Bento XVI e Silas Malafaia. Pedofilia, maquinações políticas, exploração da fé alheia e intolerância. São essas as pessoas mais capazes para guiar espiritualmente quem quer que seja? |
Há algo de profundamente deturpado na vida espiritual da pós-modernidade, ou melhor, nos autoproclamados representantes do divino na Terra. A recente renúncia de Bento XVI, mais do que colocar em evidência a nada recente crise da Igreja Católica, expôs as fissuras mais profundas de uma mentalidade que talvez não caiba mais no mundo atual.
O novo ex-papa reinseriu o latim nas missas, um anacronismo superado desde 1969. Uma missa em latim é o símbolo máximo da falta de comunicação entre o suposto representante de Deus (o padre) e seu rebanho - basicamente, uma conversa entre o padre e Deus (em que só o padre fala) assistida por um público que não conhece a língua em que a conversa ocorre. Confesso que, à exceção das óbvias razões históricas, nunca consegui entender como uma ideia tão descabida sobreviveu por tantos séculos.
Felizmente Bento XVI não reinseriu a outra característica típica da chamada missa tridentina - a posição do padre, de costas para o público (como se a igreja fosse um navio guiado pelo padre). Afinal, a Igreja tem dado as costas a seus fiéis há muito tempo. Desnecessário reforçar simbolicamente essa postura.
O ex-papa caiu em razão de uma série de escândalos, envolvendo disputas internas de poder e a já conhecidíssima tolerância da Igreja em relação a padres pedófilos.
Aceitar que uma das instituições mais ricas do planeta pregue a pobreza (dos fiéis) como virtude já não é fácil. Mas não há justificativa para a tolerância com padres que abusam sexualmente de crianças. E ainda assim, a Igreja Católica - a mesma que queimava pessoas em fogueiras só por serem canhotas - prefere transferir os padres de paróquia em paróquia, sempre que surge alguma acusação de pedofilia. Ou seja, escrever com a mão esquerda resulta em morte. Abusar de crianças, em transferência e conivência.
A renúncia de Bento XVI, ao contrário do que afirma parte da mídia conservadora, não é um ato de grandeza. É um ato de covardia. A debilidade física não é motivo para a renúncia - primeiro, porque ser velhíssimo é quase um requisito para ser papa, e segundo, porque se a própria Igreja exige de seus fiéis uma vida abnegada e de sacrifícios, não tem sentido que seu representante máximo fuja da raia alegando cansaço físico. O fato é que o conservador Bento não conseguiu lidar com as inconsistências de sua própria história, escancaradas pela mídia no escândalo já conhecido como Vatileaks (quando presidiu a Congregação para a Doutrina da Fé - o nome moderno da Santa Inquisição - , de 1981 a 2005, foi escancaradamente tolerante com escândalos envolvendo padres pedófilos). Sua renúncia nada tem de nobre, mas serve para deixar claro o quanto a Igreja Católica está distante da sociedade cujas almas deseja salvar.
Enquanto Bento XVI rebola (só metaforicamente) para preservar a credibilidade da Igreja Católica perante o mundo, no Brasil o pastor Silas Malafaia destila o menos cristão dos venenos - a intolerância.
Não bastasse a desastrosa (e já muitíssimo comentada) entrevista dada a Marília Gabriela, recebi recentemente este simpático vídeo, no qual o pastor afirma que blogueiros evangélicos que criticam pastores são "filhos do diabo" (bom, não sou evangélico, mas ele pediu pra "botar no blog", então aí está). Isso, vindo de um sujeito milionário (segundo a revista Forbes, o terceiro pastor mais rico do Brasil, com uma fortuna pessoal de 150 milhões de dólares) que desafia desempregados a lhe dar um aluguel (ou, se a pessoa morar de favor e estiver desempregada, a pegar 30% de qualquer ajuda que receber) para que o Senhor abra as portas para a pessoa ter a casa própria. Para o milionário pastor que "ama os homossexuais como ama os assassinos", criticar essa conduta - que reputo nada menos do que criminosa - é coisa de "filho do diabo". É esse o tipo de postura que deve ter quem se pretende líder espiritual de uma comunidade?
Enfim, entre pedófilos, picaretas e exploradores da fé alheia - todos irmanados na intolerância e no conservadorismo - a habilidade para a condução da espiritualidade dos outros parece ir mal, muito mal.
Criticar esses autoproclamados guias espirituais não implica qualquer crítica à crença de quem quer que seja, ou a qualquer divindade. Curiosamente, parece que o eixo central da fé cristã - o amor ao próximo - nunca esteve tão distante das maquinações, das jogadas políticas, do acobertamento de crimes e da exploração financeira da esperança alheia, que constituem as atividades principais de boa parte dos líderes religiosos da atualidade.
Em 1879, Dostoiévski escreveu o imprescindível Os irmãos Karamazov. Num pioneiro exercício de metalinguagem, a personagem Ivan escreve o poema em prosa O Grande Inquisidor, no qual Jesus reencarna em Sevilha e é preso pelo Cardeal da Santa Igreja, que critica e condena seu retorno. Embora o texto tenha mais de 130 anos, sua leitura nos faz pensar o que Jesus acharia dos Bentos, Malafaias, Valdomiros e criaturas que tais, se voltasse à Terra hoje e visse os usos que têm sido dados à sua mensagem.
Como acontece com muitos clássicos, a frase "se Deus não existe, tudo é permitido", atribuída a Dostoiévski, não consta do livro, embora essa ideia esteja presente na obra. Se os atuais líderes religiosos acham (e agem como se achassem) que tudo lhes é permitido, o que isso nos diz a respeito de sua fé?