sábado, 12 de abril de 2014

O abismo também olha

     
Alailton Ferreira, 17 anos, com problemas mentais. Qual foi seu crime?

     Alguns disseram que Alailton tentou roubar uma moto. Outros disseram que ele tentou estuprar uma mulher. Outros, ainda, disseram que ele tentou abusar de uma criança. Na verdade, ninguém sabe exatamente o que Alailton fez ou tentou fazer.
     Mas atualmente não é necessário que haja uma acusação específica. Basta que alguém seja eleito o alvo da fúria "justiceira" da sociedade, para que uma multidão - real ou virtual - atribua a si o direito de "fazer justiça" - o que quer que isso signifique.
     Alailton, adolescente negro de 17 anos, com problemas mentais, foi brutalmente linchado por uma turba furiosa, na cidade de Serra, no Espírito Santo. Levado ao hospital, não resistiu aos ferimentos e morreu. 
     Destaco o seguinte trecho da matéria publicada a respeito do fato no site Pragmatismo Político:

     "Aos gritos de 'mata logo' e de vários xingamentos, o espancamento aconteceu às margens da BR 101, na tarde do último domingo (6), no bairro de Vista da Serra II, cidade da Serra, a cerca de 30 km da capital Vitória, no Espírito Santo. Só depois de duas horas de muita violência, a Polícia Militar chegou ao local, colocou o jovem na viatura e o levou até a Unidade de Pronto Atendimento. 'Os policiais militares descreveram no boletim de ocorrência que foi necessário utilizar spray de pimenta para conter os populares', disse o delegado-chefe do DPJ, Ludogério Ralff."

     Segundo reportagem da Gazeta Online, um morador do local, Ueder Santos, afirmou: "ninguém viu esse tal estupro ou mesmo quem é a suposta vítima. O menino até disse que era 'noiado', e ele nem reagia."
     A barbárie praticada contra Alailton, tenha ele ou não cometido qualquer crime, é sintomática da sede de vingança - recuso-me a usar a palavra "justiça" em circunstâncias tão vis - da sociedade contra o aumento da criminalidade. Uma vingança algo esquizofrênica, que emula o ato que pretende punir, num retorno pavoroso à Lei de Talião.
     Que parcela significativa da sociedade aplauda essa selvageria, sem se dar conta de que, ao fazê-lo, se transforma naquilo que condena, é preocupante. Mais desconcertante do que ver "gente de bem" (essa peculiar fauna que assim se autointitula) defendendo e apoiando atos dessa natureza, é ver que essa mesma "gente de bem" não tem consciência do quanto se aproxima, em termos essenciais, da... chamemos de "gente do mal" (que deve ser linchada, esquartejada e retalhada em público), ao apoiar e defender esse tipo de reação.
     Quem aplaude a selvageria das ruas também aplaude a selvageria do interior dos presídios. Se o bandido não foi literalmente para o inferno, a cadeia deve servir como simulacro deste. E o "sorriso sorridente de São Paulo diante da chacina" (tristemente eternizado por Caetano e Gil em Haiti, de 1993) já não é mais só paulista. Já é um sorriso maranhense, carioca, baiano, mineiro... é um sorriso brasileiro.
     Mas, como lembrava Nietzsche, "quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti."
     A recente moda dos "justiceiros" (novamente, a mais inadequada das palavras), dos criminosos presos aos postes, das cabeças decepadas em presídios, do retorno àquela violência sistêmica apontada por Foucault em Vigiar e Punir, conta com o endosso (antes silencioso, agora cada vez mais alto) dessa "gente de bem", que encontra nos Bolsonaros, Rogers, Lobões, Sheherazades, Azevedos, Constantinos et alli todo um panteão de novos profetas, capazes de verbalizar seus medos e suas estranhezas diante de um mundo que eles não são mais capazes de compreender. 
     Assim, não apenas retornamos à Idade Média, mas temos quem vibre com isso, e pior, quem nos diga que é assim que as coisas devem ser.
     Enquanto isso, os Alailtons da vida continuam a ser massacrados (qual foi mesmo o crime dele?) e a "gente de bem", que sonega impostos, que compra CD pirata, que falsifica carteira de estudante, que compra sua cannabis (de quem mesmo?), que suborna o policial quando cai na "blitz", aplaudindo e sorrindo, repete o velho bordão: bandido bom é bandido morto.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Quem mexeu no meu rolezinho?




    "Por que eu iria ficar duas horas dentro de um ônibus para fazer compras num lugar em que tudo é mais caro e ninguém me conhece?"
     Quem faz a pergunta é Evandro Farias de Almeida, adolescente de periferia, "famosinho" do Facebook (mais de 13.000 seguidores) e ídolo de uma garotada que vive uma realidade muito distante dos debates políticos que tomaram conta da mídia desde a semana passada, quando a polêmica dos "rolezinhos" teve início.
     A pergunta é pertinente não só porque demonstra o despreparo dos shopping centers em lidar com o fenômeno - que não se limita aos abusos dos seguranças nem aos receios dos lojistas, mas também à própria (equivocada) percepção de que a turma dos "rolezinhos" atravessaria a cidade para se encontrar, digamos, no Shopping JK Iguatemi - como também revela o oportunismo de alguns ideólogos de almanaque, que resolveram, à revelia da garotada, se apropriar dos "rolezinhos" para reverberar um discurso que não tem relação alguma com esses eventos.
"Rolezinho" no Shopping Guarulhos: a imagem do
despreparo para lidar com a situação.
     Não há novidade alguma nos "rolezinhos". Um grupo grande de adolescentes combina de se encontrar, fazer bagunça, beijar na boca e dar risada. Houve, porém, uma mudança de comportamento: por conta das redes sociais, os grupos se tornaram muitos maiores, e a garotada passou a correr em grupos, entoando refrões de funk ostentação. Isso assustou lojistas e clientes, é claro. Daí a reação, algo desmedida, não de todo injustificada, e pessimamente executada, por parte da polícia, dos shoppings e do Poder Judiciário.
     A repressão excessivamente pesada no Shopping Itaquera - local que dificilmente alguém elegeria como "reduto da burguesia" ou "templo da elite" - gerou revolta nos movimentos sociais. Compreensível. Igualmente compreensível é a assunção do fato como pretexto para a defesa de bandeiras historicamente consagradas por esses movimentos. O que não é admissível, por outro lado, é atribuir aos "rolezinhos" uma natureza que eles obviamente não possuem.
     A revista sãopaulo, da Folha de São Paulo, perguntou a várias pessoas "o que é um rolezinho". Vale a pena comparar essas duas respostas, que estão na mesma reportagem:

Eduardo, 17, organizador dos rolê do shopping Aricanduva
"O primeiro que a gente fez em Itaquera foi só para amigos, teve menos de 500 pessoas. Shopping é um local aberto de fácil acesso para várias pessoas de fora participar. Nosso objetivo é de jovem: pegar mulher. Até aí tudo bem, tivemos um bom resultado nisso. Falamos: 'vamos fazer o Parte 2'. Aí convidamos geral, em torno de 20 mil jovens, 10 mil confirmados. Não esperávamos tanto retorno assim. Isso antes da baderna. Como o shopping tava muito lotado, todo mundo foi pro estacionamento. De repente chegaram umas pessoas que com certeza não sabem curtir carro de som. Foi aí que começou o baile funk no estacionamento e os seguranças foram pedir para tirar o som. Educadamente. Até aí, tudo certo. Aí esses caras agrediram os seguranças. Eles tavam consumindo droga antes de o baile começar. Aí os seguranças chamaram a polícia, certo? As viaturas chegaram fazendo zigue-zague, atacando bomba de efeito moral. Todo mudo com medo foi pra dentro do shopping. O que o pessoal falou que foi arrastão não foi. O verdadeiro arrastão foi dessa galera que anarquizou o estacionamento. Esses mesmos caras entraram no shopping e começaram a roubar os próprios jovens, nós mesmos. Não invadimos loja, não teve 'saqueamentos', nada disso. As lojas estavam fechadas. Aí a polícia fez o quê? Começou a atacar spray de pimenta na nossa cara, pra poder dispersar a multidão. E deu nisso. Não vou mais porque os marginais se envolvem. Só queria pegar mulher. Eu sou estagiário em órgão público, cara, pra que eu vou roubar? Então, se for pra proteger a segurança e as pessoas de bem, está mais que certo, polícia tem que vir mesmo."

Maria Rita Kehl, psicanalista
"Toda inclusão econômica exige, em um segundo momento, o reconhecimento da pertença a uma nova classe social. Claro que os jovens da periferia não pertencem a essa classe que compra nos shoppings, mas chegaram mais perto dela. E muitos deles hoje podem comprar algumas mercadorias que estão ali. A performance dos rolezinhos funciona como denúncia da discriminação, mas não sei se eles fazem isso conscientemente ou apenas movidos pelo mal estar de saber que não são bem vindos nos templos de consumo de uma sociedade que, até o momento, só promoveu inclusão via consumo - e não via cultura, acesso a serviços públicos de qualidade etc."
    
     É evidente o descompasso entre a análise acadêmico-ideológica da psicanalista e a opinião de um dos organizadores dos "rolezinhos". Os meninos e meninas que se encontram nos shoppings querem ascender socialmente, querem beijar na boca, querem ter acesso aos bens de consumo que estão nas vitrines. Não estão nem aí para o discurso anticapitalista, até porque são francamente simpáticos ao capitalismo. Usar as distorções que o caso concreto expõe para defender as próprias bandeiras é válido e justo. Querer incluir essa garotada numa causa que obviamente não lhes interessa (e que, ao contrário, lhes causa rejeição) é intelectualmente desonesto. Falar em "denúncia inconsciente" soa ridículo.
     Apesar disso - e como já era previsível que ocorresse - a polêmica dos "rolezinhos" vem se prestando a toda sorte de discurso ideológico (ideologia de botequim), da extrema-direita à extrema-esquerda, a maioria deles tratando a meninada como rã de laboratório, sem indagar a essa juventude o que ela, de fato, quer ou pensa.
     Emblemática, nesse sentido, é a cilada fácil da demonização dos donos dos shoppings, dos lojistas e do público que frequenta tais locais.
     Ainda que o Brasil seja campeão mundial de desigualdade e que a sociedade brasileira seja indiscutivelmente racista, adotar posturas maniqueístas não contribui em nada para um debate público que eventualmente leve à superação desses problemas. Nesse sentido, se a Constituição Federal define o Brasil como um país capitalista, se garante a livre iniciativa, e se - como parece - a maioria da sociedade aceita o capitalismo, transformar lojistas e clientes em vilões ipso facto soa tão antidemocrático quanto o racismo e a exclusão social.
     Será justo demonizar o lojista que fecha as portas de seu estabelecimento ao ver uma multidão de jovens correndo e entoando hinos de funk ostentação? Será correto chamar de "elite racista" a clientela que se assusta diante de uma manifestação dessas? Será preconceituoso acreditar que nessas multidões, ainda que a maioria esteja bem intencionada e queira apenas se divertir, pessoas mal intencionadas podem se ocultar e se valer do anonimato que a multidão confere para a prática de crimes?
O "rolezinho": a difícil conciliação de
interesses diversos numa democracia.
     Se a resposta a essas perguntas for um invariável "sim", o que dizer do jovem Eduardo, organizador dos "rolezinhos", que afirma que "se for pra proteger a segurança e as pessoas de bem, está mais que certo, polícia tem que vir mesmo"?
     Indo mais além: os vendedores das lojas de shoppings, cujos salários são compostos em grande parte por comissões, também fazem parte da elite-racista-capitalista-promotora-da-exclusão-social e por isso devem ser punidos, mesmo que também morem na periferia?
     A manifestação promovida pela UNEAfro em frente ao Shopping JK Iguatemi no último sábado, dia 18, "contra a discriminação praticada pelos shoppings de São Paulo quando há restrição da entrada ao espaço e seleção, pela aparência, dos que podem entrar" levou ao fechamento do shopping. Segundo a Folha de São Paulo, "uma das lideranças da organização foi à delegacia por volta das 15h20 para registrar ocorrência de crime de racismo".
     Racismo?
     Quantos negros aparecem na fotografia abaixo? Impedir que a manifestação ocorra no interior do shopping é uma postura a ser debatida. Mas será possível falar em racismo no evento registrado nessa fotografia?
Movimento da UNEAfro em frente ao Shopping JK Iguatemi:
Proibir a entrada desses manifestantes é racismo?
    Em que essa manifestação contribuiu para o debate público sobre o racismo e, principalmente, para sua superação?
     Ainda que a postura (equivocadíssima) do Shopping JK, dias antes, de selecionar "pela aparência" (e não pela cor, o que é bem diferente) quem precisaria apresentar identificação para entrar (o que também não é a mesma coisa que proibir a entrada), mereça críticas e mostre despreparo para lidar com a situação, qual foi a contribuição dada pela manifestação da UNEAfro para fomentar um debate válido sobre a questão? As faixas levantadas pelos manifestantes, algumas com dizeres em inglês e menções ao "país da copa", demonstram que a manifestação tinha mais a intenção de causar repercussão internacional do que de promover um debate sério.
     Essa manifestação, obviamente, não tem qualquer relação com os "rolezinhos". E ainda que a causa seja justa, o oportunismo de se valer do tema dos "rolezinhos" não parecia justificável naquele local (voltando às palavras do jovem Evandro, que dão início ao texto: "Por que eu iria ficar duas horas dentro de um ônibus para fazer compras num lugar em que tudo é mais caro e ninguém me conhece?"). O movimento soou como pura manobra de massa, daquelas em que há pouco pensamento e muita histeria. Era quase possível ouvir a multidão murmurar, entre outras palavras de ordem, à moda orwelliana: "four legs good, two legs bad..."
     Os shopping centers, como a grande maioria dos estabelecimentos comerciais, sempre foram locais onde a exclusão social se mostrou com maior clareza. Contudo, se um mendigo é expulso de uma loja de rua por seguranças, os movimentos sociais não parecem se sensibilizar, por mais brutal que seja o tratamento dado. A simbologia de "templo das elites" do Shopping JK cai como uma luva para o debate que movimentos como a UNEAfro pretendem instaurar. Mas a forma escolhida não parece a melhor, no mínimo, por sua inefetividade.
     Mais do que isso: antes desses fatos, jovens de periferia que quisessem passear pelos tais "templos da elite" receberiam, quando muito, um olhar mais atento por parte dos seguranças (sim, a exclusão social, inclusive em incontáveis níveis simbólicos, existe e se manifesta). Diante da polêmica e de sua repercussão, o olhar sobre esses jovens - de regra já não muito generoso - tende a se tornar ainda mais rigoroso. Nesse funk do ativista doido, foram justamente os jovens de periferia, os protagonistas dos "rolezinhos", que perderam espaço.
     Se isso é bom - porque expõe ainda mais uma ferida social e essa exposição fomentará o debate e, por conseguinte, a busca de uma solução - ou se é ruim - porque acirra ainda mais o preconceito e a exclusão social - , cabe a cada um decidir.