segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Esquizofrenia carcerária


Cela de delegacia interditada em Miranda do Norte (MA).
No alto, urubus atraídos pelo mau cheiro.

     Há algo de profundamente esquizofrênico na relação entre a sociedade brasileira e sua população carcerária.
     O primeiro mês de 2013 foi marcado por uma série de denúncias de maus-tratos e violações de direitos de presos.
     Logo nos primeiros dias do ano, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo recebeu uma denúncia de  tortura contra 52 presos do Complexo Prisional de Xuri. Segundo a denúncia, a tortura teria ocorrido em 02 de janeiro. Após os presos reclamarem de falta de água, um grupo de agentes penitenciários os colocou em um pátio e os obrigou a ficar sentados, nus, por duas horas no chão de cimento quente. Todos tiveram queimaduras nas nádegas. Depois disso as visitas foram suspensas e os presos foram isolados dos demais, sem direito a atendimento médico.
     Dias depois, no Maranhão, uma juíza determinou a interdição de quatro celas de um delegacia de Miranda do Norte, comparando-as a canis. Segundo a juíza, as celas são escuras, têm lixo e odor de fezes e urina, atraindo urubus, não havia colchão nem água potável. Nas palavras da juíza, "não existe outra definição a não ser canil. Seres humanos são tratados como cães ali. A cela é tão escura que nem possibilita ver quem está dentro. Há muita sujeira. (...) A água é muito escura. Não é possível que um ser humano beba aquilo. É um local totalmente escuro, insalubre e sem condições de manter seres humanos."
     Qualquer um sabe que esses dois fatos não são isolados, e que casos similares ocorrem Brasil afora. Mas isso parece incomodar pouca gente. Na verdade, uma parcela significativa da sociedade não só aprova, mas se delicia quando fatos assim são divulgados - o que é facilmente perceptível na leitura dos comentários feitos pelos internautas nas notícias acima.
     Curiosamente, quem defende esse tratamento desumano não se dá conta da profunda contradição que essa posição encerra. Endossar a brutalização e a tortura do criminoso é adotar a postura e os valores que, supostamente, o próprio criminoso tem e que justificariam esse tratamento.
     A resposta a esse tipo de crítica é sempre a mesma - o preso cometeu um crime medonho, não tratou seu semelhante como um ser humano, logo, deve receber o mesmo tratamento.
     Há uma falha brutal, óbvia e, paradoxalmente, pouco percebida nesse raciocínio. Ela surge quando se pergunta: por que e para que tratar de forma desumana o preso, brutalizá-lo, bestializá-lo?
     A resposta ao "por quê" é relativamente simples - ele cometeu um crime grave, e por isso deve "sofrer". Para muitos, o cumprimento da pena não é "sofrimento" suficiente, então a complementação surge nas torturas, nas condições carcerárias medievais etc. Em suma, é a Lei de Talião, o "olho por olho, dente por dente". Só que a Lei de Talião foi superada há séculos, e não combina com o mundo civilizado. O "olho por olho, dente por dente" não devolve à vítima do crime o bem ou o parente perdido, não gera benefício algum para a vítima ou a sociedade. É, pura e simplesmente, vingança, nada mais.
     A resposta ao "para quê" é muito mais complexa. Qual o objetivo, a finalidade de desumanizar e torturar alguém que está preso por um crime grave? Talvez a resposta mais comum - e rasteira - seja: "para que ele aprenda e não faça de novo". A pena seria tão dura, tão cruel, que inibiria o criminoso de praticar novos crimes. Mas a realidade já mostrou que isso não acontece. Brutalizar um ser humano para que ele se ressocialize é uma ideia tão ilógica quanto ineficaz.
     Em teoria, uma pena criminal tem três funções: 1) retribuição (o mal da pena como consequência do mal do crime); 2) prevenção, tanto geral (como exemplo para a sociedade) quanto individual (como desestímulo à prática de outros crimes pelo apenado); e 3) ressocialização do preso. Nada disso funciona na prática. Males não se equivalem (o consolo de alguém que perdeu um parente no assalto ao ver o criminoso preso, ou executado, não equivale à presença da pessoa que se foi), e penas cruéis nunca foram capazes de inibir a criminalidade (que só aumenta). Os efeitos práticos da prevenção geral são ínfimos, já que a violência e a criminalidade crescem a cada dia (e só podem ser efetivamente combatidas com políticas públicas preventivas, e não repressivas), e os da prevenção individual são inexistentes - as cadeias são escolas do crime, e o ex-presidiário geralmente não é aceito pelo mercado de trabalho ao sair, sendo praticamente empurrado, via estigmatização, de volta para o mundo do crime. Ressocialização, mesmo em países com sistemas carcerários eficientes, é difícil. No caso das masmorras brasileiras, é impossível - alguém consegue imaginar que um detento que passe longo tempo em celas como a da foto acima saia do sistema melhor do que entrou?
     Surpreendentemente, quem defende a crueldade contra o criminoso como método punitivo não percebe que se coloca na mesma posição do criminoso. Se eu desnecessariamente inflijo o mal (a tortura, a brutalização) a alguém que não conheço, sem que haja propósito ou finalidade válidos, o que me torna diferente do bandido que eu pretendo punir? E se for assim, por que ele deve ser punido e eu não?
     A prisão é um mal necessário, pois ainda não conseguimos criar uma forma menos pior de lidar com crimes violentos e indivíduos perigosos. Mas achar que prender alguém em condições mínimas de dignidade é "dar hotel a bandido" é uma estupidez, e nunca ouvi essa frase de alguém que já tenha sido privado de sua liberdade. Cecília Meireles escreveu: "liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta e que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda". Quem acha que prisões dignas são "hotéis de bandidos" deveria tentar explicar por que os presos vivem tentando fugir, já que têm moradia e alimentação pagas pelo Estado. Todo ser humano, bom ou mau, tem vocação natural para a liberdade física. Subtrair a alguém o exercício dessa vocação não é pouca coisa.
     Luiz Flávio Gomes, em prefácio à obra Falência da pena de prisão, de Cezar Roberto Bitencourt, afirma que "ao lado da miséria, a prisão é talvez a maior lacra da humanidade nesta virada de século e de milênio", e que "tendo em vista que ainda dela não podemos dispor, pelo menos devemos lutar pela sua progressiva humanização, (...) porque a prisão avilta, desmoraliza, denigre e embrutece o apenado".
     Privar algumas pessoas de sua liberdade é um mal necessário. Brutalizá-las apenas para saciar nossos piores apetites, não.
     

3 comentários:

  1. Muito bom, René, como sempre!!

    A respeito deste assunto, penso o seguinte: tendo a crer que, em geral, as pessoas não costumam desejar a outrem mal do qual possam também um dia ser vítimas.

    Logo, só posso concluir que quem aplaude os maus tratos e a situação desumana dos presídios brasileiros o faz porque acredita QUE NUNCA PASSARÁ POR ISSO. Assim, não há problema em desejar tal mal a um terceiro, já que se sabe nunca dele irá padecer.

    O problema está justamente nos motivos que dão a certeza ao defensor das cadeias-canis de que nunca as frequentará: ser um "cidadão de bem", que leva uma "vida reta", e por isso não ter que se preocupar com isso; ou - e aqui o mais nefasto motivo - a certeza de que, ainda que cometa um deslize, dificilmente será entregue ao sistema penitenciário, pois poderá contratar advogados, o qual se valerá de todos os recursos processuais cabíveis para postergar a aplicação da pena, etc.

    Enfim, só há quem pense assim por existir não a segurança de impunidade, mas a certeza de que, mesmo apenado, a pena não será cumprida nestes "estabelecimentos". Alguns porcos ainda não mais iguais que os outros no Brasil...

    Por fim, vale citar uma declaração do nosso Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que digo com maior orgulho ter sido meu professor na graduação: "Do fundo do meu coração, se fosse para cumprir muitos anos em alguma prisão nossa, eu preferia morrer".

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, meu caro.
    Concordo integralmente com você. Mas é mais do que a certeza de que a pena não será daquele jeito, é também a certeza de que se é essencialmente melhor do que o outro, que o outro é um monstro e que por isso merece sofrer. Claro que ninguém nunca para pra pensar como o monstro foi criado (já escrevi o "E agora, José?" sobre o tema, e em breve escreverei outro texto sobre isso).
    E como eu digo às vezes, todos somos criminosos potenciais. A fome pode nos levar a roubar, a vingança e até a distração podem nos levar a matar (podemos atropelar alguém enquanto trocamos a estação de rádio no carro... é essa a distância entre nós e o homicídio).
    Além disso tudo, há alguns aspectos profundamente perturbadores em nossa própria natureza, que podem aflorar com facilidade, desde que apertem os botões corretos. O que, por sinal, é objeto do próximo texto do blog.
    Abraços!

    ResponderExcluir
  3. Acho que vai além da situação de pensar que isso não ocorrerá com as pessoas por elas pensarem que isso não as afetará.
    As pessoas hoje estão sem sentimentos, está realmente uma selva "fria e luxuriosa, vaidosa e ambiciosa", em que ninguém se importa com ninguém, só com os "seus", se é que ainda se importam. Tudo está voltado para o dinheiro, a humanidade, o povo brasileiro, só quer saber em "grana".
    Essa ganância exorbitante (mesmo que a ganância já seja), acaba dando lugar a que pessoas como "Datenas" penetrem firmemente na mesta da sociedade, pois o que existe hoje é o individualismo. As pessoas passam no Centro, veem pessoas morrendo de fome, ou por dependência química ou alcoolica, e passam como se fossem cachorros, mas nem cachorros são tratados assim.
    Imagine com um encarcerado que por algum motivo, seja ele por uma necessidade ou simplesmente crueldade. Ninguém quer saber, são essas as pessoas a favor da pena de morte, "pois o que não serve, jogamos fora".

    ResponderExcluir