segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Black bruacas, desinformação e catarse


O caso mais emblemático de auto-bullying da história brasileira

   Ando com uma preguiça medonha de debater certos assuntos, porque parece que a irracionalidade tomou conta das pessoas. Mas percebi que a quase totalidade dos textos do blog tem a ver justamente com a falta de racionalidade do mundo, então resolvi escrever sobre o que todo mundo já escreveu: o STF, os embargos infringentes, o Mensalão, o Zé Dirceu, a impunidade etc. etc. etc.
     Mas não vou repetir as obviedades que qualquer pessoa minimamente informada deveria estar cansada de saber: os embargos não vão reabrir o caso todo, a discussão técnica é mais aprofundada do que esse debate midiático rasteiro e por aí vai. Nem vou defender o acerto da decisão do Supremo. Embora me pareça obviamente acertada, o fato de a decisão ser favorável aos embargos por um voto mostra que a questão não é simples nem pacífica. Concordo com a decisão, considero-a acertadíssima, mas respeito quem defende o contrário. Desde que saiba do que está falando. O problema é que a maioria absoluta das pessoas que estão com "nojo do Brasil", "revoltadas com a impunidade", xingando os ministros de "vendidos", "canalhas" etc. não conhecem minimamente a realidade sobre a qual esperneiam.
     Comecemos pelo mais novo movimento social do Brasil, que podemos apelidar carinhosamente, numa corruptela dos black blocs, de "black bruacas". No dia seguinte à decisão do ministro Celso de Mello quanto ao cabimento dos embargos infringentes, as atrizes da novela "Amor à vida" postaram algumas fotos vestidas de preto, com expressões carrancudas, "de luto pelo Brasil". Pareciam uma banda de death metal escandinava. Rosamaria Murtinho disse ao site EGO (o site de, vá lá, "notícias" relevantes como esta aqui): "O que está acontecendo é um absurdo, querem desmoralizar o STF, que é a última instância do poder e deve ter suas decisões respeitadas. Estou de luto pelo Brasil", afirmou, talvez não se dando conta de que foi o próprio STF, numa decisão que deve ser respeitada, que admitiu os embargos. 
     É pouco provável que essas senhoras (assim como sua mais notória (?) seguidora, Carla Perez) tenham a mais remota ideia do que sejam embargos infringentes, hermenêutica constitucional, duplo grau de jurisdição etc. As black bruacas foram muito criticadas, mas acima de tudo viraram alvo de gozação. Merecidamente.
     Pior que a indignação desinformada das black bruacas (que, nesse ponto, são acompanhadas por muita gente bem intencionada e pouco informada) é a esquizofrenia hidrofóbica de folhetins como VEJA. Curiosamente, ainda há seres humanos que acreditam que VEJA "informa". Em relação ao julgamento dos embargos, a edição de VEJA da semana passada trazia uma reportagem que dizia: "O ministro Luís Roberto Barroso, o 'novato', como o descreveu o ministro Marco Aurélio Melo, fez um comentário não apenas infeliz, mas equivocado, quando defendeu seu voto pela eternização do julgamento do mensalão, justificando-o, entre outras razões, pelo fato de não se importar com a reação da opinião pública. (...) Nenhum juiz, nenhuma corte em tempo algum, pode desprezar a opinião pública". Após o ministro Celso de Mello dar ao Brasil uma lição de civilidade e direito, afirmando, de forma corretíssima, que o juiz deve julgar de acordo com a lei, e não com o clamor popular, a mesma revista, nesta semana, afirma em seu editorial: "O ministro Celso de Mello poderia ter poupado a inteligência das pessoas ao insistir que o Supremo Tribunal Federal (STF) não pode ceder ao 'clamor popular' ou à 'pressão das multidões'. Claro que não pode. Tanto não pode que isso não precisa ser declarado. Não existe mérito algum em que Celso de Mello tenha votado sem se importar com o grito básico das ruas. Isso é dever básico, essencial e primário de todo juiz". VEJA é que deveria ter poupado a inteligência das pessoas.
     O fato - triste e preocupante - é que os mensaleiros foram transformados numa Geni nacional. A população anda tão cansada da impunidade na política que precisa de um linchamento em praça pública para acreditar que o Brasil vai melhorar. Sobre os mensaleiros (e isso não significa afirmar sua inocência) vêm sendo despejadas décadas de frustração nacional com todas as falhas estruturais e culturais que permeiam nossa história.
     A antiguidade grega conhecia bem o sentido da catarse no teatro, a purificação espiritual pela descarga emocional representada em um drama. Foi o que o público dos cinemas brasileiros sentiu ao ver o Capitão Nascimento espancando um político corrupto em Tropa de Elite 2 - há inúmeros relatos de aplausos nas salas de projeção. O povo busca essa catarse novamente na imolação pública dos mensaleiros. E qualquer obstáculo no roteiro "corruptos-malvados-vão-para-a-cadeia-e-nasce-um-Brasil-novo" é motivo de frustração.
     O anseio pelo linchamento é tamanho que qualquer tentativa de trazer o debate de volta à razão é criticado por ser uma "defesa da impunidade". Tempos atrás, publiquei um texto chamado "Defender a lei não é defender bandidos". Assim como defender que os criminosos tenham direito a um julgamento justo e a um sistema penitenciário decente não significa concordar com seus crimes, defender que os mensaleiros tenham um julgamento imparcial não significa compactuar com a impunidade, defender a corrupção, não querer que o Brasil melhore etc. Mas não está fácil convencer as pessoas disso. Recentemente, apenas por defender o cabimento dos embargos, um amigo me chamou, em tom de brincadeira, de "amante de pizza". Outro me perguntou, também em tom de brincadeira (espero!), se não deveríamos acabar com os culpados a pauladas em praça pública.
     No debate sobre o mensalão, a sociedade se tornou maniqueísta: se concordamos com o cabimento dos embargos, somos petistas, estamos do lado dos mensaleiros, queremos a impunidade. Do contrário, estamos do lado do bem, da busca por um Brasil melhor. E boa sorte para quem tentar argumentar o contrário. 
         Curiosamente, a sociedade condena as "chicanas" do ministro Lewandowski, mas não vê problema algum quando Joaquim Barbosa impede Celso de Mello de votar, para que a pressão das ruas e dos meios de comunicação o faça mudar de ideia quanto à procedência dos embargos. Na ânsia por ver o bandido preso, a sociedade não se dá conta de que, quando o Judiciário puder aplicar a lei apenas para alguns, todos nós perderemos. Se o STF impedir um recurso de José Dirceu, tudo bem. Mas e se impedir um recurso meu, ou seu? Quem vai decidir quem tem ou não tem direitos que a lei diz que valem para todos?
      E quando um jurista de mentalidade conservadora e que sempre se opôs ao PT, como Ives Gandra, alguém que, em suma, não tem compromisso ideológico algum com os petistas e não ganharia nada com a defesa de qualquer mensaleiro, afirma à Folha que "Dirceu foi condenado sem provas", isso deveria fazer com que as pessoas pensassem: "deve haver algo de errado nesse julgamento". Mas nada supera a aversão figadal aos mensaleiros.
     Enfim, the worst vice is advice, mas ainda assim parece um bom conselho: é melhor pensar com o cérebro do que com o fígado, principalmente quando pensamos em questões de justiça e de Justiça. É melhor tentar enxergar racionalmente para além dos ódios que a insatisfação crônica com tudo o que há de errado no Brasil há décadas nos leva a sentir. Do contrário, negaremos aos mensaleiros aqueles direitos que gostaríamos que fossem respeitados, caso fôssemos nós os réus.
     Mas, para um povo combalido por séculos de roubalheira, malversação de dinheiro público e politicagem da pior espécie, talvez seja pedir demais.