quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Um policial na contramão

Esquadrão da Morte I, de Aldir Mendes de Souza (1970)
Raio-X. Acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP)


           Neste momento em que, mais uma vez, a guerra urbana entre policiais e bandidos atinge níveis de violência absurdos (eu gostaria de escrever “inéditos”, mas sabemos que não são), uma voz surge no meio da Polícia Militar de São Paulo, andando na contramão do corporativismo que marca a instituição desde o seu nascimento.
            Em junho, o Tenente-coronel Adilson Paes de Souza defendeu a dissertação A Educação em Direitos Humanos na Polícia Militar, com a qual obteve o título de Mestre pela USP. O objetivo do trabalho é entender e demonstrar por que policiais militares, embora tenham aulas de direitos humanos durante seu curso de formação, tornam-se assassinos após começarem a trabalhar nas ruas.
            Não fosse suficiente a singularidade de um policial militar dedicar-se a estudar de forma aprofundada e em nível acadêmico a delicada questão dos direitos humanos no Brasil, impressiona a coragem de Paes de Souza de refutar qualquer espécie de visão corporativista ou protecionista da Polícia Militar.
             O tenente não tem receio de afirmar que uma conduta abusiva, em que dez policiais agrediram uma pessoa ferida, foi um ato “de uma covardia e de uma falta de respeito pela vida e pela dignidade humana sem precedentes”, salientando que “uma única morte resultante de execução sumária extrajudicial já é, por si só, um absurdo” (p. 18); em relação às cada vez mais comuns “resistências seguidas de morte”, afirma que “perpetua-se, por meio de versões e explicações muitas vezes esdrúxulas, um panorama no qual a mentira impera e os homens incumbidos pelo Estado de proteger a sociedade pairam acima de todos e com plenos poderes” (p. 35). Aponta ainda a insuficiência da carga horária da disciplina de Direitos Humanos no curso de formação de policiais, atualmente correspondente a 1,47% da carga horária total do curso (p. 63) e a falta de qualificação dos docentes militares que lecionam a disciplina (p. 68), e pondera que “dada a reduzida carga horária, não há como preparar o policial militar adequadamente para a missão de proteger a sociedade com respeito às garantias individuais, à pluralidade, à diferença e à diversidade. Qual o entendimento que ele terá sobre a sociedade e todos os seus conflitos, como é possível ser preparado para o uso adequado da autoridade de que é investido? Talvez isso explique a lacuna existente entre o ensino de direitos humanos e a dura realidade de violações desses mesmos direitos” (p. 70).
            O trabalho leva a uma conclusão inevitável: há algo de muito errado no ensino dos direitos humanos nos cursos de formação de policiais. E Paes de Souza identifica com clareza a raiz do problema: a realidade com que os policiais se deparam ao sair às ruas não é a mesma que lhes é ensinada no curso. Acuados entre o perigo inerente à própria atividade e a cultura da corporação, que incentiva e estimula o extermínio da bandidagem, os policiais deixam de ser cumpridores da lei e se tornam assassinos. Essa cultura da morte não é um acidente, é uma construção. Prova maior disso são os dois depoimentos constantes da dissertação, dos ex-policiais identificados como “Steve” e “Mike”, que, expulsos da corporação e condenados por homicídio, descrevem um cotidiano em que a violação aos direitos humanos, a tortura e o homicídio são não apenas tolerados, mas incentivados.
            A falha está, segundo Paes de Souza, no descompasso entre o que se ensina no curso e a realidade cotidiana. E ele tem razão. Embora haja outros problemas que contribuem para que a polícia adote uma cultura de guerra, não há dúvida de que a falta de um estudo sobre a realidade que o policial enfrentará, bem como de um direcionamento do curso para que o policial seja preparado para enfrentar as situações concretas que encontrará nas ruas, contribuem para que o policial se torne um assassino.
            A mudança cultural que se faz necessária para que as polícias militares deixem de ser batalhões de fuzilamento de bandidos (que devem ser presos, processados e condenados de acordo com a lei, e não executados sem julgamento, o que é também uma violação da lei) passa por essa necessária reformulação da forma como são ensinados os direitos humanos nos cursos de formação. De nada adianta conhecer a Bill of Rights de 1689, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e o significado da dignidade da pessoa humana prevista em nossa Constituição se o policial não souber lidar com um bandido ferido e já imobilizado, e se aceitar a cultura de que é melhor matá-lo do que levá-lo para a delegacia.
            De qualquer modo, é salutar que um dos defensores dessas idéias seja justamente um oficial da Polícia Militar, uma instituição marcada pelo discurso corporativista e, pelo menos por enquanto, pela política de matar primeiro e perguntar depois.
            Não tenho dúvida de que a voz de Adilson Paes de Souza é minoritária (quando não isolada) dentro da instituição. Perguntei-lhe se ele sofreu críticas ou censuras pela dissertação, e ele me disse que não, que quatro oficiais lhe telefonaram para elogiar o trabalho e que, após uma entrevista ao Jornal da Gazeta, o porta-voz da PM afirmou que aquela não era a opinião da corporação. Mas não houve críticas diretas e explícitas a seu trabalho.
            Enquanto isso, cadáveres continuam a se empilhar nas periferias e o poder público continua a apoiar as ações “rigorosamente dentro da lei”, mesmo quando essas ações resultam na morte de inocentes como o publicitário Ricardo Aquino, que, por não parar em uma blitz, foi fuzilado em julho – numa ação que o comando da PM qualificou como “tecnicamente perfeita”.
            O que resta é torcer para que o trabalho de Paes de Souza contribua para uma mudança na cultura de morte que ainda marca a Polícia Militar de São Paulo. É um passo pequeno numa longa caminhada, mas, vindo de dentro da corporação, é muito significativo.
            A dissertação provavelmente será publicada, mas enquanto isso não ocorre ela pode ser consultada na biblioteca da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco. Vale a leitura.

5 comentários:

  1. Mais um texto excelente! A questão de fundo que parece ter sido abordada de forma corajosa e abrangente na dissertação que você menciona é referente à base, ou seja, à deficiência no ensino de direitos humanos na formação dos policiais militares. Certamente bases sólidas tendem a se manter melhor, mas o desvirtuamento, como reportado, ocorre no decorrer da profissão, quando o policial sai às ruas. Ao que me pareceu, como o foco do texto é o ensino dos direitos humanos na formação dos policiais, o referido descompasso entre a preparação e a realidade poderia mesmo ser apontada como responsável pelo problema descrito. Mas após ler o texto eu fiquei me perguntando se os policiais no Brasil recebem o apoio necessário e adequado durante a profissão. Lembrei de filmes americanos, como “Os Infiltrados”, que transmitem a ideia de que lá a polícia tem à disposição apoio psicológico sério (em alguns casos o “apoio” chega a ser imposto). Minha experiência debutante em carreira pública me leva a ver com certo ceticismo eventuais respostas afirmativas. Infelizmente, parece-me, ainda não existe aqui uma cultura de apoio institucional multidisciplinar às atividades-fim. No direito temos aquela máxima: quem dá os fins dá os meios... A mudança cultural passa por aí também, certo? Abraço, Julio.

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  2. Obrigado, Julio. Mas antes de mudar a própria estrutura institucional, é preciso mudar a mentalidade e a cultura da própria corporação. Ou a mudança da estrutura provoca a da mentalidade com o tempo, sei lá. A única certeza é que a estrada para melhorar as coisas ainda é longa...

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  3. Como pai de família, cidadão, trabalhador e pagador de impostos, tenho um profundo e caro respeito por todos os integrantes da polícia civil e militar.
    O respeito aos direitos humanos já vem sendo ensinado, cultivado e praticado na polícia há muito tempo.
    Desculpe-me quem diz o contrário, mas está falando uma grande besteira!
    Temos de ter cuidado para não confundir os Direitos Humanos com os direitos dos manos, pois cada vez mais sua essência está sendo deturpada e distorcida.
    A propósito, é inocência pensar que muitos desses grupos não são financiados pelo próprio crime organizado.
    Por favor, vamos tratar os policiais com respeito, pelo menos com o mesmo respeito que temos de tratar os bandidos, assassinos, estupradores, ladrões, etc, etc, etc...
    Eles são pais (e mães) de família, cidadãos, trabalhadores e pagadores de impostos.

    rogério ramos batista

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  4. Ótimo texto, que nos leva a refletir e a discutir um problema de ordem social vigente, carregado de vestígios da era ditatorial, onde vemos discursos autoritários e repressivos, como "Quem não reagiu está vivo"...
    Porém, felicito a coragem e o comprometimento de um Militar de enfrentar um tema de grande valia e relavância para toda a sociedade, vez que faz acreditar em mudanças nas estruturas institucionais, bem como acreditar que existem "vidas" que se preocupam com outras "vidas"... Abs. Lucas!!!

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  5. Obrigado, Lucas. Realmente, a postura do tenente Adilson é surpreendente e nos leva a refletir sobre a realidade da polícia militar de uma forma inédita.

    Rogério, concordo com você em termos. Também tenho muito respeito e admiração por policiais civis e militares - afinal, são eles que nos protegem - mas não por todos. Não tenho respeito nenhum por policial que se acha acima da lei, porque homicídio desnecessário é CRIME.

    Você afirma que a polícia ensina, cultiva e pratica os direitos humanos e que "quem diz o contrário está falando uma grande besteira". Mas o post é sobre uma dissertação escrita por um POLICIAL MILITAR. As palavras que coloquei entre aspas são dele, não minhas. Ainda que minha visão de mundo mostrasse o contrário do que ele afirma (e não mostra), eu teria de reconhecer que ele conhece mais o assunto sobre o qual está falando do que eu.

    Concordamos ainda que os policiais devem ser tratados com respeito - mas só aqueles que se dão ao respeito. Quem é treinado pelo Estado para dar segurança à população e combater a criminalidade, e opta por se tornar criminoso, não merece o mesmo respeito dos muitos policiais sérios e comprometidos com a lei, que felizmente ainda existem. Por sinal, nada vi de desrespeitoso a esse policiais, nem no meu post, nem na dissertação do tenente Adilson. Aliás, sob a ótica estrutural, muitos policiais acabam sendo tão vítimas da violência sistêmica (mesmo quando a praticam) quanto aqueles contra quem a violência é praticada, bandidos ou não.

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