terça-feira, 14 de maio de 2013

Dois assaltos



     Na última terça-feira fui assaltado. É o segundo assalto a mão armada em menos de um ano.
     Este blog não se presta, em regra, a reminiscências pessoais nem é local de terapia em grupo, mas há algo a ser dito sobre esses dois eventos que tem relação direta com muito do que escrevo por aqui. Explico-me.
     Primeiro assalto: foi logo depois do almoço, em plena luz do dia, nos Jardins. Estava próximo à delegacia, onde cheguei em menos de 20 minutos. Contei o ocorrido e acrescentei que o assaltante, armado, ainda poderia estar nos Jardins, talvez assaltando outras pessoas. A reação da polícia foi me pedir, educadamente, para aguardar numa sala de espera, enquanto atendiam uma senhora bem vestida que estava discutindo com o genro. Fiquei quase uma hora diante de uma televisão, me atualizado sobre um reality show qualquer (minha memória, caridosamente, já deletou qual era). Só consegui fazer o boletim de ocorrência no dia seguinte.
     Segundo assalto: foi às 18h20, também com o emprego de uma arma. A polícia conseguiu entrar em contato comigo cerca de três horas depois. Haviam pego os assaltantes. Meu celular foi recuperado. Meus documentos, não.
     Na delegacia, fiquei sabendo que os assaltantes eram três (apenas dois haviam me abordado) - um menor de idade (17 anos) e dois maiores. A polícia apreendeu com eles alguns bens (dentre eles meu celular) e uma arma de brinquedo. O menor, como é comum nesses casos, assumiu que havia roubado sozinho os bens. A polícia contatou a dona de outro celular, que afirmou que não iria à delegacia reconhecer ninguém. Eu só consegui falar com os policiais ao chegar à delegacia, por volta de 23h30. Tentei antes, por telefone, sem sucesso. Fui então informado que o menor havia sido encaminhado à Fundação Casa, pois havia um mandado de busca e apreensão contra ele. Como a primeira vítima se recusou a ir à delegacia e a polícia não conseguiu falar comigo imediatamente, os dois maiores foram soltos - embora, segundo me disseram, ambos tivessem passagem por roubo.
     Duas considerações sobre esses fatos.
     Primeira: ao contrário do que alguns podem imaginar, tudo o que já escrevi sobre direitos humanos, sistema carcerário e redução da maioridade penal permanece absolutamente inalterado. Pela mais óbvia das razões: a lógica - contaminada pelo sentimento - da vítima em relação aos seus agressores não serve para a análise racional (e impessoal) das políticas públicas. Posso garantir que meus sentimentos em relação aos criminosos que me assaltaram são pouco generosos. Isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é a análise racional que eu faço da criminalidade urbana e os caminhos que reputo adequados para amenizar (solucionar me parece impossível, na sociedade brutal em que vivemos - brutalidade no sentido mais amplo da palavra, entenda-se bem) os gravíssimos problemas da criminalidade urbana e da violência.
     As ideias que defendo em textos como Tribunais paralelos, Defender a lei não é defender bandidos, Alô, criançada, a polícia chegou e E agora, José? E agora, você?, as ideias que defendo em aulas, debates, palestras, conversas e jantares permanecem as mesmas. A bem da verdade, embora traumáticos, esses assaltos antes confirmam do que refutam tudo o que tenho defendido nos meus textos.
     No primeiro assalto, se a polícia tivesse considerado o assalto mais relevante do que a briga da senhora com o genro, talvez o criminoso tivesse sido capturado. Faltou vontade e competência. Simples assim.
     O segundo assalto foi ainda mais emblemático da incompetência e da ineficácia sistêmicas. Os bandidos foram presos por volta das 21h30, pelo que fui informado. Cheguei à delegacia duas horas depois. Acredito que meu depoimento teria sido mais do que suficiente para que os maiores de idade ficassem presos - afinal, eu diria à polícia que havia dois assaltantes, em lugar distinto do apontado pelo menor, e os três portavam o celular que me fora roubado. Apenas o menor permaneceu preso. Imagino que os dois maiores tenham voltado exatamente para o local onde fui roubado, e posso apostar que já assaltaram outras pessoas desde então. Fui assaltado praticamente na porta do trabalho, o que significa que posso ser roubado novamente pelas mesmas pessoas amanhã ou na semana que vem.
     As falhas não são individuais, são sistêmicas. Há bons e maus policiais, investigadores e delegados, gente dedicada e gente preguiçosa, como em todas as outras profissões. Mas o sistema é inegavelmente ineficiente, e não se restringe às autoridades policiais (cuja baixa remuneração também contribui para agravar o quadro). Em 2001, o STJ cancelou a Súmula 174, segundo a qual o uso de arma de brinquedo bastava para o aumento da pena no crime de roubo. Não me parece ser necessário muito bom senso para se concluir que, sob a mira de um revólver, a intimidação é a mesma, seja ele verdadeiro ou não. A ineficiência permeia todos os escalões do sistema.
     Daí porque reduzir a maioridade penal, endurecer as penas ou tornar as condições carcerárias (ainda) mais desumanas - enfim, adotar uma postura medieval e bárbara no trato com a criminalidade - não vai adiantar nada. Vai servir apenas para acirrar a guerra urbana em que vivemos.
     Em vez de bradar por vingança e se deliciar com o sofrimento dos detentos nas masmorras do nosso sistema penitenciário - verdadeiras fábricas de monstros, que aceitamos passivamente para depois reclamarmos da brutalidade que nos é devolvida - deveríamos exigir, simplesmente, que as leis que já existem fossem cumpridas de forma eficiente. Eu não gostaria que os sujeitos que me assaltaram fossem torturados, espancados e mortos. Mas gostaria muito que tivessem sido presos, julgados e condenados pelo roubo, cuja pena é de 4 a 10 anos. A meu ver, seria uma punição justa.
     Então, aprimorar o sistema já existente e combater suas falhas me parece mais eficaz do que apoiar a pena de morte informal nas periferias ou berrar, irracionalmente, por mudanças na lei que não melhorarão a situação. Nunca acreditei, e continuo a não acreditar, em combate à impunidade ao arrepio da lei (o que significa apenas substituir uma impunidade por outra). É a certeza da punição, não sua dureza, que inibe o crime. Não adianta nada endurecer o sistema se ele continuar ineficiente.
     E se me aferro à racionalidade e não permito que esses episódios violentos, perigosos e assustadores alterem minha visão de mundo, não é porque defendo bandidos ou gosto deles. Ajo assim porque ceder ao ódio significaria me colocar permanentemente no papel de vítima do assalto, significaria aceitar esse papel e resignar-me, amedrontado e ressentido, ao lugar onde fui colocado pelo assaltante naquele momento específico. Seria permitir que aquele momento se perpetuasse e moldasse minha vida, meu comportamento e minha visão de mundo daqui para frente. Seria, enfim, atribuir ao(s) bandido(s) o poder de determinar quem eu sou e onde eu devo ficar.
     Não pretendo dar esse poder a criminoso algum.

5 comentários:

  1. Cara, apesar de ficar muito consternado (e amendrotado também) com seu depoimento, discordo muito de suas conclusões.

    O sistema todo no Brasil é leniente com os criminosos - inclusive o das penas em abstrato também - não há pena de 4 a 10 anos de prisão para Roubo - o criminoso fica, em média, um ano e oito meses preso, mesmo reincidente. E tenho para mim que o Roubo é um dos crimes mais graves - o latrocínio é a mera consequência de uma ação em que tudo não ocorre como o esperado. Graças ao Sr. Acaso que no seu caso tudo deu certo e você está aqui escrevendo esse texto. E graças ao mesmo Sr. Acaso que no segundo assalto a arma era de brinquedo (concordo com o STJ - arma de brinquedo intimida sim, por isso é roubo, mas não qualifica, porque grave mesmo é atentar contra a vida humana).

    Ninguém defende que criminosos fiquem em masmorras fétidas - defendo, sim, que pessoas perigosas sejam excluídas do convívio social (ainda que fiquem em presídios tipo hotel cinco estrelas). Comparando com o mundo (desenvolvido ou não), o Brasil tem as penas mais brandas do mundo, é um dos únicos que não tem prisão perpétua. E a leniência da própria lei penal é um dos fatores que também leva à leniência do próprio sistema policial - para que eu, policial, vou arriscar minha vida com sujeitos perigosos se logo estarão soltos? Melhor apartar a briga da sogra mesmo...

    Partindo para o Macro, no final dos anos 90 São Paulo passou pela experiência de ter estourado em todos índices de criminalidade. Os Secretários da Segurança Pública de então eram todos defensores ferrenhos dos direitos humanos (José Afonso da Silva e Petrelluzzi). Punia-se com mais rigor o policial dito "opressor" do que os criminosos.

    Com o Saulo de Castro Abreu Filho, mudou-se a postura, a polícia certamente cometeu excessos nessa época, nunca se prendeu tanto. O resultado apareceu: ainda hoje, SP é o Estado com menores índices de criminalidade do Brasil. Todavia, Saulo não está mais lá. Volta-se à política da leniência com sujeitos perigosos, e a escalada da violência só tem aumentado a passos largos - seu depoimento só tem o efeito de "esquentar" os números frios".

    Nossas divergências: você ainda tem a mentalidade de proteger pessoas perigosas pelos problemas sociais que elas vivenciaram. Eu dou graças a Deus de você ainda estar vivo para escrever seus textos. Eu protejo os inocentes, inclusive a maioria pobre que é honesta e cumpridora de seus deveres. Essa visão Rousseauniana e, principalmente, Foucaultniana, ainda fará muitas vítimas inocentes, em escala industrial.

    A pena de 4 a 10 anos é uma piada, para quem segura uma arma da mão e pode aplicar a pena capital a qualquer momento contra sua vítima... e o agressor sabe muito bem disso (só Foucault e seus seguidores não...)

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  2. Entendo sua posição, que acho perfeitamente defensável, embora não concorde com ela. Só discordo de um ponto específico. Embora você, obviamente, não pense assim, MUITA GENTE, mas muita gente MESMO, defende que criminosos fiquem em masmorras fétidas. É uma postura, a meu ver, irracional, fruto do medo e da sensação de impotência que mesmo quem nunca foi assaltado sente ao ler o jornal ou ver TV.

    Na verdade eu não pretendo proteger pessoas perigosas, e entre proteger os bandidos e os inocentes, fico, como você, com a segunda opção. Um exemplo: embora eu ache que a progressão de regime e as saídas temporárias são boas medidas (os Datenas da vida, quando divulgam que fulano estuprou 15 velhinhas na saída temporária, nunca lembram de informar que cerca de 93% dos detentos voltam para cadeia no prazo e de forma voluntária), a forma como são implementadas costumam fazer com que inocentes (as vítimas dos 7% que não voltam, por exemplo) sejam punidos. Assim, entre punir injustamente quem cumpriu a saída temporária de forma correta e punir injustamente o restante da sociedade, acredito que a primeira opção deveria ser adotada. Nossos governantes adotam a segunda.

    Mas veja bem: defendo que não se percam de vista as razões pelas quais o sujeito foi aliciado para o crime, e que sejam traçadas políticas públicas para evitar que isso ocorra - ou que, ocorrendo, o sujeito tenha condições de deixar de ser criminoso. Não desejo isso por ele, e sim por mim, por meus amigos e pela minha família. Independentemente disso, acredito que quem comete crime deve, sim, sofrer uma punição rigorosa, principalmente se o crime for violento. São duas políticas que, a meu ver, caminham paralelamente.

    Mas não dá para não reconhecer que o sistema é injusto e excludente, que boa parte da polícia é desinteressada (reconheço as razões para isso) e que as políticas nessa área devem ser pensadas com base no possível (concordo com você, criminosos irrecuperáveis e violentos como Pedrinho Matador e Champinha deveriam ser apartados permanentemente da sociedade, mas não há estrutura nem dinheiro para fazer isso, além do fato de que outra espécie de bandido tão deletéria quanto, como os Malufs da vida, jamais passaria por isso).

    Enfim, concordamos mais do que aparenta. Mas mesmo no muito em que discordamos, alegra-me ver que a discordância aqui é construída com o cérebro e não - como acontece muito frequentemente nesse tipo de debate - com o fígado.

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  3. Em tempo: acredito que deve haver a progressão de regime, até como forma de o criminoso voltar "aos poucos" para a sociedade e se readaptar. Mas progressão de 1/6 é, como você bem observa, uma piada - de péssimo gosto, por sinal.

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  4. Acredito que o grande problema do Brasil não esta na lei em si, que na sua maior parte é concisa, o problema mesmo está na sua aplicabilidade, ou na forma com que é aplicada.
    Isso gera o sentimento de impunidade, em tempos que se discute diminuição da maioridade penal e pena de morte, fica impossível falar de perdão judicial, ou do fim social da cadeia como forma de reintegração, e não como forma de punir um inimigo público. Não cabe ao país cumprir o papel de um purgatório.
    É certo que indivíduos com transtorno de personalidade dissocial (como exemplificado: Champinha e Pedrinho Matador) mereciam um tratamento diferenciado, mas se for colocar isto em pauta, "por coincidência" os desafortunados que terão um olhar mais rígido do Estado, serão os mesmos que nunca tiveram sequer amparo do próprio.

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  5. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/05/1278885-jovem-morre-e-outro-fica-ferido-durante-dois-assaltos-na-zona-oeste-de-sp.shtml

    Sorte nada acontecer, mas outros não tiveram o mesmo final.

    Políticas públicas ineficazes, educação péssima, impunidade.
    No conjunto da obra, Brasil tá mal demais e não vejo solução nem em médio e longo prazo.

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