quinta-feira, 4 de julho de 2013

Saudades da ditadura?




    O plano era dar uns dias de folga ao blog, estou de férias etc. Mas algumas coisas simplesmente entalam na garganta da gente, e expeli-las se torna questão de saúde, se não pública, ao menos privada.
     E eis que, em menos de uma semana, surgem nas redes sociais pelo menos três - sim, três! - textos remoendo "saudades da ditadura". Sintomaticamente, dos que me chegaram às mãos, um de um sujeito dos seus 50 e poucos, outro de uma pessoa entre 30 e 35, e o último - horror! - de um rapaz de menos de 20. Este, acrescido de um vídeo do ex-presidente Figueiredo (aquele que, na presidência, afirmou que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo) e do texto "saudades... Éramos felizes e não sabíamos".
     E meu plano de dar férias ao blog foi para o espaço. Porque, se três gerações distintas sentem saudade da ditadura, algo está muito mais errado do que imaginávamos.
      Chamemos esses três grupos, representados por esses indivíduos, respectivamente de saudosistas, idealistas e neorreaças. A nomenclatura é imperfeita, bem sei, mas servirá para fins didáticos.
     O saudosista, na casa dos 50 e tantos, lembra com carinho do tempo em que não havia tanta criminalidade nem corrupção, a economia era estável (rescaldo do "milagre econômico" que já se despedia) e as domésticas sabiam seu lugar - aquele quartinho dos fundos que fazia as vezes de neosenzala. Aeroporto era coisa de gente chique, assim como automóvel. Eletrodoméstico era termômetro de caridade - gente com "consciência social" doava o liquidificador para a empregada quando comprava um novo (os mais radicais, quase comunistas, doavam videocassetes velhos).
     Os idealistas nasceram entre o fim da ditadura e o início da redemocratização; amargaram as trapalhadas econômicas dos meados dos anos 80 e os primeiros tropeços democráticos dos anos 90. Gozaram de alguns privilégios dos quais se viram, na última década, subtraídos - ou, a seu ver, surrupiados.
     Os neorreaças, muitos filhos de saudosistas, nada sabem da ditadura, além do pouco que ouviram nas aulas de história na escola (às quais não prestaram atenção). Sem jamais terem aberto um jornal, formaram o que chamam de "convicção política" a partir do que ouviram do papai e/ou da mamãe - ávidos leitores e assinantes da VEJA. Sentem falta de um período que não conheceram, mas que seus pais descrevem como aquele tempo em que "tudo era melhor".
     Esses três grupos têm, entre si, inúmeras distinções e similaridades. Destacam-se, no entanto, duas características principais:
     1) Uma inacreditavelmente estúpida confusão entre causa e efeito;
     2) a defesa intransigente da tese de que "não havia corrupção" e "nenhum militar enriqueceu na presidência".
     A confusão entre causa e efeito pode ser constatada de várias maneiras. As mais comuns consistem nas afirmações de que a escola pública "tinha qualidade" durante a ditadura e de que os índices de criminalidade eram menores.
     Mas foi justamente a partir dos anos 70 que as escolas públicas começaram a perder qualidade. Isso não ocorreu apenas com o achatamento dos salários dos professores (fenômeno que se intensificou a partir dos anos 80, razão pela qual muita gente, de forma equivocada, situa nessa década o início do declínio da educação no Brasil). O primeiro golpe dos militares na educação ocorreu com o deliberado projeto de eliminação do senso crítico e da consciência cidadã dos alunos, que foram substituídos, numa verdadeira lavagem cerebral, por um patriotismo de caráter extremista que substituía qualquer análise crítica da realidade brasileira (se alguém duvida, basta ir a um sebo, comprar um livro escolar de história dos anos 70 e ler o que se escrevia sobre Jango e a "revolução" que "salvou o Brasil do comunismo"). E só para lembrar, foi Samuel Johnson, e não Nelson Rodrigues, quem disse que "o patriotismo é o último refúgio do canalha". Nelson só emulou, mas ambos estavam certos.
     Assim como a destruição do sistema educacional público, a catástrofe econômica dos anos 80 e o aumento da criminalidade - alguém ainda duvida que esses fenômenos estão relacionados? - foram em parte o preço do "milagre econômico" dos militares. Ou alguém acha que obras faraônicas e a proibição de entrada de produtos estrangeiros no Brasil (para "estimular a indústria interna") não cobrariam seu preço? Milagres não existem, muito menos em economia. E se, por um lado, o cenário externo contribuiu para a crise, não se pode negar que os militares contribuíram com sua carga de ignorância e ineficiência (é bem conhecida a preferência de Costa e Silva pelas palavras cruzadas a qualquer livro sobre o país que ele presidia) para o preço que o "milagre" inevitavelmente cobraria. É incontestável - até os mais conservadores admitem - que o "milagre econômico" aprofundou sobremaneira a desigualdade. Alguma relação entre desigualdade e criminalidade?
     Em suma, achar que a situação do país piorou por causa da saída dos militares (e não apesar dela) revela uma imensa ignorância sobre a história brasileira e uma falta de informação abismal. É até compreensível - embora não aceitável - que saudosistas e idealistas pensem assim, com base em suas vivências empíricas. Mas os neorreaças não têm nem mesmo essa desculpa. 
     Quanto à tese de que não havia corrupção na ditadura e que os militares não enriqueceram no poder, é de uma ingenuidade atroz. Deveria ser óbvia a qualquer vertebrado a diferença entre inexistência e falta de divulgação. Evidentemente, o mundo atual é muito mais transparente do que o dos anos 60-80. Além disso, achar que os militares estavam numa redoma moral, imunes ao que eles mesmos consideravam um traço cultural dos brasileiros, é de uma inocência sem par. Mais denúncias não significam necessariamente mais corrupção. Podem muito bem significar mais investigações e mais transparência. Vale lembrar que a imprensa vivia sob censura na época, o que, é claro, não acontece hoje. E corrupção não se limita a dinheiro. Corrupção, em sentido amplo, implica violar a lei, que se aplica a todos, inclusive aos governos. E nesse aspecto, nenhum governo foi mais corrupto que o militar (de resto, vale ler o livro "Como eles agiam", do historiador Carlos Fico, para se ter uma ideia do grau de corrupção - inclusive em sentido estrito - durante a ditadura).
     Haveria muito mais a ser dito, dentre argumentos aparentemente mais ponderados a verdadeiros delírios (inacreditavelmente, ainda há quem acredite no risco de um "golpe comunista" no Brasil). Mas a síntese dessa história toda é: você não precisa concordar em nada com o governo atual; você pode querer um governo liberal, conservador, repressor etc. Mas você só pode lutar por um governo diferente do atual numa democracia. Ditaduras não dão espaço a visões de mundo diferentes.
     Então, seja você um saudosista, um idealista ou um neorreaça, se você sente saudade da ditadura, lembre-se que você só pode lutar pela volta dela porque ela não existe mais.

21 comentários:

  1. É, meu querido... por ironia, são os tais reacionários TFPs anônimos que geram algum debate de conteúdo aqui no seu blog... sem eles, dá traço no ibope...

    Em tempo, não sou a favor de ditadura de nenhuma espécie, seja ela de direita, como tivemos na nossa história recente, seja ela de esquerda, como queriam as pessoas que combatiam com violência o regime militar e hoje patrocinam a tal comissão da verdade (verdade com V de vingança) e são idolatradas pela nossa Esquerda Iluminada, que detém o monopólio da solução de todos os problemas brasileiros: tratamento desigual de grupos, Estado inchado e provedor de todas as necessidades sociais, controle de preços com base na canetada (como essa do MPL), empresários tidos como bandidos e responsáveis por todas as mazelas sociais (ainda que eles é que acabem pagando a conta do Estado inchado) etc etc etc.

    Liberais como eu e Rodrigo Constantino pregam a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, a liberdade de expressão e religiosa, pluralismo moral, a democracia representativa com "corpos médios" locais atuantes, educação meritocrática, emancipação feminina, tributação alta para grandes heranças, desoneração da classe trabalhadora, profissionais liberais e pequenos e médios empresários, Estado mínimo necessário (inclusive porque isso diminui a corrupção), saúde eficaz para a população.

    Todos nós desejamos a justiça social como fim. Discordamos quanto aos meios - a visão esquerdista gera mais probreza pela ineficiência Estatal. A liberal gera prosperidade, ainda que às custas de alguma desigualdade - o círculo virtuoso acaba compensando o prejuízo com a desigualdade.

    Não gosta do Constantino porque ele fala mal do PT? Ok, leia Hume, Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, entre outros, para começar.

    Agora, querer colocar os liberais no mesmo balaio dos defensores do Regime Militar... não dá, né?

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    1. Ok, mas quem colocou os liberais no mesmo balaio? Você ou o René? Eu juro pra você que li o texto maia duas vezes pra achar.

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  2. Olá, sou acadêmica de Direito e adoro seu blog. Desculpe-me, mas não resisti e postei este texto em meu acanhado blog. Você é inspirador! Parabéns.

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  3. Obrigado, Dani Bernardo. Não precisa pedir desculpas, eu é que agradeço a divulgação. Aliás, diga qual é o nome do seu blog para que possamos conhecê-lo. Abs.

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  4. A ditadura acabou? Palavra que não percebi, pois agora é que me sinto sufocada, com tantos opressores pra todo lado, fardados, mascarados ou de colarinho branco.

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    1. ENGRAÇADO QUE O POLITICAMENTE CORRECTO NUNCA USA A EXPRESSÃO CRIME DO TERNO NEGRO; O COLARINHO MESMO SENDO SECUNDARIO MAS POR SER BRANCO JA PODE SER DEMONIZADO KK

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  5. Interessante esse povo que gosta de falar difícil e citar personalidades e autores de livros que leu. Se acham superiores ao usar termos e definições que pouca gente sabe do que se trata como "neorreaças". Lêem um monte de livros e se tornam alienados, sem opinião própria. Apenas repetem o que leram. Não são capazes de ver a merda que está acontecendo a seu redor.
    Todo mundo já está cansado de saber das torturas, violações de direitos humanos, etc que os militares faziam. Sim, deve ter tido corrupção também.
    Mas quem disse que uma nova ditadura tem que ser igual à antiga? Não poderia ter uma ditadura sem censura? Já que reclamam tanto disso.
    Tirando a questão da censura, ditadura é ruim para criminosos, baderneiros e ativistas moderninhos que gostam de fazer escândalos no meio da rua.
    Pra quem anda na linha não tem problema nenhum.
    Pra governar gado tem que ter mão de ferro.

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    1. CONCORDO QUE ESSES ESTERCOIDES SÃO PAPAGAIOZINHOS IDIOTAS UTEIS AGORA REDUZIR O CIDADÃO COMUM A GADO..KK..CONCORDO QUE TEM QUE TER MÃO DE FERRO EM LOCAIS MAL HABITADOS COMO O MERDIL TIPO COMO NA ZONA MUSLA USAM A SHARYA POR QUE COM ESSES GENS CRIMINOSOS SUB-ASIATICOS SÓ VAI NA BASE DO DESPOTISMO ANTI-KOSHER PARA COMBATER O DESPOTISMO MAL TAQYIADO EM FALSA DEMOCRACIA TAPETOIDE

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    2. LIBERDADE DE EXPRESSÃO SEM LIBERDADE DE AÇÃO NÃO SERVE PRA MUITA COISA..DO QUE ADIANTA SABERMOS SOBRE O PROBLEMA SUB-NOSTRATICO, DIVULGARMOS E DEPOIS FAZEM VISTA GROSSA E NÃO QUEREM ARREGAÇAR AS MANGAS PRA MUDAR ALGO A SERIO?..

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  6. Interessante esse povo que acha que "citar personalidades e autores de livros que leu" é "falar difícil" e "se achar superior". Ler um monte de livros deve alienar mesmo as pessoas. Entendo. Quanto menos se lê, mais se desenvolve "opinião própria". Esta virá, talvez, daquela "escola da vida". O analfabetismo, por conclusão, levará ao ápice da sabedoria.
    Ler demais é mesmo um problema sério. Quem lê acaba tendo dificuldade de entender, por exemplo, como seria uma "ditadura sem censura", e não consegue admitir que a ditadura é boa "pra quem anda na linha". Quem lê demais acaba desenvolvendo o péssimo hábito de não considerar a população de um país "gado" - postura, aliás, interessante para quem acusa os outros de se acharem superiores.
    Mas que sei eu? Tento ler o máximo que posso, assim, devo ter atingido um grau elevadíssimo de alienação, e minha opinião não passa de uma repetição do que li.
    De hoje em diante, só Facebook, BBB e "Caras". Aguardem-me, em breve serei uma sumidade!

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    1. Texto primoroso, agradeço e compartilho... E parabéns pela resposta, genial, meu caro.

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    2. Parabéns, René! Excelente.

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  7. PQP é inacreditável que o cara não sabe sequer o que é um neorreaça e entre no espaço prá dar um esbregue em quem além de nos informar ainda de colher de chá cita uma bibliografia para que os saudosistas da "ditabranda" se informem.
    Agora vamos combinar: uma nova ditadura sem censura é demais!! Em que mundo esse anônimo vive?

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    1. LINGUAJAR MESMO DE PAPAGAIO ESTERQUISTA IDIOTA UTIL KK

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  8. Obrigado, Flávio, Tito e Luiz Carlos.
    Nem todos, mas alguns anônimos vivem na Anonimolândia, lugar onde os EUA são católicos, a Alemanha rejeita o Estado Social, a Terra é quadrada, a ditadura é branda e a sabedoria vem dos Lobões, Azevedos, Mainardis e Villas.
    Cada um com seu cada qual, meus caros.

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  9. Valeu, René. Hoje mesmo tive uma pequena discussão sobre a ditadura militar, com um conhecido que bradava por uma "revolução" em face da corrupção do país, porque na ditadura "bandido não se criava". Como não vivi nesse tempo (tenho 29 anos), queria saber como era naquele tempo. Você pode indicar livros que falem especificamente do cotidiano de vida das pessoas "comuns" na ditadura? Qual o nível de criminalidade? De que forma as políticas econômicas da época contribuíram para nossa atual criminalidade? Mais uma vez agradeço pelos esclarecimentos.

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  10. A DITADURA PODIA TER TODOS OS DEFEITOS E O PRINCIPAL ACHO QUE FOI O GEO-CENTRALISMO QUE SÓ PIOROU GERANDO DUAS AMERICAS PORTUGUESAS..A VD-DF DO CARTEL E AS LOBOTOMIZADAS POR ESTA..MAS NO QUESITO SEGURANÇA PUBLICA DAVA UM BANHO NA "DEMOCRACIA" - A RAQUEL SHEHERADASSA SÓ POR QUE FALOU A VERDADE SOBRE UM CRIMINOSO ALOGENO JA FOI LOGO DEMONIZADA..E OLHA QUE É EVANGELICA KOSHER TIPICA DAQUELAS QUE SE CURVAM A BANDEIRA DA JUDEIA, DONOS DOS OUTROS KOSHERS..

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  11. Não acreditem em nenhuma pessoa da Internet, Principalmente os intelectuais. Nosso velhos tem a sabedoria da vida e conheceram de verdade aquele momento. Fale cara a cara com pessoas que viveram a época ( acima de 60 anos) de preferência 10 ou mais idosos e tire a sua conclusão.

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  12. René, o seu texto parece ter sido escrito hoje. Eu não costumo postar textos de terceiros no meu blog, mas fui obrigado a abrir uma exceção.
    Parabéns pela lucidez.

    http://volcan2013.blogspot.com.br/
    Batalha dos Desengonçados

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  13. Só queria que me explicasse, por exemplo, por que é que hoje, por falta de segurança, eu não posso deixar meu filho de 07 anos ir sozinho para a escola, como eu fazia em 1978?

    Se um dia precisares ser um "Celso Daniel" na atual "democracia" esquerdista, tenho absoluta e eterna certeza que seus argumentos serão revistos. Ou não. Celso Daniel, não teve essa oportunidade de repensar o "comunismo caviar" vigente.

    DEMOCRACIA de quem e para quem? Parece que ela faz muito sentido apenas para a marginália, parte dela, que inclusive assassinava(inclusive companheiros), assaltava, sequestrava naquela época também.
    Aliás, o país é reflexo de quem o governa.

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