terça-feira, 19 de março de 2013

A perpetuação da imbecilidade


Trote na UFMG. A "Caloura Chica da Silva"

    É inevitável: todo começo de ano letivo traz de volta uma das práticas mais idiotas de que se tem notícia: o trote. A ideia de celebração e confraternização entre calouros e veteranos há muito tempo deu lugar a um rito de passagem violento, estúpido e sem sentido. Ainda que o chamado trote solidário venha ganhando mais espaço a cada dia, nada parece capaz de eliminar o gosto pela barbárie de alguns veteranos. Sintomaticamente, é nas universidades mais concorridas - e que por isso, ao menos em tese, deveriam selecionar os candidatos mais capazes, aquela tal de "elite" - que a falta de bom senso se mostra de forma mais evidente.
"É só brincadeira", como sempre se diz.
     A pérola da semana foi a divulgação do trote realizado pelos alunos de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que uma aluna foi pintada de preto, obrigada a carregar um cartaz onde se lia "Caloura Chica da Silva", acorrentada e arrastada pelo campus por um veterano ostentando um sorriso imbecil. No mesmo trote, outros veteranos amarraram um calouro a uma viga e fizeram a saudação nazista. Um dos veteranos chegou ao ponto de pintar (ou deixar crescer, a foto não permite ver com clareza) um bigodinho à moda de Hitler.
     Semanas antes, alunos do curso de medicina do campus da USP de São Carlos se envolveram num confronto com a Frente Feminista de São Carlos. A Frente protestava contra o "Miss Bixete", um concurso a que as calouras são obrigadas a desfilar com os seios à mostra e a participar de provas em que precisam chupar picolés simulando sexo oral. A resposta dos futuros médicos formados pela USP foi atirar objetos e cerveja nas manifestantes, além de tirarem a roupa em frente às câmeras que registravam o fato. Muito civilizado.
     Nos dois casos, as fotos rodaram a internet e causaram a polêmica esperada. As reações foram as de sempre, já estão padronizadas: era uma brincadeira (?), uma confraternização (???), só participa quem quer (sintomaticamente, nas duas fotos divulgadas na imprensa - e que estão neste post - os calouros não parecem estar se divertindo muito, ao contrário dos sorridentes veteranos). A reação da universidade também é sempre a mesma: a universidade não apoia esse tipo de atitude, vai instaurar uma sindicância para apurar responsabilidades, o trote é proibido no campus. E, no ano que vem, tudo acontecerá novamente, e esses mesmos discursos sairão de suas gavetas empoeiradas de volta paras os jornais e a internet. Pelo menos no caso de São Carlos os estudantes que se expuseram às câmeras foram indiciados por ato obsceno. A polícia e o Ministério Público fizeram o que a universidade deveria fazer e não fez - reagir.
     A combinação de juventude, álcool e aglomerações em que a responsabilidade individual se dilui num clima de "tudo é festa" - e, portanto, tudo é permitido - já levou a tragédias, como a morte do estudante Edison Tsung Chi Hsuen, em 1999. Calouro de medicina, Edison morreu afogado na piscina da Atlética da USP, durante um trote. Em 2006, o STJ entendeu que a tragédia não passou de "uma brincadeira - de muito mau gosto - em uma festa de estudantes", e trancou a ação penal contra os veteranos acusados pela morte. 
     "Uma brincadeira de muito mau gosto". Digam isso aos pais de Edison.
     O primeiro trote de que se tem notícia no Brasil ocorreu em 1831, na Faculdade de Direito de Olinda, e terminou com a morte de um calouro. Essa nossa estreia macabra deveria ter servido de alerta, mas não serviu. Nossa história é marcada por trotes violentos com consequências trágicas.
Faculdade de medicina da USP em São Carlos.
A arte do sorriso idiota.
     Em 1962, na PUC, um calouro foi obrigado a se despir e a entrar num barril cheio de água misturada com cal - o estudante sofreu queimaduras por todo o corpo e morreu; em 1993, na faculdade de engenharia da UNESP, um calouro foi obrigado a amarrar um saco de 7 quilos em seus órgãos genitais; em 1998, estudantes de medicina - de medicina! - do campus de Sorocaba da PUC atearam fogo a um calouro que dormia num sofá; em 2000, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), veteranos obrigaram um calouro a deitar sobre um formigueiro - ele levou mais de 250 picadas e precisou ser internado; em 2010, calouros da Unifeb, de Barretos, foram recebidos com jatos de creolina e tiveram queimaduras de primeiro grau.
     Há inúmeras outras histórias como essas. É comum que calouros que não queiram participar do trote sejam espancados, às vezes com consequências trágicas.
     Vivemos em um país no qual, ao contrário do que ocorre em nações mais civilizadas, o diploma universitário é sobrevalorizado. Não há um investimento nos cursos técnicos (como ocorre na Europa e nos EUA). Segundo o CNJ, o Brasil tem 1.240 cursos superiores de Direito, enquanto o resto do planeta tem 1.100. O diploma universitário ainda é, culturalmente, um diferencial que, no Brasil, tem mais peso do que em outros lugares.
     O ingresso na universidade - ainda mais quando se trata de universidades muito disputadas - é uma conquista a ser comemorada. Deve ser fonte de alegria e não de terror. O fato de nossos futuros médicos, engenheiros e juízes - "aselite", como se diz por aí - entenderem que a confraternização com calouros é sinônimo de violência, humilhação, racismo e sexismo, dá uma ideia nada agradável do país e do futuro que estamos a construir.

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