segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O cisco e a trave


            

         Na semana passada começou o horário eleitoral e, como sempre, o freak show dos candidatos-anões a cargos do Legislativo (no caso, candidatos a vereador) ganhou espaço não só nos programas de televisão dos partidos políticos como também nas matérias jornalísticas, nas conversas, na internet etc. A quantidade de aberrações políticas parece ter aumentado bastante neste ano, provavelmente capitaneadas pelo sucesso da eleição de Tiririca para deputado federal.
Mais do que a eleição do palhaço (não o ofendo, é a sua profissão), o que provavelmente contribuiu para a proliferação de figuras que apostam na comicidade (humor, é claro, é algo bastante subjetivo) e na caricatura foi o fato de que a vitória de Tiririca foi escorada numa campanha marcada pela completa desvinculação do discurso político tradicional e por uma assumida falta de seriedade (“vote Tiririca, pior do que está não fica”, “sabe o que faz um deputado federal? Eu também não, mas me coloca lá que eu te conto” e por aí vai). Citemos como exemplos Marquito (“esquisito por esquisito, vote no Marquito”) e a multidão de anônimos que, à falta de um programa político ou mesmo de tempo para exibir suas qualidades na televisão, adotam nomes como Elvis Não Morreu (PMDB), Bixa Muda (PRB), Perereca do Alumínio (PV), Bilú Tetéia (PT do B), Pirulito do Amor (PMN) e Pela Égua (PTB), dentre inúmeros outros. A lista, gigantesca, se estende Brasil afora e, se divulgada na íntegra, causaria problemas estomacais. Fiquemos por aqui.
Que a enxurrada desses nomes que não têm absolutamente nada a ver com o que se entende por “atuação política séria” (o adjetivo é questionável, mas enfim) é uma conseqüência inevitável do sistema proporcional de eleição de membros do Poder Legislativo (a situação piora no caso dos vereadores, mas se repete nos âmbitos estadual e federal, vide Tiririca, Clodovil Hernandes, Frank Aguiar etc.) é um fato que ninguém desconhece. Que os partidos políticos usam os votos obtidos por esses candidatos “bucha de canhão” (poucos na individualidade, mas relevantes no conjunto) para catapultar outros candidatos e obter cadeiras nas casas legislativas também é (ou deveria ser) algo conhecido de todos. Mazelas inevitáveis do sistema proporcional. A obtenção da vantagem indireta é uma das marcas da arte da política, nada a fazer a esse respeito.
Também não é novidade nenhuma o voto-piada, o voto “de protesto” que elegeu o palhaço Tiririca. Em 1959 o rinoceronte Cacareco, do Zoológico de São Paulo, recebeu 100 mil votos nas eleições para vereador (o partido mais votado daquela eleição teve menos de 95 mil votos). Em 1988 a revista Casseta Popular lançou a candidatura não oficial do Macaco Tião, um chipanzé do Zoológico do Rio de Janeiro, para a Prefeitura do Rio. Na época, as cédulas de votação eram preenchidas manualmente. Cerca de 400 mil eleitores escreveram o nome do chipanzé nas cédulas. O TSE considerou os votos nulos e Tião entrou para o Guinness como o macaco que mais recebeu votos no mundo (não deve ter tido muita concorrência). Em 2002, a equipe do Casseta e Planeta chegou a promover showmícios da candidatura à Presidência da República do personagem Seu Creisson, do fictício PÇSC (Partido Çossiáu do Seu Creisson). Os showmícios lotaram. No mesmo ano, o histriônico Enéas Carneiro, após concorrer sem sucesso por três vezes à Presidência da República, elegeu-se deputado federal com 1,57 milhão de votos. É claro que Macaco Tião e Seu Creisson eram candidatos fictícios. Enéas e Tiririca são muito reais.
Como de hábito, ao desfile dessas figuras patológicas segue-se a inevitável crítica de certa parcela “esclarecida” da sociedade. É assim desde sempre: há os candidatos-piada, esse restolho político, e há a crítica, sempre a mesma: brasileiro não sabe votar, o sistema político não é sério, não tem ninguém que presta e as demais reclamações que todos estamos cansados de escutar.
Por trás desse discurso crítico escondem-se (ou antes revelam-se) duas ideias fundamentais: 1) há uma parcela (mínima) da população que “sabe votar”, enquanto a maioria, que “não sabe”, elege os Tiriricas da vida; e 2) a opção por candidatos “sérios” demonstra um amadurecimento político do eleitor e é substancialmente melhor (em outras palavras, é um voto qualitativamente melhor) do que a escolha do candidato-piada.
Há razoável consenso em torno dessas duas ideias. Mas será que as coisas são de fato assim?
É difícil negar que pouca gente “sabe votar” – no sentido de votar com plena consciência política, principalmente em relação ao histórico e às propostas do candidato escolhido. O que não parece corresponder à realidade é essa certeza de que os que “sabem votar” (ou afirmam sabê-lo) o fazem de forma melhor do que os eleitores do Tiririca e dos seus clones.
Há muito tempo as campanhas eleitorais se tornaram uma disputa de publicitários ao invés de uma arena de debates de ideias e programas de atuação. Os “candidatos sérios” nada mais são do que produtos vendidos à população, nos programas de televisão, nos comícios (os showmícios estão proibidos) e nos cartazes que poluem as cidades. Numa sociedade que se pauta pelo consumo, faz sentido que o político seja mais um produto a ser oferecido e consumido sem maior reflexão. O eleitor não escapa à armadilha, embora a internet tenha tornado a informação acessível a todos que se dediquem a encontrá-la. Mas poucos se interessam em procurá-la.
A história brasileira é repleta de exemplos da superficialidade da relação entre candidato e eleitorado, da vassoura de Jânio Quadros à imagem populista de Adhemar de Barros, passando pela figura de João Goulart construída pela ditadura, de um incompetente radical que queria entregar o país aos comunistas. A história recente do país nada mais fez do que repetir, de forma piorada, os erros do passado.
Fernando Collor de Mello vendeu ao Brasil em 1989 a figura da renovação, do “caçador de marajás”, mas qualquer eleitor que buscasse o mínimo de informação descobriria que sua família comanda Alagoas como um feudo há décadas (assim como a de Sarney comanda o Maranhão. Sintomaticamente, as duas famílias possuem diversos jornais em seus respectivos Estados. Sintomaticamente, os dois Estados estão economicamente arruinados). A imagem que Collor (ou a equipe que dirigiu sua campanha) vendeu correspondia ao “novo”, para um país que saía de uma ditadura de mais de vinte anos (comandada por militares grisalhos e sisudos, incapazes de sorrir diante de uma câmera) e com um eleitorado que, em muitos casos, votava pela primeira vez para Presidente. O jovem, bonito e atleta (e, como observou Paulo Francis, “branco europeu”, uma afirmação cruel e elitista, mas que correspondia perfeitamente à mentalidade de muitos de seus eleitores na época) concorria com o “sapo barbudo”, iletrado, enfezado e mal vestido. Na reta final, Lula ainda foi presenteado – sob o holofote da imprensa – com uma filha bastarda. Só podia dar no que deu.
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso, batalhando a reeleição, colocou chapéu de couro e montou num jegue em Delmiro Gouveia (AL), tomou “vinho do amor” em Poços de Caldas (MG) e – façanha que o notabilizou – comeu buchada de bode em Petrolina (PE). Talvez as sequelas dessa ousadia expliquem seu segundo mandato.
Lula, cansado de perder eleições presidenciais, adotou um penteado mais comportado, uma barba mais curta e trocou as camisetas (vermelhas, justinhas) de sindicalista por ternos bem cortados. Ganhou em 2002 e 2006. Em 2010 elegeu uma completa desconhecida do grande público, Dilma Roussef.
As eleições atuais repetem o mesmo modelo. Candidatos pegam o metrô, andam de skate, comem pastel na feira. Nesse ponto, o Brasil de 2012 é o mesmo de 1989. Plus ça change, plus c’est la même chose.
Collor, FHC, Lula e Dilma fazem parte do grupo dos políticos “sérios”. Votam neles os informados, os esclarecidos e a estranhíssima fauna dos “formadores de opinião”. Mas em que os votos nesses candidatos – que concorreram ao cargo mais importante do país (e venceram!) diferem, qualitativamente, do voto-piada no Tiririca, no Clodovil, no Enéas ou na Mulher-Pêra?
Claro que há uma parcela reduzida da população que se informa, estuda o passado, as realizações, as ideias, a plataforma e o caráter do candidato - e que vota com base no conhecimento adquirido. Mas, do universo de eleitores brasileiros, quantos conhecem o candidato e quantos “compram o produto” (que, ao contrário dos demais bens de consumo, não se devolve quando se revela estragado)?
E também é óbvio que o fenômeno não se restringe ao Brasil. George W. Bush, um dos Presidentes mais incompetentes que os Estados Unidos já tiveram, se reelegeu em 2005 às custas da “guerra contra o terror”. Embora o 11 de setembro tenha ocorrido em 2001, a invasão ao Iraque ocorreu em 2003. Bush derrotou John Kerry no ano seguinte. Barack Obama, o perfeito produto de marketing (o que não retira seus inegáveis méritos), derrotou o conservador John McCain em 4 de novembro de 2008, menos de dois meses após a quebra do banco Lehman Brothers, evento tido como o auge da crise financeira de 2008. Coincidências? Pouco provável.
Embora o fenômeno seja mundial, a superficialidade com que o brasileiro acompanha o cotidiano político é preocupante. As eleições presidenciais de 2010 computaram 99.463.645 votos válidos no segundo turno, em novembro. Oito meses antes, em março, a final do Big Brother Brasil 10 contou com 154.878.460 votos. Quando a votação de um programa televisivo sem conteúdo algum supera em 50% a votação para Presidente da República, precisamos nos preocupar – e muito.
Segundo a ONU, o Brasil é o quarto país mais desigual da América Latina (perde apenas para Guatemala, Honduras e Colômbia, os três paupérrimos). E a América Latina é a região mais desigual do mundo (ganhando até mesmo da África). Nessa situação, não dá para levar a política na brincadeira.
E se o voto-piada, o voto-protesto (se se pode chamar de protesto votar num sujeito que afirma não saber o que fará no cargo que ocupará) são prejudiciais ao avanço político do Brasil, o “voto sério”, que de sério só tem a moldura, é ainda mais perigoso, porque – ao contrário do voto-piada – passa a ideia de uma conscientização e um amadurecimento políticos que, no fundo, não existem. Os muitos que criticam os votos dados ao Tiririca e afins deveriam atentar para as reais motivações de suas próprias escolhas, de seus próprios votos. Haverá assim tanta diferença entre uns e outros?
São Mateus, no conhecido Sermão da Montanha, adverte para que primeiro se tire a trave do próprio olho, antes de tentar tirar o cisco do olho alheio. Dois mil anos depois, do outro lado do mundo, nesse nosso Brasil, o conselho ainda é válido – e como todos os bons conselhos, permanece ignorado.

Obs. A ilustração é do sempre genial Angeli.


6 comentários:

  1. O que me preocupa, além da situação colocada é a saída para a questão e se existe saída, na cultura onde para todo o "discurso" existe um produto, e a figurão prevalece sobre a ideologia do partido, me questiono será que a ideologia do partido também não seria um produto? a vida política dos candidatos e plataformas de governo também não seriam para aqueles que realizam tal pesquisa uma propaganda, uma jogada de marketing, em outras palavras é possível que além do disposto nos "bancos de dados" de uma hipotética pesquisa exista nos bastidores uma realidade desconhecida?

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    1. Adão, não há conteúdo sem forma. É claro que todo programa político é feito numa linguagem que se pretende sedutora, mas em última análise, quando votamos conscientemente, votamos na ideia, no programa, na proposta que nos parece melhor para a sociedade. Não deixa de ser um produto, mas em termos distintos dos candidatos que nos são apresentados. Neles, não votamos com a razão, mas com a emoção (com uma emoção bem superficial, aliás).

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  2. Ao olhar para o passado do Brasil é possível imaginar o seguinte comparativo: para cada 100 anos, 1 ano. A criança chamada Brasil, tem hoje cinco anos. Nesta fase a criança faz muitas perguntas. Pegunta o tempo tudo, sobre tudo. Perguntas sem sentido para quem responde (a mãe, principalmente). Perguntas sobre algo que aconteceu a tanto tempo que você nem lembrava mais. Perguntas, perguntas e mais perguntas... Passado um tempo (alguns anos, [e verdade), a criança começa a formar sua opinião. Nem sempre essa opinião coincide com a de quem lhe orientou, mas o importante é que houve o necessário amadurecimento. Acredito, sinceramente, que nosso pais caminha para o amadurecimento, mas não sem antes fazer algumas besteiras... Parabéns pelo artigo.

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    1. Concordo, Ester. Caminhamos a passos trôpegos, mas para frente. Mas como na infância, algumas topadas doem mais do que outras.

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  3. Concordo com todos os amigos. Acredito sobretudo que essa forma "irresponsável" de votar trata-se também de uma visão muito pessoal e egoísta de uma grande parcela de eleitores, sobretudo sempre se partiu da seguinte lógica: "o que vou ganhar votando nesse ou naquele candidato", com isso o que vimos ao longo de nossa história foi uma sequencia de políticos altamente incapazes e tão egoístas quanto os mesmos eleitores que o elegeram, vejo esses candidatos presentes como uma alternativa de protesto para aqueles que já se "cansaram" de tanto votar e não ter o resultado esperado.
    Mas acredito sobretudo que ao tentarmos olhar para aquele que realmente possa fazer algo relevante ou trocando em miúdos, o menos pior, mas que possa fazer algo por quem mais necessite, acredito que estaremos mais próximos de uma forma de governo mais íntegra e igualitária. Bem, esse é o meu desejo. Parabéns René pelo artigo !!

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    1. Obrigado, grande amigo. É isso mesmo, mas votar sem consciência porque os votos anteriores não levaram ao resultado esperado é como anular o voto - não leva a resultado nenhum e só piora o que já está ruim.

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