Falta de atenção, mal-entendido, piada? Não, racismo. |
Num dos primeiros textos deste blog (Não somos racistas?, de 05.09.2012) critiquei os argumentos de jornalistas como Arnaldo Jabor e Ali Kamel, que defendem a teoria de que não há racismo no Brasil, e sim "classismo" - ou seja, o preconceito não é contra o negro, é contra o pobre. Um negro bem vestido não sofreria preconceito.
Basta andar pelos shopping centers, universidades e restaurantes de primeira linha brasileiros para perceber como a tese do "classismo" é furada. Basta ver quantos CEO's, quantos apresentadores de telejornais, quantos galãs de novela e heróis de filmes brasileiros são negros para que se note o racismo patente da sociedade brasileira.
Se alguém ainda achar que nada disso é suficiente, o noticiário da última semana não deixa qualquer dúvida, mínima que seja, sobre o quanto o Brasil é racista.
Ontem, 23 de janeiro, foi divulgada no site da revista Carta Capital a Ordem de Serviço nº 8º BPMI 822/20/12, assinada pelo capitão da PM Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, que orienta policiais que atuam num bairro nobre de Campinas a abordarem transeuntes que estiverem em atitude suspeita, "especialmente indivíduos de cor parda e negra" (leia a reportagem aqui).
Diante da revolta e da comoção causadas pelo documento, o Comando da PM negou que a ordem tenha teor racista. A assessoria da PM afirmou que "houve uma falta de atenção na escrita do documento, mas isso não é um caso de preconceito", e que "o próprio capitão Beneducci é pardo".
Falta de atenção? Não, racismo.
Não sei se o capitão é ou não pardo, mas isso retira o caráter racista do documento? No último texto que publiquei no blog (E agora, José? E agora, você?), imaginei uma situação em que um menino negro é vítima do preconceito de um porteiro também negro (uma situação, infelizmente, nada incomum). Determinar que especialmente indivíduos de cor parda e negra devem ser abordados é uma "falta de atenção na escrita"?
Também ontem, o G1 informou que um garoto negro de 7 anos, filho adotivo de pais brancos, foi praticamente enxotado de uma revendedora da BMW, embora estivesse acompanhando os pais. Segundo a matéria, o casal foi à loja da BMW para comprar um carro. Enquanto conversavam com o vendedor, o menino se afastou. O gerente disse para a criança: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja" - e voltando-se para os pais do menino: "Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes". Os pais saíram da loja e enviaram um e-mail à empresa, que, após muito relutar, afirmou que o gerente "entendeu que o casal não estava acompanhado por qualquer pessoa, incluindo a criança. e já que ela estava absolutamente desacompanhada na loja, o funcionário teria alertado o garoto que ele não poderia ali permanecer e que tudo não passou de um mal-entendido".
Mal-entendido? Não, racismo.
Se fosse uma criança branca, o gerente provavelmente presumiria (ou ao menos suspeitaria) que o menino era filho do casal. Porque era negro, o gerente deduziu imediatamente que era um menino de rua, um pedinte. O casal criou uma página no facebook, Preconceito racial não é mal-entendido, que até o momento já teve mais de 71.000 opções "curtir". Segundo a mãe do garoto, o garoto já passou por situações constrangedoras anteriormente, na escola, num bar e num clube.
O caso é quase uma repetição do que aconteceu, há um ano, no restaurante Nono Paolo, quando o filho de um casal de espanhóis, um menino etíope, foi expulso por um garçom - os pais o encontraram na calçada do lado de fora do restaurante.
Em dezembro passado, o site Pragmatismo Político divulgou uma acusação de racismo contra o ator Luís Salém, que, na saída de um ensaio técnico de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, teria dito, junto a um grupo de negros: "Nossa! Isso aqui é um quilombo?" Não satisfeito, teria dito a um dos integrantes do grupo: "E você? É preto? Você é preto e feio. Vai tratar de estudar e se formar sem cotas!" Questionado, o ator não negou o ocorrido, e procurou se justificar da seguinte maneira: "Pode ter sido uma piada, mas não sou preconceituoso, não tenho motivo para ofender ninguém, apoio todas as causas, tenho amigos negros e sou totalmente contra preconceito. Sou comediante, humorista e faço piadas, pode ser que ele tenha entendido errado."
Piada? Não, racismo.
"Isso é um quilombo", "você é preto, vai tratar de estudar e se formar sem cotas" já mostra que o ator é, sim, racista, mas nada supera o "tenho [até] amigos negros" (o "até" está mais do que subentendido na frase), um clássico do repertório do racismo não assumido. Só faltou dizer: "Até abraço se precisar..."
Os fatos acima - e são apenas alguns de muitos, de inúmeros, de incontáveis, que ocorrem todos os dias, em todos os cantos do Brasil - e as justificativas de seus protagonistas parecem sugerir que não há, de fato, racismo no Brasil. Existem pessoas que se expressam sem atenção, pessoas que não entendem o que os outros querem dizer e pessoas que fazem piadas. Mas racismo, ah!, isso não existe! Isso é coisa da imaginação dos negros, que veem racismo em tudo quanto é lugar, como afirmaram alguns internautas em comentários à notícia publicada pela Carta Forense.
E por falar nisso, ao ler os comentários desses internautas, descubro que faço parte do grupo dos que não entendem o que os outros querem dizer. Porque, quando leio comentários como esses, enxergo racismo, mas é claro que essas pessoas não devem se considerar racistas (talvez seja falta de atenção na escrita, ou piada):
"Isto chama-se Síndrome da Perseguição! Aposto que se eu sair com uma camisa 100% Branco vou ser taxado de neonazista. Vamos esquecer esse lance de Negros e Brancos, encarem isso como mais um adjetivo... e se a PM não trabalhar com 'adjetivos' como os policiais exercerão suas funções de proteção ao cidadão?"
"Essa coisa do politicamente correto está saindo dos limites da razão e do bom senso, e terá um efeito horrível: jogar para sempre negros contra brancos, gays contra heteros, mulheres contra homens, filhos contra pais, todos contra todos. Mas talvez seja isso mesmo que a esquerda gramscista almeje, ou seja, implodir por dentro a por eles tão detestada sociedade capitalista judaico cristã, para então implementar a tão sonhada ditadura socialista a la cuba..."
"Sinceramente no Brasil o verdadeiro discriminado é o branco pobre."
"Esse pessoal dos DH são um bando de chatos. Já foi explicado que se tratava de um grupo específico. Se fossem brancos, ninguém se importaria, já que nascer branco, hetero e rico nesse país é ser considerado sub-raça."
Impossível ler as justificativas da PM, do gerente da BMW, do Luís Salém (além dos comentários que transcrevi), sem lembrar da confissão de Fernando Pessoa, "Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza" - essa confissão que nunca virá dessas pessoas, embora a vileza seja tão evidente - ou da lucidez de Cecília Meireles, que, na clássica crônica O que se diz e o que se entende, se espanta: "O meu assombro é pensarem que eu sempre quero dizer outra coisa. Não! eu sempre quero dizer o que digo!"
E eu, talvez ingenuamente, acredito que as pessoas (quase) sempre querem dizer o que dizem.
Ontem, 23 de janeiro, foi divulgada no site da revista Carta Capital a Ordem de Serviço nº 8º BPMI 822/20/12, assinada pelo capitão da PM Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, que orienta policiais que atuam num bairro nobre de Campinas a abordarem transeuntes que estiverem em atitude suspeita, "especialmente indivíduos de cor parda e negra" (leia a reportagem aqui).
Diante da revolta e da comoção causadas pelo documento, o Comando da PM negou que a ordem tenha teor racista. A assessoria da PM afirmou que "houve uma falta de atenção na escrita do documento, mas isso não é um caso de preconceito", e que "o próprio capitão Beneducci é pardo".
Falta de atenção? Não, racismo.
Não sei se o capitão é ou não pardo, mas isso retira o caráter racista do documento? No último texto que publiquei no blog (E agora, José? E agora, você?), imaginei uma situação em que um menino negro é vítima do preconceito de um porteiro também negro (uma situação, infelizmente, nada incomum). Determinar que especialmente indivíduos de cor parda e negra devem ser abordados é uma "falta de atenção na escrita"?
Também ontem, o G1 informou que um garoto negro de 7 anos, filho adotivo de pais brancos, foi praticamente enxotado de uma revendedora da BMW, embora estivesse acompanhando os pais. Segundo a matéria, o casal foi à loja da BMW para comprar um carro. Enquanto conversavam com o vendedor, o menino se afastou. O gerente disse para a criança: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é lugar para você. Saia da loja" - e voltando-se para os pais do menino: "Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes". Os pais saíram da loja e enviaram um e-mail à empresa, que, após muito relutar, afirmou que o gerente "entendeu que o casal não estava acompanhado por qualquer pessoa, incluindo a criança. e já que ela estava absolutamente desacompanhada na loja, o funcionário teria alertado o garoto que ele não poderia ali permanecer e que tudo não passou de um mal-entendido".
Mal-entendido? Não, racismo.
Se fosse uma criança branca, o gerente provavelmente presumiria (ou ao menos suspeitaria) que o menino era filho do casal. Porque era negro, o gerente deduziu imediatamente que era um menino de rua, um pedinte. O casal criou uma página no facebook, Preconceito racial não é mal-entendido, que até o momento já teve mais de 71.000 opções "curtir". Segundo a mãe do garoto, o garoto já passou por situações constrangedoras anteriormente, na escola, num bar e num clube.
O caso é quase uma repetição do que aconteceu, há um ano, no restaurante Nono Paolo, quando o filho de um casal de espanhóis, um menino etíope, foi expulso por um garçom - os pais o encontraram na calçada do lado de fora do restaurante.
Em dezembro passado, o site Pragmatismo Político divulgou uma acusação de racismo contra o ator Luís Salém, que, na saída de um ensaio técnico de escolas de samba na Marquês de Sapucaí, teria dito, junto a um grupo de negros: "Nossa! Isso aqui é um quilombo?" Não satisfeito, teria dito a um dos integrantes do grupo: "E você? É preto? Você é preto e feio. Vai tratar de estudar e se formar sem cotas!" Questionado, o ator não negou o ocorrido, e procurou se justificar da seguinte maneira: "Pode ter sido uma piada, mas não sou preconceituoso, não tenho motivo para ofender ninguém, apoio todas as causas, tenho amigos negros e sou totalmente contra preconceito. Sou comediante, humorista e faço piadas, pode ser que ele tenha entendido errado."
Piada? Não, racismo.
"Isso é um quilombo", "você é preto, vai tratar de estudar e se formar sem cotas" já mostra que o ator é, sim, racista, mas nada supera o "tenho [até] amigos negros" (o "até" está mais do que subentendido na frase), um clássico do repertório do racismo não assumido. Só faltou dizer: "Até abraço se precisar..."
Os fatos acima - e são apenas alguns de muitos, de inúmeros, de incontáveis, que ocorrem todos os dias, em todos os cantos do Brasil - e as justificativas de seus protagonistas parecem sugerir que não há, de fato, racismo no Brasil. Existem pessoas que se expressam sem atenção, pessoas que não entendem o que os outros querem dizer e pessoas que fazem piadas. Mas racismo, ah!, isso não existe! Isso é coisa da imaginação dos negros, que veem racismo em tudo quanto é lugar, como afirmaram alguns internautas em comentários à notícia publicada pela Carta Forense.
E por falar nisso, ao ler os comentários desses internautas, descubro que faço parte do grupo dos que não entendem o que os outros querem dizer. Porque, quando leio comentários como esses, enxergo racismo, mas é claro que essas pessoas não devem se considerar racistas (talvez seja falta de atenção na escrita, ou piada):
"Isto chama-se Síndrome da Perseguição! Aposto que se eu sair com uma camisa 100% Branco vou ser taxado de neonazista. Vamos esquecer esse lance de Negros e Brancos, encarem isso como mais um adjetivo... e se a PM não trabalhar com 'adjetivos' como os policiais exercerão suas funções de proteção ao cidadão?"
"Essa coisa do politicamente correto está saindo dos limites da razão e do bom senso, e terá um efeito horrível: jogar para sempre negros contra brancos, gays contra heteros, mulheres contra homens, filhos contra pais, todos contra todos. Mas talvez seja isso mesmo que a esquerda gramscista almeje, ou seja, implodir por dentro a por eles tão detestada sociedade capitalista judaico cristã, para então implementar a tão sonhada ditadura socialista a la cuba..."
"Sinceramente no Brasil o verdadeiro discriminado é o branco pobre."
"Esse pessoal dos DH são um bando de chatos. Já foi explicado que se tratava de um grupo específico. Se fossem brancos, ninguém se importaria, já que nascer branco, hetero e rico nesse país é ser considerado sub-raça."
Impossível ler as justificativas da PM, do gerente da BMW, do Luís Salém (além dos comentários que transcrevi), sem lembrar da confissão de Fernando Pessoa, "Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza" - essa confissão que nunca virá dessas pessoas, embora a vileza seja tão evidente - ou da lucidez de Cecília Meireles, que, na clássica crônica O que se diz e o que se entende, se espanta: "O meu assombro é pensarem que eu sempre quero dizer outra coisa. Não! eu sempre quero dizer o que digo!"
E eu, talvez ingenuamente, acredito que as pessoas (quase) sempre querem dizer o que dizem.
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