Goya: O sono da razão produz monstros |
Não vou discutir a óbvia legitimidade do Movimento Passe Livre nem o direito das pessoas de, numa sociedade plural, protestarem e se manifestarem contra o que quer que entendam que precisa ser mudado. Como quase todo mundo, já li e ouvi versões as mais diversas sobre os confrontos entre manifestantes e a polícia, sobre quem deu início à onda de violência, sobre o que "está por trás" dos confrontos (as teorias conspiratórias pululam). Mas creio que alguns aspectos desse momento de crise merecem uma ponderação mais racional - racionalidade, obviamente, é o que está faltando na situação.
Apenas para raciocinarmos juntos:
1) Embora o Movimento Passe Livre tenha organizadores, a adesão de pessoas que, sem integrar propriamente a ala organizada do movimento, a ele adere, torna difícil o controle da situação pelo próprio movimento. O que deveria fazer o MPL após constatar que os protestos dos últimos dias resultaram em atos de extrema violência? Encerrar as manifestações? Tentar conter os ânimos mais acirrados? Ou deixar tudo como está porque um movimento organizado não pode ser responsabilizado pela loucura e truculência de uns poucos?
2) O velho (e pelo visto, adorado) maniqueísmo: todo manifestante, por estar ao lado do MPL, está certo, é um herói do povo, luta pelos direitos da população (esta ingrata que não reconhece o sacrifício de seus "heróis" e ainda os critica). Por outro lado, todo policial fardado é um psicopata violento e sedento de sangue, enviado ou por um prefeito facínora ou por um governador truculento. Nenhum desses policiais, é claro, usa transporte público. Ora, nem são os manifestantes heróis santificados pelo só fato de integrarem o MPL (ou a ele aderirem), nem são os policiais os vilões apriorísticos da história. Pelo que pude ler (não compareci a nenhum ato), houve abusos dos dois lados.
3) Tentar justificar a violência descabida de alguns manifestantes com o argumento de que é o poder público quem comete uma "violência" contra a população ao aumentar a tarifa, como cheguei a ler em alguns textos (e como, sutilmente, os organizadores do MPL defendem em artigo de hoje na Folha de São Paulo), é insanidade. Talvez o quebra-quebra arranhe a imagem da prefeitura, mas a maior vítima dessa violência é a própria população, não o poder público.
4) Quem critica a "truculência" de governantes que se recusam a negociar "com a faca no pescoço" e que apoiam a ação da polícia parece não se dar conta de que a violência como "argumento de negociação" mata a própria ideia de negociação. Quem usa a violência como argumento não negocia, chantageia. E a presença da polícia é fundamental em manifestações desse tipo, assim como a repressão a atos de vandalismo. É para isso que a polícia serve, afinal (não estou, obviamente, me referindo aos abusos).
Esses são apenas quatro de inúmeros questionamentos que a situação atual suscita. Essas questões não têm respostas simples nem se solucionam na base de "certo" e "errado". Mas certamente esse nó não será desatado ao sabor das paixões desenfreadas.
Há vândalos no movimento, sim. Mais do que isso, há, como em todo agrupamento humano, indivíduos que se valem do anonimato que o grupo fornece para extravasar suas neuroses e psicoses. Apenas os entusiastas de uma revolução que nunca virá são incapazes de enxergar que depredações de bens públicos (bens que não são do Estado ou da prefeitura, e sim do próprio povo que essas pessoas alegam defender) atrapalham, e não ajudam, o MPL.
Entre 1797 e 1799, o pintor espanhol Francisco De Goya concebeu uma série de 80 gravuras a que chamou Los Caprichos. O Capricho nº 43 se chama El sueño de la razón produce monstruos.
O sono da razão produz monstros. Quando a racionalidade sai de cena, resta apenas o que possuímos de mais animalesco e selvagem. É pouco provável que esse caminho leve a alguma solução válida.
A criminalidade já chegou a patamares inaceitáveis de violência. A escalada de violência atingiu um nível de guerra civil. Além da absurda brutalidade dos bandidos, teremos de suportar também manifestações como a de terça-feira, em que diversas pessoas (entre policiais e manifestantes) saíram feridas, em que bens públicos (nossos bens) foram depredados, em que um policial quase foi linchado por uma turba ensandecida?
O MPL já organiza outras passeatas e não dá mostras de que pretende recuar. Segundo a Folha, a polícia acionará a Tropa de Choque para o ato previsto para hoje.
Então, tanto para quem comparece a tais atos como para quem pretende analisá-los a uma distância segura, mais razão e menos emoção (e menos ideologia, também), por favor. A sociedade como um todo agradece.
Com a razão adormecida, os monstros ganham o mundo. Não me espantarei se, em breve, alguma passeata contra a violência também terminar em quebra-quebra, depredações, mortos e feridos.
Acrescento, ainda, que eu concordo integralmente com o motivo do protesto, que nada mais é do que a volta da inflação. Quem viveu nos anos 90 sabe o quando custou ao país debelar esse monstro.
ResponderExcluirCreio que apenas que o alvo do protesto é equivocado: a Prefeitura e o Governo do Estado não têm responsabilidade na desastrosa política econômica do Governo Dilma/Mantega, que ampliou consideravelmente os gastos públicos em percentual acima das nossas reservas - o resultado disso todos sabem: INFLAÇÃO - era a mágica que os governos militares viviam praticando para sustentar o "milagre brasileito" dos anos 70 (e que sabemos o que deu nos anos 80).
Chega ser ridículo pressionar a Prefeitura para baixar os preços - as empresas simplesmente pedem reequilíbrio para ampliação do subsídio já existente, o tesouro paga a conta da diferença. Aí, ou se aumentam os impostos (acho difícil), ou verbas de outras rubricas são cortadas (pode ser inclusive de transporte).
É a velha máxima do "não existe almoço gratis".
Creio que o MPL deve fazer suas vaquinhas para custear o protesto em Brasília, em frente ao Palácio do Planalto - terá o meu sincero apoio. Só tenho minhas dúvidas se a ideologia permitirá esse raciocínio pelos seus integrantes...
A propósito: http://super.abril.com.br/blogs/crash/a-gota-que-faltav/?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_super
ExcluirSinceramente, anônimo, o problema é muito maior do que a volta da inflação. Esse protesto pode ser apenas o começo de muita coisa por aqui, mas como bem disse o René, cabe a nós analisar os fatos de maneira racional.
ExcluirAs vezes gosto de comparar os problemas sociais como este com os acidentes aéreos: não existe apenas um culpado, como você assinalou,mas sim, uma somatória de fatores que acarretam em tumultos, protestos, e afins. Penso que seja a partir deste ponto que as coisas devam ser analisadas.