segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Maniqueísmo à brasileira


        
        Lamento informar, mas super-heróis, assim como o coelho da páscoa, a Grande Abóbora e os duendes que a Xuxa disse ter visto uma vez, não existem. Não existem no mundo real e, principalmente, não existem no STF.
            O julgamento do Mensalão tem chamado a atenção do Brasil, o que é muito bom. Mas a percepção pública do caso revela distorções preocupantes na interpretação da realidade.
            O Ministro Joaquim Barbosa foi subitamente alçado à condição de salvador do Brasil, de herói do povo (em setembro de 2007, por conta do Mensalão, Veja já chamava Joaquim Barbosa de herói, na capa da edição 2024), enquanto aos Ministros Lewandowski e Dias Toffoli coube o ingrato papel de vilões da história. Pululam na Internet elogios a Joaquim Barbosa, referências à sua infância difícil e às suas inegáveis conquistas (tornou-se Procurador da República, fez doutorado na Universidade de Paris-II etc.), bem como ofensas raivosas contra Lewandowski e Toffoli. Tem gente comparando Joaquim Barbosa ao Batman, pelo amor de Deus! Circula por aí uma imagem com as fotos dos onze Ministros, divididos entre “vendidos” (Lewandowski e Toffoli, que absolveram os primeiros réus do Mensalão a ser julgados) e “patriotas” (todos os demais Ministros, que condenaram esses mesmos réus). O cientista político Frederico de Almeida comentou uma dessas fotos no Facebook, sugerindo parcimônia e serenidade na análise do caso e no prejulgamento dos Ministros. Um internauta começou a ofendê-lo e chegou a ameaçar lhe dar uma surra.
            A reação simplista do público decorre do fato de que o mundo moderno se recusa a aceitar a complexidade de certas questões sociais. Criados à base de novelas e filmes americanos em que o herói é sempre ético, digno e corajoso, e o vilão é sempre bad to the bone, acostumados à falsa ideia de que o bem sempre triunfa, de que o bandido sempre vai preso e de que o Bem e o Mal são categorias facilmente discerníveis, não conseguimos analisar os fenômenos políticos sem apelar para o maniqueísmo.
            Joaquim Barbosa não é herói. Apesar de sua excelente formação acadêmica, quem acompanha o dia-a-dia do STF sabe que seus votos não têm a profundeza intelectual de um Celso de Mello nem a erudição de um Gilmar Mendes (seus colegas no Tribunal – e não há aqui nenhuma valoração sobre o caráter desses ministros, apenas sobre seu conhecimento técnico). Desde sua nomeação, em 2003, comprou brigas em público com inúmeros outros Ministros (Eros Grau, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Cezar Peluso, para ficar nos mais notórios), demonstrando um destempero e uma falta de postura incompatíveis com o cargo que ocupa, e que levaram Barbara Gancia a apelidá-lo em um artigo recente de “Dercy Gonçalves do STF”. E ao contrário do que reza a lenda, ele não é o primeiro Ministro negro no STF, e sim o terceiro (Pedro Lessa foi o primeiro, de 1907 a 1921, e Hermenegildo de Barros o segundo, de 1919 a 1937).
            Lewandowski e Toffoli têm, do ponto de vista técnico, decepcionado em seus votos. É verdade que ambos foram nomeados por Lula – mas seus detratores, ao apontar esse fato, parecem se esquecer de que Joaquim Barbosa também. E, apesar de terem inocentado os primeiros réus do Mensalão, não podem, apenas por essa razão, ser considerados vilões.
            Vá lá que todo brasileiro queira ser técnico de futebol. Mas quando entra em jogo a vida e a liberdade de réus em ações criminais, a análise dos fatos precisa ser mais racional e menos apaixonada. Ninguém, além dos Ministros e seus assistentes, analisou as cinquenta mil páginas do processo do Mensalão. Mesmo assim, pelo acompanhamento dos votos (mesmo dos que optam pela condenação), é possível perceber que a prova é fraca, praticamente só testemunhal. Do ponto de vista jurídico, os votos de Lewandowski e Toffoli estão tão amparados nas provas quanto os demais votos. Escolher uma posição para só depois fundamentá-la é o processo mental de todos os juízes em todos os casos, já diziam os realistas norte-americanos. Por que o julgamento do Mensalão seria diferente?
            Eleger super-heróis para salvar o Brasil não é novidade (Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, Lula e até Demóstenes Torres já foram colocados nesse papel), mas é inútil e perigoso. O conceito de super-herói nos coloca a todos como meros espectadores, que assistem inertes a uma batalha que não é nossa (somos só as vítimas). Atribuímos ao super-herói o encargo de resolver nossos problemas. Deixamos de ser atores da história para nos tornar parte do cenário.
            E o super-herói não salva nada nem ninguém. Mesmo que todos os mensaleiros sejam condenados, quem acredita que “nascerá um novo Brasil” com as condenações sofrerá uma tremenda decepção. Maluf, que só caminha livre no Brasil, pois se der um passo no exterior é preso pela Interpol, continuará solto – Joaquim Barbosa não chegará voando, com sua capa negra, para levá-lo à cadeia. 
       Não se trata de menosprezar a importância do julgamento nem a repercussão que ele terá para a vida política nacional. A mudança na forma de o STF analisar crimes similares é  salutar e importante, sim, e trará consequências positivas para muitos outros julgamentos pendentes, mas o Brasil não mudará da noite para o dia. O Brasil não “reencontra o rumo ético” por conta desse julgamento, como afirma pateticamente a capa da última edição de Veja. Ou alguém acredita que a corrupção no Brasil vai acabar por conta do julgamento do Mensalão?
      O STF não é o Palácio da Justiça. Parafraseando Gilberto Gil, o super-homem não virá nos restituir a glória, mudando como um deus o curso da história. Essa tarefa é da sociedade, é nossa. Nossa e de mais ninguém.

2 comentários:

  1. Caro René: Compartilho em parte sua brilhante exposição, mas acredito, sinceramente, que o "buraco é mais embaixo", parafraseando a citada Dercy Gonçalves, tão bem comparada por Bárbara Gancia (tinha que ser ela...). O que eu vejo no Judiciário Brasileiro (e pelo amor de Deus, nunca se refira à ele como "Justiça Brasileira") é um amontoado de "regras" mal feitas e mau intencionadas, que geralmente são mal aplicadas e mau interpretadas, tudo de acordo com às partes que ocupam os pólos e a "arrogância" de quem julga à causa... Infelizmente, já vivi o bastante para saber que o Judiciário Brasileiro é "burro/grático"; corrupto e extremamente elitista. Por quê o STF seria diferente??

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  2. Ester, concordo que o STF não difere em essência dos demais órgãos do Judiciário, principalmente no que tange ao processo decisório, mas creio que o mecanismo em si é não só imperfeito, mas também um mal necessário. Nos últimos anos lidei muito de perto com grandes juízes, mas também com outros que eram verdadeiros quadrúpedes. A magistratura é como todas as outras áreas profissionais: há os bons e os ótimos, os maus e os péssimos, os medianos, os dedicados e os vagabundos...

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