Você não foi sorteado na loteria da vida. Nasceu no Brasil, negro e muito pobre.
Felizmente, você e seus irmãos tiveram uma mãe que, embora pobre, se esforçou para dar aos filhos carinho, atenção e o que sua experiência de mulher simples entendia ser uma boa educação. A duras penas, você, que nunca gostou muito de estudar, concluiu o ensino fundamental, numa escola pública que não ensinou muito, porque, quando havia professores, eles não conheciam bem as matérias, eram desinteressados e não tinham o respeito dos alunos.
Embora você nunca tenha, na infância e na adolescência, se envolvido com o crime, muitos dos seus amigos de bairro viraram aviões do tráfico. Você não deixou de falar com nenhum deles, manteve as amizades, mas preferiu trabalhar como empacotador num supermercado de um bairro chique. Você sempre teve muito medo da polícia, principalmente depois que seu pai, um pedreiro que tinha horror a bandido, foi morto numa chacina num boteco ao lado de casa, com outras seis pessoas. Todo mundo no bairro dizia que foram policiais à paisana que deram os tiros. O crime nunca foi esclarecido. Você tinha 13 anos.
A polícia parava você com frequência. Durante toda a adolescência foi assim. Você nunca foi espancado, mas sempre foi tratado como "bandidinho" e ouviu muitos gritos, muitas ofensas dos policiais. Sempre de cabeça baixa, apavorado e quieto, com medo de ter o mesmo destino de seu pai.
Às vezes você acompanhava sua mãe quando ela fazia a faxina em alguns apartamentos caros do bairro chique, embora as patroas claramente não gostassem da sua presença. Você até chegou a fazer amizade com o filho de uma das patroas da sua mãe, um garoto loiro que parecia muito bacana.
Um dia, enquanto você conversava com o garoto no playground do prédio, esperando a mãe terminar o serviço, ele lhe ofereceu um baseado. Seus amigos de bairro já haviam oferecido antes, mas você sempre preferiu recusar. Dessa vez, sem saber bem por quê, você aceitou. Talvez fosse a tranquilidade do amigo, o ambiente seguro e tão diferente da sua realidade. Mal o garoto acendeu o baseado, o porteiro do prédio apareceu, viu o cigarro e começou a berrar com você. Foi um escândalo. O garoto disse que você tinha lhe oferecido o baseado. Você, é claro, negou e disse a verdade. As mães foram chamadas. Ninguém acreditou em você, nem mesmo o porteiro, também negro, morador do bairro vizinho ao seu. A mãe do garoto ameaçou chamar a polícia. Você disse que tudo bem, mas sua mãe, em prantos, se ajoelhou aos pés da patroa e lhe implorou que não fizesse isso. Você sentiu raiva e pena da mãe, daquela humilhação desnecessária. Você e sua mãe foram embora sob xingamentos. Sua mãe nunca mais voltou àquele prédio.
A história do baseado chegou ao supermercado (a ex-patroa da mãe fazia compras e viu você empacotando as mercadorias no caixa) e você perdeu o emprego. Logo ficou claro que você não conseguiria outro trabalho naquele bairro.
Você via seus amigos traficantes com roupas bacanas, tênis novos, as meninas do bairro caídas por eles. Como não aparecia nenhum emprego, você decidiu aceitar o convite dos seus amigos (alguns já haviam ascendido no mundo do crime, eram temidos e respeitados) e se tornar um avião do tráfico. Você nunca segurou uma arma, seu trabalho era vender umas trouxinhas de maconha na boca e só. Uma vez, um carro esporte novinho, cheio de playboys, parou na boca e comprou quase toda a droga. Você teve a impressão de que o filho da ex-patroa estava no carro.
Você nem pensava em ficar muito tempo nessa vida, era só um bico até arrumar um emprego decente. Mas você foi preso em flagrante menos de dois meses após começar a vender a maconha. Dessa vez os policiais não se limitaram a xingar, desceram a porrada sem dó nem piedade.
Você foi jogado numa cela lotada de uma delegacia. O calor era insuportável. Você só conseguiu tomar banho depois de três semanas. Para dormir, era necessário fazer um revezamento, porque não havia espaço para que todos se deitassem ao mesmo tempo. Passaram-se meses até que você fosse transferido para um CDP, onde dividiu outra cela (também lotada) com latrocidas, assassinos e estupradores. Não foi uma convivência fácil. Mas foi um tremendo aprendizado sobre o mundo do crime. Você se tornou um especialista.
Você só foi interrogado um ano e meio após a prisão. O processo se arrastou por mais dois anos. Você foi condenado por tráfico, e pegou a pena mínima - cinco anos. Mas, depois de cumprir a pena, você ainda teve de esperar quase três anos para ser colocado em liberdade. Você reclamava com os carcereiros, dizia que já tinha cumprido sua pena, mas eles respondiam que não podiam fazer nada.
Você era outra pessoa quando saiu da prisão - amargo, embrutecido, habituado à violência. Ainda assim, você não quis voltar para o crime, foi procurar emprego. Mas ninguém dá emprego a ex-presidiário. Como você precisava sobreviver, reencontrou os amigos de infância e começou a assaltar. Você não tem mais medo de morrer - nem de matar. Se a sua vida não vale nada, por que a dos outros valeria alguma coisa?
Numa madrugada, depois de beber e se drogar (agora você é um usuário contumaz, viciou-se na prisão), você vê um carro de luxo parado no semáforo de uma rua deserta, com o vidro aberto. Você encosta ao lado da janela e aponta a arma para o motorista. Ele olha para você, assustado. É o filho da ex-patroa da sua mãe. Você berra, o cano da arma encostado na cabeça do motorista: "Desce do carro!" Ele acelera.
*****
Usei a palavra "você" 47 vezes no texto acima. Peço ao leitor que retorne ao início da narrativa e substitua "você" por "José". A concordância não se altera - o que vale para você, leitor, também vale para José. Mas a leitura será a mesma?
E agora, José? E agora, você?
Ciente de que minha opinião tem pouco a ver com o texto (que trata mais da exclusão social em si do que propriamente das drogas), me parece que a história (nada fantasiosa) retrata esse monstro criado chamado "criminalização das drogas".
ResponderExcluirO consumo de maconha é um ato grave, que põr em risco a convivência social? Não, não é nem nunca foi.
E o consumo da cocaína? Causa perturbação social, POR SI SÓ? O crack? A Heroína? POR SI SÓ não! As consequências do consumo podem ou não trazer perturbações sociais, e são esses atos (e não consumo em si) que devem ser reprimidos pela Lei Penal. Fumo crack e saio doidão para roubar, tenho que ir preso pelo roubo (com uma causa de aumento de pena por estar doidão, se for o caso).
As drogas causam, sim, problemas à SAÚDE de quem consome.
Droga não é caso de polícia, mas de médico. A repressão penal às drogas iniciou-se no começo do século XX nos EUA por puro preconceito dos Mórmons então dominantes contra hispânicos que consumiam maconha - o comportamento doidão certamente não era inspirador de bons exemplos à casta classe religiosa... (soubessem eles a verdadeira guerra contra as drogas que aconteceria uns 70 anos depois, certamente teriam se arrependido - pena que não existia máquina do tempo! E pior de tudo é que o próprio EUA teve a experiência da Lei Seca pouco depois teve um certo efeito de máquina do tempo, antecipando o efeito da repressão às drogas).
O debate é ainda maniqueísta: caretas contra doidões.
Do ponto de vista financeiro, a história é uma tragédia: gasta-se com a repressão quase o equivalente com o que se lucra com o tráfico (chega à cifra de bilhões de dólares anuais). Ah, se esse dinheiro fosse canalizado para o tratamento...
Não consumo drogas - mas sou pragmático: não houvesse repressão criminosa às drogas, a história acima sequer teria sido contada - os dois fumariam um baseadinho sossegado e, se a mãe pegasse, daria uma sonora bronca em seu filho, tal como se tivesse fumando um cigarro ou tomando uma lata de cerveja...
Sem dúvida. E fica uma reflexão: o maconheiro, se não passa para outras drogas, limita-se a fumar seu baseado, rir feito um bobo de coisas sem graça, devorar uns chocolates e cair no sono. O alcoólatra espanca a mulher e mata o amigo no bar. O álcool causa males sociais muito piores do que a maconha. Mas o álcool é permitido e a maconha, não.
ResponderExcluirRené... sem palavras para o texto, você soube retratar muito bem uma realidade forte e constante, bem como fazer o leitor entender que este é um caminho sem escolhas.
ResponderExcluirHoje o que se ouve é a famosa frase "nós sempre tivemos as mesmas oportunidades ele está nessa porque quer" (me sinto mal em ouvir isso), o texto mostra implicitamente o quanto queremos fugir do pensamento que as coisas ruins não são próximas, não são nossas e muito menos consequência do que fazemos. É difícil tentar pensar no outro "nóia" "bandidinho" como aquele quem poderíamos ser... achamos que são criações, que apenas nos fazem viver numa luta para não virar um deles, e provar pra todo mundo que não é, porque eles "são assim porque querem e eu não tenho nada a fazer, nada com isso!" Tudo começou mal, mas no caminho o "você" tem pessoas que fazem a diferença e a fazem da pior maneira possível...
É bom repensar o que achamos que somos e como achamos que os outros podem ser... sabe?
Obrigado, MahPessoa. Hoje pela manhã, postei no Facebook uma notícia sobre uma juíza que interditou quatro celas de uma delegacia, porque, nas palavras da magistrada, "Não existe outra definição a não ser canil. Seres humanos são tratados como cães ali. A cela é tão escura que nem possibilita ver quem está dentro. Há muita sujeira."
ResponderExcluirOs comentários dos internautas:
"Todos nos nascemos com direito a liberdade. Agora quem troca a liberdade por prisao merece isso ai. Resumindo fica preso quem quer ou quem gosta."
"Desejo que o Governador de SP faça prisões com a mesma qualidade.
Assim, quando criminoso aparecer na TV vai chorar de arrependimento em vez de dar entrevista pouco se importando com as vidas e o mal que causou.
Prisão tem que ser péssima para o criminoso, e não um "resort" como querem os 'companheiros dos direitos humanos'."
Muita gente acredita que só é bandido quem quer. Às vezes isso é verdade, outras não. Nem sempre há escolha, o que não significa que quem comete um crime não deve ser punido. Mas uma coisa é punir o ato, outra é valorar o ser humano por trás do ato. Essa é uma diferença que nem todo mundo consegue (ou quer) perceber.