de suas manifestações.
     Por isso, ao invés de pedir desculpas, o diretor escreveu em seu blog o texto "PANICO" - much ado about nothing - all a joke among artists, no qual deixa claro que sua visão de mundo, e principalmente das mulheres, corresponde exatamente à sua atitude.
     Logo de cara, Gerald Thomas afirma que "quando for ao ar, todos esses que me maldizem vão QUEBRAR A CARA e nós, da classe (entre eles, Nanini, Fernandona, Latorraca, Groisman, etc) vamos rolar de rir no chão".
     Não fica muito claro a que "classe" ele se refere, já que (Serginho?) Groisman não é, como os demais citados, ator. O fato é que, se houve apoio da "classe" à violência de Gerald Thomas, não ficamos sabendo. E é provável que esse silêncio constrangido da "classe" decorra justamente da montanha de asneiras que se seguiram no texto:

     "Vem uma menina, de (praticamente) bunda de fora, salto alto de 'fuck me', seios a mostra, dentro de um contexto chamado PANICO e eu (que não me deixo intimidar e gosto desse pessoal) entro no jogo e viro as cartas - e os intimido! (que nada! Brincadeira também!) (TUDO BRINCADEIRA, GENTALIA HIPOCRITA que abriu uma facebook Page e debate e me massacra e passa dias editorializando e 'moralizando' uma questão tão simples e tão absolutamente inútil:

Eu, Gerald Thomas, faço a olho nu, na frente dos fotógrafos, das câmeras, das luzes, o que esse bando de carecas e pseudo moralistas gostaria de estar fazendo atrás de portas fechadas, com as luzes apagadas! EYES WIDE SHUT "

     Então, revoltado porque a "imprensa escrota", de forma sensacionalista, fala em estupro ("ESTUPRA? Como assim? Só levantei a saia de alguém que estava usando trajes ousadamente 'putos'" - "como assim?" pergunto eu - "levantei a saia de alguém"?), Gerald Thomas se agarra ao chavão mais usado pelos estupradores para justificar seus atos: foi ela que provocou.
     Primeiro, era só uma "brincadeira entre artistas". Eu, você que lê esse texto, a sociedade em geral, é careta, hipócrita, moralista, incapaz de entender uma brincadeira inteligível somente para a classe artística. A própria Nicole, pelo visto, não deve se considerar um membro dessa classe, já que deixou claro em seu Twitter o quanto a atitude do diretor a entristeceu (posteriormente, a ex-panicat tentou minimizar o episódio. É compreensível, ela acabou de voltar ao programa, quer manter o emprego, e deve ter sido "advertida" pelo desabafo no Twitter. Mais uma violência, caso ninguém tenha notado).
     Mas além de ser só uma brincadeira, ela provocou, não foi? Afinal, vestido curto é sinônimo de "bunda de fora" (às leitoras do blog que gostam de usar saias e vestidos mais curtos, sugiro cautela se passarem ao lado de Gerald Thomas), salto alto é sinônimo de "fuck me" (mulheres, a partir de hoje, todas de rasteirinha, ou nós, homens, interpretaremos seus saltos como um pedido de sexo ali mesmo, na hora, queiram vocês ou não) e "seios à mostra" (só vi um decote nas fotos, mas pelo visto os óculos de Gerald Thomas têm raio-x, já que a bunda também estava de fora). Não é essa sempre a desculpa dos estupradores, ela provocou, ela queria isso, olha como ela estava vestida?
"Só uma brincadeira, pura diversão!"
     Não espanta que a "classe" tenha mostrado seu "apoio" a Gerald Thomas com o mais absoluto silêncio. Alguém consegue imaginar Fernanda Montenegro "rolando de rir no chão" com essa história? Nem citar Stanley Kubrik adiantou - até porque o diretor lembrou bem mais o psicótico Alex de Laranja Mecânica do que o mal reprimido Bill Harford do De Olhos Bem Fechados.
    E porque o diretor provavelmente já sabia que ninguém - nem mesmo a "classe" - engoliria essas desculpas esfarrapadas, ele tenta um último - e patético - argumento:

"Somos todos da classe teatral e nossa função é apontar as VOSSAS falhas. E se VOCES se revoltam TANTO, então, já fico contente porque os alertei para alguma coisa. O que? SIM:

1 - A mulher não é um objeto. Mas não deveria ser apresentado como tal

2 - E os homens jamais deveriam se utilizar desse objeto de forma alguma"

     Portanto, Gerald Thomas cometeu uma violência contra Nicole Bahls - que, por ser da classe teatral, aceitou a "brincadeira" - para mostrar a nós, a classe média burguesa ignara e primitiva, nossos próprios defeitos. E para nos "alertar" que não devemos tratar as mulheres como objeto, ele fez exatamente isso. Não que ele quisesse agredir a ex-panicat, foi tudo uma crítica social. Ué, mas não era uma brincadeira entre artistas? Decida-se, Gerald!
     Falta ao diretor (e pelo visto ainda a muita gente, como se percebe em alguns comentários dos internautas à matéria veiculada pela UOL) a consciência de que uma mulher pode e deve se vestir exatamente como quiser, inclusive de forma provocante, sem que isso signifique que ela concorda ou permite que seu corpo seja usado e abusado à sua revelia.
     Vestir roupas curtas, provocantes e sensuais, expor (ou não) seu corpo na medida e do jeito que quiser, é um direito de toda mulher. O uso do direito ao próprio corpo não gera nenhum direito ao corpo alheio. Um vestido curto, um decote ou um salto alto não implicam nenhuma permissão de invasão da intimidade de uma mulher.
     E ser "artista" não dá a ninguém permissão para praticar violências contra outras pessoas. Aliás, nada mais banal do que um "artista" que se imagina um ser à parte da sociedade, superior a ela e isento da obrigação de seguir suas regras. Numa sociedade plural, a classe artística é exatamente isso - uma classe a mais, dentre tantas outras. E só gente muito pueril é capaz de imaginar que as "transgressões" teatrais de Gerald Thomas vão chocar uma sociedade que não se abala com Carandirus nem Sarneys. 
     Ao querer atribuir a um abuso sexual o status de arte, de "mensagem do artista contestador à sociedade hipócrita", Gerald Thomas mostra quão pequena é a sua visão do ser humano e da própria arte.
     Quando Picasso criou o cubismo, elevou o traço infantil à categoria de arte. Marcel Duchamp fez o mesmo com objetos do cotidiano. Pelé elevou o futebol à categoria de arte. Machado de Assis e Drummond elevaram o jornalismo diário à categoria de arte.
     Nesse sentido, talvez Gerald Thomas possa ter mesmo sua singularidade reconhecida. Afinal, ele demonstrou que é um mestre na arte de ser idiota.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Problema familiar




     Quando o Olavinho chegou em casa, o pai, Feliciano, assistia a um jogo de futebol na televisão. O garoto aproximou-se, meio constrangido.
     - Pai, preciso conversar com o senhor.
     Era semifinal, mas o tom de voz do Olavinho indicava que o assunto era sério. Ele desligou a televisão.
     - Fala, Olavinho.
     - Preciso contar um coisa pro senhor.
     - Então conta.
     - Eu estou saindo com uma... pessoa.
     - Poxa, filho, que legal! - Feliciano respirou aliviado. O Olavinho tinha 16 anos e nunca tinha namorado ninguém. Ele já estava ficando preocupado.
     - É... uma garota.
     O queixo de Feliciano caiu. 
     - Como é que é?
     - É, pai, uma garota. Achei melhor contar logo. Já tem um tempo, eu descobri que gosto de... meninas.
     Feliciano ficou mudo, em choque. Procurava a palavra certa, mas sentia-se perdido. Uma menina, Deus do céu! E o Olavinho falava assim, com a maior naturalidade, "gosto de meninas"...
     - Jair! Jair, vem cá!
     Jair veio do quarto, onde estava lendo um livro. Ele não gostava de futebol.
     - O que é?
     - É o Olavinho...
     Jair olhou para o Olavinho, que apertava as mãos, cabisbaixo e calado.
     - O que tem o Olavinho?
     - Conta pra ele, Olavinho, conta!
     - Contar o quê?
     O Olavinho contou. Jair, que estava em pé, deixou-se cair no sofá, meio aparvalhado.
     - Mas... você tem certeza, Olavinho? Será que... sei lá, não é só essa menina... será que não é uma fase?
     Não era, o Olavinho respondeu com uma certeza que fulminou qualquer esperança do Feliciano e do Jair. Ele bem que tentou evitar, tentou se interessar por outros garotos, mas não tinha jeito. Ele gostava mesmo de mulher.
     - É... alguém que a gente conhece?
     - Bommmm... é, vocês conhecem...
     - E quem é? - Jair perguntou, o coração batendo forte. Ele já beirava os cinquenta, fumava, era sedentário, agora o Olavinho com essa história de gostar de mulher...
     - A Joelma.
     - Que Joelma? A filha do zelador?
     - Ela mesma.
     Feliciano deu um pulo.
     - Pelamordedeus! A Joelma?!? Mas ela é... ela é...
     - Ela é o quê? - pela primeira vez o Olavinho levantou a cabeça e o encarou, não mais constrangido, agora quase furioso.
     - Eeerrr... ela é filha do zelador, Olavinho! Onde você está com a cabeça?
    "Meu Deus", Feliciano pensou abismado. Por um segundo quase deixara escapar: "Mas ela é branca!"
     Por sorte conseguiu se conter. Mas... uma menina? Ainda por cima branca
     - Vai para o seu quarto, Olavinho, eu e o Jair precisamos conversar. Você está de castigo!
     - Castigo? Por quê? Não fiz nada!
     - Agora, Olavo!
     Resignado, Olavinho foi para o quarto. O pai só o chamava de "Olavo" quando estava possesso.
     Feliciano e Jair conversaram até de madrugada. Choraram um pouco. Onde tinham errado? Tinham dado a melhor educação, a família era estruturada, iam à igreja juntos todo domingo. O que os amigos do Olavinho iam dizer? Será que já sabiam? O que os amigos deles iam dizer?
     - Branca, ainda por cima... - suspirou Jair.
     Na manhã seguinte, chamaram o Olavinho para uma conversa séria.
     Eles amavam o Olavinho, disseram-lhe. Ficariam ao seu lado, dariam-lhe apoio. Sabiam - e era bom que o Olavinho soubesse - que a vida não seria fácil. A sociedade ainda era muito preconceituosa. Um dia, talvez... mas não hoje. Ele precisava se preservar. Não precisava sair contando para todo mundo que gostava de mulher (haviam concordado na noite anterior em evitar qualquer menção à cor da Joelma - no fundo tinham a esperança de que, no futuro, ele pelo menos se interessasse por outra menina), não precisava virar um militante. A adolescência já é difícil sem esse tipo de problema.
     - O importante, Olavinho, é que somos seus pais, te amamos e ficaremos do seu lado. Não é o que queríamos para você, mas se as coisas são assim... paciência.
     Olavinho ponderou que poderia ter sido pior. Alguns amigos tinham sido espancados pelos pais ou expulsos de casa quando confessaram gostar de meninas. É, a vida não seria fácil. Mas ele havia nascido daquele jeito, não tinha feito nada de errado e não tinha do que se envergonhar. E realmente estava alucinado pela Joelma. Agora precisava torcer para que a reação dos pais dela também fosse tranquila. O Jean era gente boa e o tratava bem, mas o Arnaldo era uma fera e sempre o olhara de um jeito meio desconfiado.
     Pegou o telefone, ansioso para falar com a namorada e sonhando com um mundo mais tolerante.