segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Domingo Ilegal

Shirley Temple em 1933.


       
     O dançarino ondula o corpo de forma sensual, enquanto a plateia feminina grita e assobia. O dançarino simula o vaivém do ato sexual, desliza a mão pelo peito enquanto rebola, acompanhado por "dançarinas sensuais" (chamemos assim). O público feminino delira. A mãe orgulhosa aplaude.
Espera aí.
A mãe aplaude?
Pois é. O dançarino é uma criança de seus quatro ou cinco anos.
     Ontem, diante da televisão, tive o desprazer de me deparar com "Nicolas, o novo fenômeno da internet", requebrando-se ao som de Camaro Amarelo, música da dupla sertaneja Munhoz & Mariano, no programa Domingo Legal, apresentado por Celso Portiolli, esse arremedo de Sílvio Santos (por sua vez o arremedo de algo que não sei bem - ou não ouso - definir). A tal dupla sertaneja, sorrisos de orelha a orelha, cantava a música e executava a performance que a criança se esforçava para imitar. O público gritava, assobiava e aplaudia. O apresentador sorria encantado, sonhando com índices elevados de audiência. A mãe da criança, cheia de orgulho, assistia a tudo no palco.
Felizmente, não vi mais do que poucos minutos do programa. Mas o grotesco das imagens não me saiu da cabeça (ao contrário do que fiz em postagens anteriores, dessa vez não colocarei aqui o link do vídeo. Recuso-me, simplesmente. Quem tiver estômago para tanto que o procure).
       Mais tarde, resolvi pesquisar o caso na internet. No site do SBT, descobri o nome da dupla sertaneja, da música e da aberração-mirim. O Google me informou que não é a primeira vez que "Nicolas" se apresenta no Domingo Legal. De posse dessa informação, digitei no buscador "sbt exploração sexualidade infantil". Inacreditavelmente, um dos primeiros links que surgiram foi o do programa Conexão Repórter, também do SBT, "denunciando" a exploração da prostituição infantil. O título da reportagem? Infância roubada. Sintomático, muito sintomático.
Sobre "Nicolas, o novo fenômeno da internet", salvo links de vídeos no youtube, de páginas dedicadas ao "mundo sertanejo" (elogiando o "fenômeno") e do próprio Domingo Legal, nem uma palavra (até o momento em que publico essa postagem) - embora, pelo que pude perceber, os vídeos do garoto já estejam na internet pelo menos desde o final de agosto.
Confesso que não tenho estômago para a televisão, principalmente a aberta. Mas imaginava que a exploração explícita da sexualidade infantil, tão em voga nos anos 90 (quando o surgimento de grupos como É o Tchan! levou o SBT - sempre ele! - a criar concursos como o da "mini Carla Perez", em que menininhas de três a sete anos "desciam na boquinha da garrafa", rebolando freneticamente), havia desaparecido, ou ao menos se tornado um pouco mais disfarçada. Ontem, descobri que estava enganado.
Tenho horror a moralismos e a moralistas. Sempre que ouço alguém criticando a falta de "moral e bons costumes" dos dias atuais lembro-me da Dona Pombinha de Roque Santeiro ou dos militares que, na ditadura, perseguiam artistas de vanguarda. O patrulhamento moral é tão ruim quanto o ideológico. Mas não é moralismo exigir que pais tratem seus filhos como as crianças que são, e que não os exponham à sanha e à tara alheias.

Cartão do dia dos namorados da década
de 30, inspirado em Shirley Temple.
É claro que a exploração (mesmo que implicitamente) sexual da imagem da inocência infantil existe há muito tempo, no mínimo desde Shirley Temple. Nabokov (autor de Lolita) que o diga. Mas isso não significa que tenhamos de aceitá-la e, principalmente, que não precisemos combatê-la. Hoje em dia, o anonimato que a internet garante permite a disseminação das práticas mais bizarras, a satisfação secreta dos impulsos mais vis. Não deixa de ser paradoxal que uma sociedade que se esforça cada vez mais para combater a pedofilia aceite que uma criança de seus quatro ou cinco anos (se tanto) se comporte como um mini go-go boy num programa de televisão (e essa aceitação não se restringe à lei ou às "autoridades"; espantou-me, acima de tudo, que nenhum adulto, diante daquele espetáculo deprimente, mostrasse o mínimo desconforto, o menor constrangimento - ao contrário, todos pareciam muito empolgados com a situação. Empolgados demais, talvez).
Estou certo de que o "pequeno Nicolas" está se divertindo bastante com a notoriedade recém-adquirida, e que, como é comum nessas situações, vê tudo como uma grande brincadeira. Mas e os adultos à sua volta? Sílvio Santos e seu genérico estão capitalizando, em benefício próprio, o lado mais baixo da natureza humana; a mãe da criança, certamente sonhando com o estrelato do filho, não percebe - ou não se importa com - os riscos, inclusive psicológicos, a que a nova celebridade momentânea está exposta. Os comentários aos vídeos na internet vão de "gracinha", "sucesso" e "talentoso" até um inacreditável "gato". Críticas, não vi nenhuma. Repito: nenhuma.
Desde 1988 o Ministério Público vem se fortalecendo como instituição. Inúmeras vezes o MP extrapola suas atribuições, palpitando sobre novelas, propagandas que "humanizam animais", a conveniência de o McDonalds dar brinquedos junto com os lanches etc. Se, como diz a Constituição, a criança merece proteção especial, por que essa inércia inaceitável diante de uma situação tão grotesca?
Não sei em que pé anda esse tipo de coisa na televisão, se é ou não comum. Sei que é imoral, ilegal (fere o ECA) e inconstitucional. E que a infeliz que pariu essa criança deveria ser submetida a um exame psicotécnico, além de receber uma orientação mínima sobre como educar (verbo que lhe deve ser desconhecido) crianças nesse mundo louco. Crianças têm o direito de ser crianças. Adultos, quando se tornam pais, têm a obrigação ser adultos. Não podem tratar seus filhos como bonecas – ou como cães de circo. É impressionante constatar que, ao mesmo tempo em que a adolescência vem sendo esticada (às vezes para além dos 40 anos), a infância vem sendo encolhida. Que pessoas imaturas não saibam criar os próprios filhos já é lamentável. Que seu despreparo seja explorado por emissoras de televisão sedentas por lucro (sempre lembrando que as emissoras são concessões estatais, vinculadas portanto ao poder público, cujos ditames devem seguir) e sem um pingo de responsabilidade social é trágico.
O nome Domingo Legal nunca foi tão inadequado – em todos os sentidos.

6 comentários:

  1. É triste saber que o homem está perdendo seus valores em troca de dinheiro , fama e ostentação. Mas a tendencia é piorar, tenho 20 anos e quando acho que essa pouca vergonha que é a televisão brasileira é recente vem a tona algo tão antigo quanto eu. Ex o filme em que certa celebridade "abusa" de um menino de apenas 13 anos, e depois se diz a rainha protetora dos baixinhos. Enfim , por todos seus posts fica claro que nossa sociedade tem uma mente tão "aberta" que os valores já se perderam, hoje o ridículo e o vulgar se tornou um meio de chamar a atenção e talvez até por uma questão financeira, ou sei lá o que se passa na cabeça desses fulanos, ser inteligente ou nerd não é "legal" o legal é ser descolado. As vezes assistimos a essas coisas e esquecemos o que se passa em volta, como os interesses dos "adultos" conforme o Sr. disse, o engraçado acaba sendo mais forte do que o absurdo e o objetivo da audiência é atingido. Creio que o Sr. ainda não deve ter assistir um programa educativo na band que passa aos domingo onde as mulheres são bem vestidas e os temas das reportagens são essenciais para os telespectadores , daria um ótimo tema para seu cabide mental. Parabéns pela abordagem do post acima.

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  2. Tive o estomago de assistir ao vídeo para contextualizar o artigo, me arrependi.... deveria ter acreditado no professor René, não consigo entender como uma coisa tão errada consegue arrancar tantos sorrisos das pessoas e como uma emissora de TV, que teoricamente teria uma responsabilidade quanto ao conteúdo veiculado pode deixar no ar um programa-aberração como o domingo legal. Quando as pessoas entenderão que isso não é "bonitinho" e sim um abuso múltiplo à uma CRIANÇA, essa que não faz a menor ideia do que esta acontecendo.

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  3. Infelizmente músicas de duplo sentido cada vez mais tornam-se febre entre as crianças. Não sei se os pais acham graça ou simplesmente acham que já que a criança não entende não há problema.
    Raro hoje é encontrar uma criança que seja criança de verdade e não um "mini-adulto"...

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  4. É triste viver em uma sociedade que atitudes que causam repulsa se tornando tão aceitáveis e comuns. Me lembro da época do É o Tchan, tinha aproximadamente essa idade também, e me lembro que o ápice das festas infantis era quando começava a tocar essas musicas e os pais incentivavam seus filhos a dançar e chamar atenção. Hoje vejo essas crianças já adultas, ou adolescentes, ensinando o mesmo para os seus filhos, que infelizmente vão passar isso para frente. Por isso devemos desligar a televisão e pensar um pouco por sozinhos.
    Ótimo trabalho René, adoro as postagens.

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  5. Obrigado a todos pelos comentários e pelos elogios ao blog. O último comentário (identifiquem-se, por favor!) tocou num ponto importante: é bem capaz que a "mamãe orgulhosa" tenha sido uma mini Carla Perez no passado... o ciclo de miséria intelectual se perpetua. Medo do futuro!

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  6. O futuro daquela geração, hoje, faz É O Tchan e outras coisas terríveis do início do axé nos anos 90, início de 2000, parecerem mais inocentes: o Funk, que sem usar linguagem de duplo sentido, e indo direto ao tema, expõe ainda mais, principalmente as mulheres, o completo desprezo por qualquer pudor e respeito ao ser humano. Moralistas geralmente passam dos limites, muitas vezes ignorando o que acontece em sua própria casa para julgar o vizinho, porém, acompanhar o que a juventude (de diversas classes sociais)tem feito embalada por este "ritmo" é muito preocupante, ainda mais em dias que em que adolescentes são cada vez mais independentes, e pais, criados pela Xuxa e dançando axé, me faz perguntar hoje em dia: o que é moral? O que é respeito? Não é uma questão de ritmo musical, mas de todo um comportamento que vem hoje em dia associado a isso, e que me dá uma perspectiva muito sombria para os próximos anos...

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