quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Década perdida?


Os anos 2002-2012 foram uma nova década perdida?
Perdida para quem, cara-pálida?


     Há erros e erros. Existe o equívoco bem-intencionado, causado pelo desconhecimento ou por uma análise errônea de fatos e números, e existe o erro intencional, fruto da má-fé
     O artigo A década perdida, do historiador Marco Antonio Villa, publicado no Estadão no último dia de 2012, é uma verdadeira ode ao erro mal-intencionado (o artigo pode ser lido aqui).
     Villa ganhou recente notoriedade com a publicação de dois livros, ambos pela editora Leya: História das Constituições brasileiras (2011) e Men$alão - o julgamento do maior caso de corrupção da história política brasileira (2012). Eu havia comprado o primeiro, mas não o lera ainda, quando o segundo foi lançado. Nem reparei que o autor era o mesmo. Quando o lançamento de Men$alão foi divulgado, três peculiaridades me chamaram a atenção - o cifrão no título, o subtítulo e o fato - surpreendente, vindo de um historiador - de o livro ter sido lançado antes mesmo da conclusão do julgamento. Essas três circunstâncias me levaram a desconfiar da seriedade da obra, e (para minha sorte) decidi não comprá-la. E eu, que até então não havia lido a História das Constituições brasileiras, decidi ver do que se tratava.
     Deixo a crítica ao livro - mal escrito e superficial - para outra ocasião. Mas a obra revela uma tremenda ignorância do autor sobre o tema. Seria possível tratar-se de um erro do primeiro tipo, aquele cometido de boa-fé. Improvável, mas não impossível.
     O artigo no Estadão, contudo, é claramente, indiscutivelmente, um erro do segundo tipo.
     A começar pelo fato de que não existe qualquer análise da realidade brasileira na tal "década perdida" - de 2002 a 2012 - e sim um libelo raivoso contra Lula, o PT e "a proposta de governo - chamar de projeto seria um exagero". Uma brevíssima menção à crise internacional de 2008, ao "ponto de inflexão" de 2005 (com o escândalo do Mensalão) e ao crescimento do PIB de 1% em 2012 - a isso se resume a "análise" política e econômica de toda uma década.
     No entanto, basta ter algum contato com a realidade para constatar que, independentemente dos muitos escândalos de corrupção que marcaram a gestão petista no governo federal na última década, todos os indicadores econômicos e sociais melhoraram significativamente.
     A expressão "década perdida" geralmente é usada para designar o período de estagnação e recessão econômicas que marcou o Brasil (e de modo geral a América Latina) nos anos 80 - algo que um historiador não pode desconhecer. Talvez Villa sinta falta dos anos 80 - do Menudo, da gravata de teclas de piano, dos paletós com ombreiras imensas e dos cabelos desfiados. De qualquer modo, essa "segunda década perdida" parece não ter muito a ver com a primeira.
     Como a crítica de Villa sugere implicitamente uma preferência pelo modelo econômico neoliberal anterior (a era FHC), vale a pena fazer algumas comparações:
     1) Em 1995, o salário mínimo correspondia a 111 dólares; em 2002, último ano do governo FHC, correspondia a 78 dólares (queda de 23%); em 2003, no primeiro ano do governo Lula, caiu ainda mais, para 77 dólares. Em 2010, o salário mínimo correspondia a 291 dólares (aumento de 278%). Quem diz é o IBGE (veja o gráfico aqui). A partir de 1º de janeiro de 2013, o salário mínimo passou a ser de R$ 678, ou seja, mais ou menos 331 dólares;
     2) O mesmo IBGE informa que a taxa de desemprego no Brasil, em 1995, era de 8,4%, chegando a 12,2% em 2002 (aumento de 47%). De 2002 a 2012, caiu para 6,8% (queda de 44%). O gráfico do IBGE pode ser visto aqui. A menor taxa de desemprego da história brasileira foi registrada em agosto de 2011 - 4,7%. Atualmente, a taxa de desemprego está estimada em 6,7%.
     3) De acordo com o R7, FHC, em seus oito anos de governo, criou 5.016.672 empregos formais. O governo Lula, de 2003 até setembro de 2010, havia criado 14.725.039 vagas de emprego. Segundo notícia vinculada no site em 2010 (que pode ser lida aqui), "os 14,7 milhões de empregos gerados nos oito anos do governo Lula até setembro deste ano, portanto, superam a soma dos empregos gerados nos governos FHC, Itamar e Sarney, que juntos são 10,4 milhões em 15 anos. Isso sem contar com o fechamento de 2,2 milhões de vagas durante os três anos do governo Collor, que daria um saldo de 8,2 milhões de empregos em 18 anos."
    4) O índice de Gini, usado para medir o grau de desigualdade nos países, sendo o grau mínimo de desigualdade correspondente a zero e o grau máximo, correspondente a um, era de 0,5994 em 1995, chegando a 0,5886 em 2002 (queda de 1,9%). De 2002 a 2010, caiu para 0,5304 (queda de 9,9%). Até a revista VEJA, capaz de atribuir a Lula e ao PT a culpa até por eventuais diarreias de seus editores, reconheceu que houve um "avanço impressionante" - embora, ao melhor estilo VEJA, não tenha deixado de observar: "mérito do bom e velho capitalismo" (o link está aqui).
     Inúmeros outros dados sociais - o aumento do número de estudantes em universidades por conta de programas como o PROUNI, a ascensão da classe C etc. - são bem conhecidos e não precisam ser repetidos aqui.
    Antes que os conservadores comecem a uivar para a lua, já esclareço que os números que transcrevi não implicam - no contexto deste artigo - qualquer crítica à era FHC, na qual foram estabelecidas as bases que permitiram o crescimento espetacular do Brasil nas últimas décadas. FHC e Lula erraram muito, cada um a seu modo, mas os acertos de ambos superam seus erros. Aqui, os dados servem apenas para mostrar quão absurda é a alegação de que a década de 2002-2012 foi uma "década perdida".
     Marco Antonio Villa é (supostamente) um historiador. É impossível que ele desconheça esses aspectos da realidade brasileira. Por isso, sua "análise" da última década não pode ser entendida como um erro acidental e de boa-fé. Até porque o argumento de que a década foi perdida deveria vir acompanhado de algum dado econômico ou social, mínimo que fosse, que o confirmasse. Mas seu artigo não traz nada disso. É só a velha ladainha conservadora, o ranço já cansado de quem não consegue enxergar para além do próprio umbigo. Não à toa, o site Brasil 247 chamou seu artigo de "piada da década". E é mesmo. Se Villa se pretende um pensador de oposição, só podemos concluir que a oposição merecia coisa melhor.
      Se Lula foi capaz de eleger uma desconhecida do eleitorado em 2010, isso se deu justamente por conta do sucesso do modelo político-econômico que desenvolveu na última década, modelo que se mostrou mais eficiente e socialmente justo do que o anterior, ainda que com muitos defeitos (que também não faltaram ao anterior, por sinal).
     Talvez seja possível concluir que o período de 2002-2012 foi mesmo uma década perdida. Para o PSDB e o projeto neoliberal.
     
    

2 comentários:

  1. Prezado René,
    como sempre excelente texto.
    Concordo que o país melhorou e devemos muito aos últimos 2 presidentes.
    Discordo apenas que exista (ou existiu) um projeto neoliberal. O PSDB não tem sequer cacoete neoliberal e está em extinção.
    O único problema que vejo é que o Brasil não tem mais oposição. QUando o PT era oposição, o PT brigava muito contra tudo de errado que a situação fazia. Aliás, durante anos, muitas vezes PT e PSDB estavam do mesmo lado.
    Depois que o PT virou governo, não há mais oposição. Ninguém fica procurando os erros do PT. Temos uma imprensa ruim e tendenciosa que ás vezes tenta fazer este papel, o que já sabemos que não dá certo.
    Precisamos sim de oposição, independente do idealismo de direita ou esquerda, que faça o papel de se opor e propor soluções melhores que as sugeridas pela situação.
    Precisamos disso urgente!

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  2. Obrigado, Edson.
    Embora eu continue a achar que o PSDB adotou uma linha de atuação de tendência predominantemente neoliberal (privatizações, foco na eficiência em detrimento de programas sociais, Estado ausente etc.), a despeito de sua origem de centro-esquerda (seu "endireitamento", acentuado nos últimos dois anos, é lamentável e não condiz com sua história), concordo que o partido falhou no papel de oposição.
    Oposição não é só malhar por malhar. É apontar as falhas, mesmo que reconheça os méritos - porque falhas sempre existem. É apontar caminhos alternativos. Sugerir alternativas. O PSDB não fez nada disso, e a última campanha presidencial do Serra foi simplesmente vergonhosa (tentar ligar sua história à do Lula, que tinha candidata própria, foi suicídio político).
    Precisamos, sim, de uma oposição crítica e coerente, até para que na dialética do debate político visões distintas de mundo se apresentem. Agora, gente como o Villa, o Reinaldo Azevedo, o Jabor e "tutti quanti" não são oposição - são um bando de cães raivosos, sem propostas ou conteúdo, ladrando para ninguém.

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