Na
semana passada começou o horário eleitoral e, como sempre, o freak show dos candidatos-anões a cargos
do Legislativo (no caso, candidatos a vereador) ganhou espaço não só nos
programas de televisão dos partidos políticos como também nas matérias
jornalísticas, nas conversas, na internet etc. A quantidade de aberrações
políticas parece ter aumentado bastante neste ano, provavelmente capitaneadas
pelo sucesso da eleição de Tiririca para deputado federal.
Mais do que a eleição do palhaço (não o
ofendo, é a sua profissão), o que provavelmente contribuiu para a proliferação
de figuras que apostam na comicidade (humor, é claro, é algo bastante subjetivo) e
na caricatura foi o fato de que a vitória de Tiririca foi escorada numa campanha
marcada pela completa desvinculação do discurso político tradicional e por uma
assumida falta de seriedade (“vote Tiririca, pior do que está não fica”, “sabe
o que faz um deputado federal? Eu também não, mas me coloca lá que eu te conto”
e por aí vai). Citemos como exemplos Marquito (“esquisito por esquisito, vote
no Marquito”) e a multidão de anônimos que, à falta de um programa político ou
mesmo de tempo para exibir suas qualidades na televisão, adotam nomes como Elvis
Não Morreu (PMDB), Bixa Muda (PRB), Perereca do Alumínio (PV), Bilú Tetéia (PT
do B), Pirulito do Amor (PMN) e Pela Égua (PTB), dentre inúmeros outros. A
lista, gigantesca, se estende Brasil afora e, se divulgada na íntegra, causaria
problemas estomacais. Fiquemos por aqui.
Que a enxurrada desses nomes que não têm
absolutamente nada a ver com o que se entende por “atuação política séria” (o adjetivo é questionável, mas enfim) é uma conseqüência inevitável do
sistema proporcional de eleição de membros do Poder Legislativo (a situação
piora no caso dos vereadores, mas se repete nos âmbitos estadual e federal,
vide Tiririca, Clodovil Hernandes, Frank Aguiar etc.) é um fato que ninguém
desconhece. Que os partidos políticos usam os votos obtidos por esses
candidatos “bucha de canhão” (poucos na individualidade, mas relevantes no
conjunto) para catapultar outros candidatos e obter cadeiras nas casas
legislativas também é (ou deveria ser) algo conhecido de todos. Mazelas inevitáveis do sistema
proporcional. A obtenção da vantagem indireta é uma das marcas da arte da
política, nada a fazer a esse respeito.
Também não é novidade nenhuma o
voto-piada, o voto “de protesto” que elegeu o palhaço Tiririca. Em 1959 o rinoceronte Cacareco, do Zoológico de São Paulo, recebeu 100 mil votos nas eleições para vereador (o partido mais votado daquela eleição teve menos de 95 mil votos). Em 1988 a
revista Casseta Popular lançou a candidatura não oficial do Macaco Tião, um
chipanzé do Zoológico do Rio de Janeiro, para a Prefeitura do Rio. Na época, as
cédulas de votação eram preenchidas manualmente. Cerca de 400 mil eleitores
escreveram o nome do chipanzé nas cédulas. O TSE considerou os votos nulos e
Tião entrou para o Guinness como o macaco que mais recebeu votos no mundo (não
deve ter tido muita concorrência). Em 2002, a equipe do Casseta e Planeta
chegou a promover showmícios da candidatura à Presidência da República do
personagem Seu Creisson, do fictício PÇSC (Partido Çossiáu do Seu Creisson). Os
showmícios lotaram. No mesmo ano, o histriônico Enéas Carneiro, após concorrer
sem sucesso por três vezes à Presidência da República, elegeu-se deputado
federal com 1,57 milhão de votos. É claro que Macaco Tião e Seu Creisson eram
candidatos fictícios. Enéas e Tiririca são muito reais.
Como de hábito, ao desfile dessas figuras
patológicas segue-se a inevitável crítica de certa parcela “esclarecida” da sociedade. É assim desde sempre: há os candidatos-piada, esse restolho
político, e há a crítica, sempre a mesma: brasileiro não sabe votar, o sistema
político não é sério, não tem ninguém que presta e as demais reclamações que
todos estamos cansados de escutar.
Por trás desse discurso crítico
escondem-se (ou antes revelam-se) duas ideias fundamentais: 1) há uma parcela
(mínima) da população que “sabe votar”, enquanto a maioria, que “não sabe”,
elege os Tiriricas da vida; e 2) a opção por candidatos “sérios” demonstra um
amadurecimento político do eleitor e é substancialmente melhor (em outras
palavras, é um voto qualitativamente melhor) do que a escolha do
candidato-piada.
Há razoável consenso em torno dessas duas
ideias. Mas será que as coisas são de fato assim?
É difícil negar que pouca gente “sabe
votar” – no sentido de votar com plena consciência política, principalmente em relação ao histórico e às propostas do candidato escolhido. O que não parece corresponder à
realidade é essa certeza de que os que “sabem votar” (ou afirmam sabê-lo) o
fazem de forma melhor do que os eleitores do Tiririca e dos seus clones.
Há muito tempo as campanhas eleitorais se
tornaram uma disputa de publicitários ao invés de uma arena de debates de ideias
e programas de atuação. Os “candidatos sérios” nada mais são do que produtos
vendidos à população, nos programas de televisão, nos comícios (os showmícios estão
proibidos) e nos cartazes que poluem as cidades. Numa sociedade que se pauta
pelo consumo, faz sentido que o político seja mais um produto a ser oferecido e
consumido sem maior reflexão. O eleitor não escapa à armadilha, embora a internet
tenha tornado a informação acessível a todos que se dediquem a encontrá-la. Mas
poucos se interessam em procurá-la.
A história brasileira é repleta de
exemplos da superficialidade da relação entre candidato e eleitorado, da
vassoura de Jânio Quadros à imagem populista de Adhemar de Barros, passando
pela figura de João Goulart construída pela ditadura, de um incompetente
radical que queria entregar o país aos comunistas. A história recente do país
nada mais fez do que repetir, de forma piorada, os erros do passado.
Fernando Collor de Mello vendeu ao Brasil
em 1989 a figura da renovação, do “caçador de marajás”, mas qualquer eleitor
que buscasse o mínimo de informação descobriria que sua família comanda Alagoas
como um feudo há décadas (assim como a de Sarney comanda o Maranhão.
Sintomaticamente, as duas famílias possuem diversos jornais em seus respectivos
Estados. Sintomaticamente, os dois Estados estão economicamente arruinados). A imagem que Collor (ou a equipe que dirigiu sua campanha) vendeu
correspondia ao “novo”, para um país que saía de uma ditadura de mais de vinte
anos (comandada por militares grisalhos e sisudos, incapazes de sorrir diante
de uma câmera) e com um eleitorado que, em muitos casos, votava pela primeira
vez para Presidente. O jovem, bonito e atleta (e, como observou Paulo Francis, “branco
europeu”, uma afirmação cruel e elitista, mas que correspondia perfeitamente à
mentalidade de muitos de seus eleitores na época) concorria com o “sapo
barbudo”, iletrado, enfezado e mal vestido. Na reta final, Lula ainda foi
presenteado – sob o holofote da imprensa – com uma filha bastarda. Só podia dar
no que deu.
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso, batalhando a reeleição,
colocou chapéu de couro e montou num jegue em Delmiro Gouveia (AL), tomou
“vinho do amor” em Poços de Caldas (MG) e – façanha que o notabilizou – comeu
buchada de bode em Petrolina (PE). Talvez as sequelas dessa ousadia expliquem
seu segundo mandato.
Lula, cansado de perder eleições
presidenciais, adotou um penteado mais comportado, uma barba mais curta e
trocou as camisetas (vermelhas, justinhas) de sindicalista por ternos bem
cortados. Ganhou em 2002 e 2006. Em 2010 elegeu uma completa desconhecida do
grande público, Dilma Roussef.
As eleições atuais repetem o mesmo
modelo. Candidatos pegam o metrô, andam de skate, comem pastel na feira. Nesse
ponto, o Brasil de 2012 é o mesmo de 1989. Plus
ça change, plus c’est la même chose.
Collor, FHC, Lula e Dilma fazem parte do
grupo dos políticos “sérios”. Votam neles os informados, os esclarecidos e a estranhíssima fauna dos
“formadores de opinião”. Mas em que os
votos nesses candidatos – que concorreram ao cargo mais importante do país (e
venceram!) diferem, qualitativamente, do voto-piada no Tiririca, no Clodovil,
no Enéas ou na Mulher-Pêra?
Claro que há uma parcela reduzida da
população que se informa, estuda o passado, as realizações, as ideias, a
plataforma e o caráter do candidato - e que vota com base no conhecimento adquirido. Mas, do universo de eleitores brasileiros,
quantos conhecem o candidato e quantos “compram o produto” (que, ao contrário
dos demais bens de consumo, não se devolve quando se revela estragado)?
E também é óbvio que o fenômeno não se
restringe ao Brasil. George W. Bush, um dos Presidentes mais incompetentes que
os Estados Unidos já tiveram, se reelegeu em 2005 às custas da “guerra contra o
terror”. Embora o 11 de setembro tenha ocorrido em 2001, a invasão ao Iraque
ocorreu em 2003. Bush derrotou John Kerry no ano seguinte. Barack Obama, o
perfeito produto de marketing (o que não retira seus inegáveis méritos),
derrotou o conservador John McCain em 4 de novembro de 2008, menos de dois
meses após a quebra do banco Lehman Brothers, evento tido como o auge da crise
financeira de 2008. Coincidências? Pouco provável.
Embora o fenômeno seja mundial, a
superficialidade com que o brasileiro acompanha o cotidiano político é
preocupante. As eleições presidenciais de 2010 computaram 99.463.645 votos
válidos no segundo turno, em novembro. Oito meses antes, em março, a final do
Big Brother Brasil 10 contou com 154.878.460 votos. Quando a votação de um programa
televisivo sem conteúdo algum supera em 50% a votação para Presidente da
República, precisamos nos preocupar – e muito.
Segundo a ONU, o Brasil é o quarto país
mais desigual da América Latina (perde apenas para Guatemala, Honduras e
Colômbia, os três paupérrimos). E a América Latina é a região mais desigual do
mundo (ganhando até mesmo da África). Nessa situação, não dá para levar a
política na brincadeira.
E se o voto-piada, o voto-protesto (se se
pode chamar de protesto votar num sujeito que afirma não saber o que fará no
cargo que ocupará) são prejudiciais ao avanço político do Brasil, o “voto
sério”, que de sério só tem a moldura, é ainda mais perigoso, porque – ao
contrário do voto-piada – passa a ideia de uma conscientização e um
amadurecimento políticos que, no fundo, não existem. Os muitos que criticam os
votos dados ao Tiririca e afins deveriam atentar para as reais motivações de suas próprias escolhas, de seus próprios votos. Haverá assim tanta diferença entre uns e outros?
São Mateus, no conhecido Sermão da
Montanha, adverte para que primeiro se tire a trave do próprio olho, antes de
tentar tirar o cisco do olho alheio. Dois mil anos depois, do outro lado do
mundo, nesse nosso Brasil, o conselho ainda é válido – e como todos os bons
conselhos, permanece ignorado.
Obs. A ilustração é do sempre genial Angeli.