quinta-feira, 28 de março de 2013

Danuza, a piadista


Danuza Leão: não entenderam a crítica social escondida em seu artigo.


     Como diria o Caetano de 68, "vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada".
     Era uma piada, só isso. Como é possível que vocês não tenham percebido?
     O artigo A PEC das empregadas, da socialite e, segundo alguns, escritora Danuza Leão, publicado em 25 de março na Folha de São Paulo, vem recebendo furiosas críticas nas redes sociais e em blogs como o Blog da Cidadania. Muita gente se revoltou com o modo pelo qual Danuza criticou a proposta de emenda constitucional que atribuirá às empregadas domésticas muitos dos direitos que os demais trabalhadores já têm.
     No entanto, faltou aos críticos de Danuza a argúcia de perceber que o tom supostamente elitista do artigo não passou de uma estratégia genial da socialite para criticar o regime quase escravocrata que, até cerca de 10 anos atrás, era a realidade das empregadas domésticas no Brasil.
     Basta ler com atenção o primeiro parágrafo do texto, quando Danuza afirma que como a PEC "foi mal concebida, assim será difícil de ser cumprida, e aí todos vão perder."
     Perceberam a sutileza do argumento? Desde a abolição as domésticas são a extensão da figura da mucama (como, aliás, já mencionei num texto anterior), e nem o Constituinte de 1988 teve coragem para mexer nesse regime perverso, negando às empregadas direitos trabalhistas garantidos a todas as demais categorias profissionais. Ao afirmar que se a PEC for aprovada "todos vão perder" (incluindo nesse "todos", portanto, também as empregadas domésticas), Danuza deixa claro que está brincando. Porque, obviamente, nenhum vertebrado com um pingo de autocrítica defenderia a sério uma bobagem dessas em público - ainda mais em um jornal de grande circulação.
     Mas a genialidade da socialite vai além, ao comparar a realidade brasileira com a França e os Estados Unidos, onde, segundo Danuza, "quem mora em apartamento de dois quartos e sala, é considerada privilegiada, mas nenhum deles tem área de serviço nem quarto de empregada", enquanto que "no Brasil, muitos apartamentos de quarto e sala têm quarto de empregada, e se a profissional mora no emprego, fica difícil estipular o que é hora extra."
     Notaram com que finesse a crítica social é inserida numa ideia aparentemente elitista?
     Não sei quantos apartamentos de quarto e sala Danuza conhece. Morei em alguns, e nenhum deles tinha quarto de empregada. Mas mesmo os apartamentos modernos de dois, três ou quatro quartos têm dependências de empregada que mais parecem armários. Danuza afirma não apenas que quem mora em apartamentos de quarto e sala em regra terá empregadas que dormem no serviço, mas também que é possível acomodar um ser humano naqueles cubículos. Como é possível não notar a crítica a essas despensas chamadas de quartos, travestida num discurso claramente incompatível com a realidade? 
     Mas o lado comediante de Danuza se revela até para os mais distraídos na comparação entre as creches públicas da França e a inexistência dessas creches para as crianças de classe média (não para os filhos das domésticas, notem bem!) no Brasil: "Na França, quando um casal normal, em que os dois trabalham, têm um filho, existem creches do governo (de graça) que faz com que uma babá não seja necessária, mas no Brasil? Ou a mãe larga o emprego para cuidar do filho ou tem que ser uma executiva de salário altíssimo para poder pagar uma creche particular ou uma babá em tempo integral, olha a complicação."
     Pois, é, olha a complicação! E como a própria babá não tem o salário altíssimo de uma executiva e também tem filhos, quem é que cuida do filho da babá? É preciso alguma perspicácia para perceber o que Danuza quis de fato dizer. Afinal, por que ela menciona a França e não os Estados Unidos? Porque nos EUA as jovens de classe média ganham seus trocados trabalhando como... babás! Gênio! Humor inteligente é para quem sabe ler nas entrelinhas, ora bolas!
     Enfim, parafraseando a revista Marie Claire, que, demonstrando profundo conhecimento sobre a luta pelos direitos dos negros, afirmou que quem criticou o desfile de Ronaldo Fraga não entende de negros, é preciso reconhecer: quem criticou o artigo da socialite quase socialista (sua preocupação com o desemprego das domésticas chega a emocionar) simplesmente não entende nada de humor, nem de babás, nem de Brasil, nem de França, nem de Estados Unidos, nem de Danuza Leão.
     É essa falta de bom humor que leva algumas pessoas a enxergar racismo num inocente trote da UFMG ou na declaração, tão esclarecedora, de um aluno daquela universidade, de que "quando eles pintaram a caloura de escravo, em momento algum quiseram ofender, porque na nossa faculdade nós temos amigos negros, o símbolo da nossa atlética é um macacão... se ela fosse racista, ela usaria esse símbolo para algo ruim...". Apenas gente amarga e sem senso de humor é incapaz de enxergar o afeto e a solidariedade que existem na comparação entre um negro e um macacão, quando essa comparação é o símbolo de uma atlética e não de "algo ruim".
     Então, caros críticos e detratores da pobre colunista cheia de boas intenções e consciência social, antes de concluir que Danuza é elitista, inculta, egoísta e vil, entendam a severa crítica ao sistema disfarçada na fina ironia e no sutil humor da socialite. Afinal, precisamos partir do pressuposto de que pessoas minimamente instruídas não escreveriam certos descalabros a sério. Se assim fosse, teríamos de concordar com o subversivo Quino, que, numa das tiras da Mafalda, indaga: "O mundo tem 6 bilhões de pessoas. Mas quantos são seres humanos?"

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