quinta-feira, 28 de março de 2013

Danuza, a piadista


Danuza Leão: não entenderam a crítica social escondida em seu artigo.


     Como diria o Caetano de 68, "vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada".
     Era uma piada, só isso. Como é possível que vocês não tenham percebido?
     O artigo A PEC das empregadas, da socialite e, segundo alguns, escritora Danuza Leão, publicado em 25 de março na Folha de São Paulo, vem recebendo furiosas críticas nas redes sociais e em blogs como o Blog da Cidadania. Muita gente se revoltou com o modo pelo qual Danuza criticou a proposta de emenda constitucional que atribuirá às empregadas domésticas muitos dos direitos que os demais trabalhadores já têm.
     No entanto, faltou aos críticos de Danuza a argúcia de perceber que o tom supostamente elitista do artigo não passou de uma estratégia genial da socialite para criticar o regime quase escravocrata que, até cerca de 10 anos atrás, era a realidade das empregadas domésticas no Brasil.
     Basta ler com atenção o primeiro parágrafo do texto, quando Danuza afirma que como a PEC "foi mal concebida, assim será difícil de ser cumprida, e aí todos vão perder."
     Perceberam a sutileza do argumento? Desde a abolição as domésticas são a extensão da figura da mucama (como, aliás, já mencionei num texto anterior), e nem o Constituinte de 1988 teve coragem para mexer nesse regime perverso, negando às empregadas direitos trabalhistas garantidos a todas as demais categorias profissionais. Ao afirmar que se a PEC for aprovada "todos vão perder" (incluindo nesse "todos", portanto, também as empregadas domésticas), Danuza deixa claro que está brincando. Porque, obviamente, nenhum vertebrado com um pingo de autocrítica defenderia a sério uma bobagem dessas em público - ainda mais em um jornal de grande circulação.
     Mas a genialidade da socialite vai além, ao comparar a realidade brasileira com a França e os Estados Unidos, onde, segundo Danuza, "quem mora em apartamento de dois quartos e sala, é considerada privilegiada, mas nenhum deles tem área de serviço nem quarto de empregada", enquanto que "no Brasil, muitos apartamentos de quarto e sala têm quarto de empregada, e se a profissional mora no emprego, fica difícil estipular o que é hora extra."
     Notaram com que finesse a crítica social é inserida numa ideia aparentemente elitista?
     Não sei quantos apartamentos de quarto e sala Danuza conhece. Morei em alguns, e nenhum deles tinha quarto de empregada. Mas mesmo os apartamentos modernos de dois, três ou quatro quartos têm dependências de empregada que mais parecem armários. Danuza afirma não apenas que quem mora em apartamentos de quarto e sala em regra terá empregadas que dormem no serviço, mas também que é possível acomodar um ser humano naqueles cubículos. Como é possível não notar a crítica a essas despensas chamadas de quartos, travestida num discurso claramente incompatível com a realidade? 
     Mas o lado comediante de Danuza se revela até para os mais distraídos na comparação entre as creches públicas da França e a inexistência dessas creches para as crianças de classe média (não para os filhos das domésticas, notem bem!) no Brasil: "Na França, quando um casal normal, em que os dois trabalham, têm um filho, existem creches do governo (de graça) que faz com que uma babá não seja necessária, mas no Brasil? Ou a mãe larga o emprego para cuidar do filho ou tem que ser uma executiva de salário altíssimo para poder pagar uma creche particular ou uma babá em tempo integral, olha a complicação."
     Pois, é, olha a complicação! E como a própria babá não tem o salário altíssimo de uma executiva e também tem filhos, quem é que cuida do filho da babá? É preciso alguma perspicácia para perceber o que Danuza quis de fato dizer. Afinal, por que ela menciona a França e não os Estados Unidos? Porque nos EUA as jovens de classe média ganham seus trocados trabalhando como... babás! Gênio! Humor inteligente é para quem sabe ler nas entrelinhas, ora bolas!
     Enfim, parafraseando a revista Marie Claire, que, demonstrando profundo conhecimento sobre a luta pelos direitos dos negros, afirmou que quem criticou o desfile de Ronaldo Fraga não entende de negros, é preciso reconhecer: quem criticou o artigo da socialite quase socialista (sua preocupação com o desemprego das domésticas chega a emocionar) simplesmente não entende nada de humor, nem de babás, nem de Brasil, nem de França, nem de Estados Unidos, nem de Danuza Leão.
     É essa falta de bom humor que leva algumas pessoas a enxergar racismo num inocente trote da UFMG ou na declaração, tão esclarecedora, de um aluno daquela universidade, de que "quando eles pintaram a caloura de escravo, em momento algum quiseram ofender, porque na nossa faculdade nós temos amigos negros, o símbolo da nossa atlética é um macacão... se ela fosse racista, ela usaria esse símbolo para algo ruim...". Apenas gente amarga e sem senso de humor é incapaz de enxergar o afeto e a solidariedade que existem na comparação entre um negro e um macacão, quando essa comparação é o símbolo de uma atlética e não de "algo ruim".
     Então, caros críticos e detratores da pobre colunista cheia de boas intenções e consciência social, antes de concluir que Danuza é elitista, inculta, egoísta e vil, entendam a severa crítica ao sistema disfarçada na fina ironia e no sutil humor da socialite. Afinal, precisamos partir do pressuposto de que pessoas minimamente instruídas não escreveriam certos descalabros a sério. Se assim fosse, teríamos de concordar com o subversivo Quino, que, numa das tiras da Mafalda, indaga: "O mundo tem 6 bilhões de pessoas. Mas quantos são seres humanos?"

segunda-feira, 25 de março de 2013

Um dia




     Caminhava um dia pela grande avenida empresarial da cidade, o passo apertado, pensando na importante reunião que se avizinhava. Não percebeu o senhor de chapéu e óculos que vinha em sua direção, também ele apressado e perdido em seus próprios pensamentos.
     Chocaram-se. As duas pastas voaram, papéis espalharam-se pela calçada e foram pisoteados pelos demais passantes. Ele abaixou-se, furioso, tentando recolher os documentos que fugiam ao vento.
     Ergueu-se pronto para a guerra. Os óculos do senhor com quem trombara estavam partidos, o chapéu fora levado pelo vento inclemente. O senhor também se levantava, nervoso, disposto ao combate.
     Lembrando mais tarde, ele não saberia dizer se fora a perda do chapéu ou a sofrida tentativa do adversário de enxergar por trás das lentes partidas. Qual fora o gatilho? Ele jamais descobriria. O fato é que, diante do senhor que queria enfrentá-lo, o chapéu perdido para sempre e as lentes dos óculos, antes suas amigas, agora mais uma barreira, alguma coisa acontecera em seu espírito. Sem entender bem por que o fazia, perplexo e impotente ante a própria atitude, viu-se aproximar-se do irritado senhor e dar-lhe um forte abraço.
     O senhor deu dois passos para trás, tão espantado quanto ele próprio. Tentou dizer algo, mas a boca, trêmula, não encontrou as palavras certas. Após alguns instantes de emudecido espanto, afastou-se, seguindo seu caminho, olhando assustado para trás, como se esperasse ser atacado à traição.
     Tentou esquecer o incidente, que o perturbava por ser tão irracional, mas dias depois, ao encontrar o vizinho encrenqueiro, com quem sempre se desentendera, encerrou uma discussão que se iniciava com outro daqueles abraços incompreensíveis. O vizinho o empurrou com força, gritando "sai pra lá!", mas foi embora e não continuou a discussão.
     Dali em diante responder com abraços a qualquer forma de agressão ou violência tornou-se uma compulsão irrefreável, que ele não compreendia mas era incapaz de controlar ou evitar. Reuniões de condomínio, desentendimentos com colegas de trabalho, mesmo discussões familiares eram encerradas com um abraço resoluto.
     A família estranhou. Os filhos achavam que o pai tinha enlouquecido. A esposa, após inúmeras tentativas de entender aquele estranho comportamento (e como poderia, se ele mesmo não o compreendia?), resolveu abandoná-lo. Não era possível conversar com ele, ela disse pouco antes de partir com os filhos.
     Ele, no entanto, não conseguia mudar aquela reação, que, no fundo, apesar de todos os problemas, não o desagradava. Quantas brigas e discussões inúteis ele evitara, ainda que o método fosse desconcertante?
     Com o tempo, ganhou alguma fama. Crianças corriam atrás dele, provocando-o para ver sua reação. Precavido, ele conseguia evitar abraços efusivos em crianças, limitando-se a acariciar-lhe as cabeças - ele aprendera que muitos pais viam em seus atos uma malícia que não existia, e um pai chegara mesmo a lhe dar um soco, a que ele respondera com um abraço algo atordoado. Era também cauteloso e comedido com mulheres, principalmente as acompanhadas. Mas era-lhe impossível evitar o contato físico, mesmo que superficial - era o contato que dava sentido ao gesto e tornava as palavras desnecessárias, e ele não saberia como usá-las naquelas situações tão singulares.
     Não era incomum que jovens o provocassem, questionando sua sexualidade. Mas isso não o incomodava. Era só uma outra forma de agressão, a que ele respondia do mesmo modo, sempre que possível.
     Um jornal até mesmo o entrevistou. Mas ele não sabia o porquê daqueles abraços. "Não sei a razão disso tudo", ele dizia. "Mas, embora se fale tanto em aquecimento global, o mundo parece mais frio a cada dia". Não era uma explicação - não havia explicação - mas ele se indagava se aquela reação inusitada (que nunca deixava de espantá-lo, como se ele assistisse a tudo de longe) não seria uma rebelião de algo dentro de si contra a crescente frieza do mundo. Fosse o que fosse, parecia significar algo. Para si e para algumas raras pessoas que, de vez em quando, o olhavam de um modo que ele não compreendia bem.
     Um dia ocorreu o inevitável. Na mesma avenida onde tudo tivera início, ele sofreu um assalto. E, diante do garoto assustado que lhe brandia um canivete, adiantou-se para abraçá-lo.
     O abraço foi interrompido quando a lâmina rompeu seu peito. Ele não sentiu dor, antes um calor desagradável, úmido, e uma tontura que o fez desabar.
     Algumas pessoas correram para ajudá-lo. O sangue jorrava aos borbotões. A consciência ia se dissipando.
     Caído no chão, viu por entre as pernas das pessoas a colisão na rua, resultado talvez da confusão que o assalto causara. Enquanto tudo escurecia, pôde ver os dois motoristas descerem de seus carros, iniciarem uma nervosa discussão e, após um momento de desconfortável hesitação, se abraçarem.

terça-feira, 19 de março de 2013

A perpetuação da imbecilidade


Trote na UFMG. A "Caloura Chica da Silva"

    É inevitável: todo começo de ano letivo traz de volta uma das práticas mais idiotas de que se tem notícia: o trote. A ideia de celebração e confraternização entre calouros e veteranos há muito tempo deu lugar a um rito de passagem violento, estúpido e sem sentido. Ainda que o chamado trote solidário venha ganhando mais espaço a cada dia, nada parece capaz de eliminar o gosto pela barbárie de alguns veteranos. Sintomaticamente, é nas universidades mais concorridas - e que por isso, ao menos em tese, deveriam selecionar os candidatos mais capazes, aquela tal de "elite" - que a falta de bom senso se mostra de forma mais evidente.
"É só brincadeira", como sempre se diz.
     A pérola da semana foi a divulgação do trote realizado pelos alunos de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que uma aluna foi pintada de preto, obrigada a carregar um cartaz onde se lia "Caloura Chica da Silva", acorrentada e arrastada pelo campus por um veterano ostentando um sorriso imbecil. No mesmo trote, outros veteranos amarraram um calouro a uma viga e fizeram a saudação nazista. Um dos veteranos chegou ao ponto de pintar (ou deixar crescer, a foto não permite ver com clareza) um bigodinho à moda de Hitler.
     Semanas antes, alunos do curso de medicina do campus da USP de São Carlos se envolveram num confronto com a Frente Feminista de São Carlos. A Frente protestava contra o "Miss Bixete", um concurso a que as calouras são obrigadas a desfilar com os seios à mostra e a participar de provas em que precisam chupar picolés simulando sexo oral. A resposta dos futuros médicos formados pela USP foi atirar objetos e cerveja nas manifestantes, além de tirarem a roupa em frente às câmeras que registravam o fato. Muito civilizado.
     Nos dois casos, as fotos rodaram a internet e causaram a polêmica esperada. As reações foram as de sempre, já estão padronizadas: era uma brincadeira (?), uma confraternização (???), só participa quem quer (sintomaticamente, nas duas fotos divulgadas na imprensa - e que estão neste post - os calouros não parecem estar se divertindo muito, ao contrário dos sorridentes veteranos). A reação da universidade também é sempre a mesma: a universidade não apoia esse tipo de atitude, vai instaurar uma sindicância para apurar responsabilidades, o trote é proibido no campus. E, no ano que vem, tudo acontecerá novamente, e esses mesmos discursos sairão de suas gavetas empoeiradas de volta paras os jornais e a internet. Pelo menos no caso de São Carlos os estudantes que se expuseram às câmeras foram indiciados por ato obsceno. A polícia e o Ministério Público fizeram o que a universidade deveria fazer e não fez - reagir.
     A combinação de juventude, álcool e aglomerações em que a responsabilidade individual se dilui num clima de "tudo é festa" - e, portanto, tudo é permitido - já levou a tragédias, como a morte do estudante Edison Tsung Chi Hsuen, em 1999. Calouro de medicina, Edison morreu afogado na piscina da Atlética da USP, durante um trote. Em 2006, o STJ entendeu que a tragédia não passou de "uma brincadeira - de muito mau gosto - em uma festa de estudantes", e trancou a ação penal contra os veteranos acusados pela morte. 
     "Uma brincadeira de muito mau gosto". Digam isso aos pais de Edison.
     O primeiro trote de que se tem notícia no Brasil ocorreu em 1831, na Faculdade de Direito de Olinda, e terminou com a morte de um calouro. Essa nossa estreia macabra deveria ter servido de alerta, mas não serviu. Nossa história é marcada por trotes violentos com consequências trágicas.
Faculdade de medicina da USP em São Carlos.
A arte do sorriso idiota.
     Em 1962, na PUC, um calouro foi obrigado a se despir e a entrar num barril cheio de água misturada com cal - o estudante sofreu queimaduras por todo o corpo e morreu; em 1993, na faculdade de engenharia da UNESP, um calouro foi obrigado a amarrar um saco de 7 quilos em seus órgãos genitais; em 1998, estudantes de medicina - de medicina! - do campus de Sorocaba da PUC atearam fogo a um calouro que dormia num sofá; em 2000, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), veteranos obrigaram um calouro a deitar sobre um formigueiro - ele levou mais de 250 picadas e precisou ser internado; em 2010, calouros da Unifeb, de Barretos, foram recebidos com jatos de creolina e tiveram queimaduras de primeiro grau.
     Há inúmeras outras histórias como essas. É comum que calouros que não queiram participar do trote sejam espancados, às vezes com consequências trágicas.
     Vivemos em um país no qual, ao contrário do que ocorre em nações mais civilizadas, o diploma universitário é sobrevalorizado. Não há um investimento nos cursos técnicos (como ocorre na Europa e nos EUA). Segundo o CNJ, o Brasil tem 1.240 cursos superiores de Direito, enquanto o resto do planeta tem 1.100. O diploma universitário ainda é, culturalmente, um diferencial que, no Brasil, tem mais peso do que em outros lugares.
     O ingresso na universidade - ainda mais quando se trata de universidades muito disputadas - é uma conquista a ser comemorada. Deve ser fonte de alegria e não de terror. O fato de nossos futuros médicos, engenheiros e juízes - "aselite", como se diz por aí - entenderem que a confraternização com calouros é sinônimo de violência, humilhação, racismo e sexismo, dá uma ideia nada agradável do país e do futuro que estamos a construir.

terça-feira, 12 de março de 2013

Sociedade e autoridade - parte 2


Voluntário do experimento de Stanford (1971). Guarda.

     No começo de fevereiro, escrevi um texto sobre a perturbadora experiência de Milgram, realizada no início dos anos 60 na Universidade de Yale pelo psicólogo Stanley Milgram, que demonstrou que a maioria das pessoas "normais" (concordo com Caetano, de perto ninguém é) está disposta a torturar um desconhecido praticamente até a morte, desde que uma autoridade lhe diga que é a coisa certa a fazer.
     Por mais desconfortável que tenha sido o resultado da experiência, poderíamos nos apegar a uma esperança: nossa natureza não é assim tão distorcida, só cometeríamos esse tipo de violência se recebêssemos ordem de uma autoridade, logo, não é nosso impulso natural agir dessa maneira. Certo?
     Errado.
     Poucos anos depois da experiência de Milgram, em 1971, o psicólogo Phillip Zimbardo, da Universidade de Stanford, em Palo Alto, conduziu um experimento de simulação de ambiente prisional, que ficou conhecido como experimento de aprisionamento de Stanford, ou experiência de Stanford. Coincidentemente, Milgram e Zimbardo foram colegas no ensino médio.
     A intenção de Zimbardo era analisar as reações psicológicas causadas tanto em guardas quanto em prisioneiros de um estabelecimento carcerário. Para isso, o subsolo do Departamento de Psicologia da universidade foi transformado em uma prisão. Dos 70 voluntários que responderam ao anúncio publicado num jornal (US$ 15,00 por dia), a equipe de Zimbardo selecionou os 24 considerados psicologicamente mais estáveis.
     A experiência teve início com nove guardas e nove detentos. Os detentos foram mandados inicialmente para suas casas, onde, mais tarde, com a ajuda do Departamento de Polícia de Palo Alto, foram presos, ante o olhar perplexo de seus vizinhos. Da delegacia foram encaminhados para a chamada "prisão de Stanford". Logo na chegada foram submetidos a rituais de humilhação e despersonalização - foram revistados, despidos e desinfetados com spray. Cada preso recebeu um uniforme (similar a uma bata) com seu número na frente e nas costas. Os presos só podiam se referir a si mesmos e aos outros pelos números, nunca por seus nomes. Foram atadas correntes a seus pés. Eles foram obrigados a usar toucas para simular que seus cabelos tinham sido raspados. Segundo Zimbardo, "assim que alguns dos nossos reclusos vestiram estes uniformes, começaram a andar e a sentar-se de forma diferente", e "as celas eram tão pequenas que existia somente espaço para três casacos em cima dos quais os reclusos dormiam ou se sentavam, sem grande espaço para mais."
     Os guardas, usando óculos escuros espelhados o tempo todo, faziam contagens várias vezes durante o dia e a noite, impunham flexões como punição aos detentos e criavam mecanismos psicológicos para impor sua autoridade e minar a resistência dos presos.
     O primeiro dia transcorreu sem incidentes, mas no início do segundo dia eclodiu uma rebelião. Os guardas usaram extintores de incêndio para afastar os presos das portas das celas e, após controlar a rebelião, despiram os presos e passaram a maltratá-los. Como havia apenas três guardas em cada turno, chegaram à conclusão de que táticas psicológicas eram mais eficazes do que as físicas. Os guardas começaram a criar privilégios para alguns presos, sem maiores explicações, deixando os demais perplexos e quebrando a solidariedade do grupo.
     Zimbardo conta que "menos de 36 horas após o início da experiência o recluso #8612 começou a sofrer uma perturbação emocional aguda, evidenciando um pensamento desorganizado e com episódios de raiva e de choro incontroláveis. Apesar disso, já tínhamos começado a pensar de tal forma como autoridades prisionais, que julgamos que ele estava a 'dar-nos a volta' - a enganar-nos com o objetivo de o libertar" - em outras palavras, os "guardas" e o próprio pesquisador começaram a incorporar o papel de autoridade controladora. Posteriormente, diante de rumores de um plano de fuga, Zimbardo, completamente tomado por esse papel, tentou transferir os detentos para a verdadeira prisão de Palo Alto. O Departamento de Polícia se recusou a aceitar o pedido. Isso fez com que o nível de maus tratos aumentasse drasticamente.
     O preso #819 sofreu tamanha perturbação mental que precisou abandonar o experimento (segundo Zimbardo, ao ser informado de que poderia ir embora, o preso, que até então chorava compulsivamente, "olhou para mim como uma criança pequena a acordar de um pesadelo"). Foi substituído pelo preso #416, que a certa altura iniciou uma greve de fome. A resposta dos guardas foi colocá-lo na solitária por três horas, mesmo sabendo que as regras estipulavam o limite de uma hora. 
     No sexto dia, "ficou claro que tínhamos que terminar o estudo. Tínhamos criado uma situação espantosamente poderosa, uma situação em que reclusos estavam a retrair-se e a comportarem-se de forma patológica e em que alguns dos guardas estavam a comportar-se de forma sádica. Mesmo os guardas 'bons' sentiam-se impotentes para intervir e nenhum dos guardas desistiu no decurso do estudo". O estudo, planejado para durar duas semanas, só chegou ao sexto dia.
     O estudo foi encerrado prematuramente por duas razões. "Em primeiro lugar, tínhamos constatado, através de vídeos, um agravamento dos abusos aos reclusos no meio da noite por parte dos guardas que pensavam que nenhum investigador os estava a observar e que a experiência estava 'desligada'. O seu aborrecimento levou-os a abusos mais pornográficos e degradantes dos reclusos", conta Zimbardo. A segunda razão foi o questionamento ético feito pela dra. Christina Maslach, com quem Zimbardo viria a se casar.

Stanford. Qualquer semelhança
com a foto ao lado não é mera coincidência.
Abu Ghraib. Tortura como diversão.

    A experiência de Zimbardo - mostrada em detalhes no formidável site Experiência da Prisão de Stanford -  mostrou que não é necessário que uma autoridade nos leve a abusar de pessoas sob nosso poder. Se nós mesmos formos a autoridade, nossa tendência é esmagar qualquer resistência que se oponha à nossa vontade. Montesquieu tinha razão ao afirmar que "todo homem que detém poder tende a abusar dele". A escalada de brutalidade que fez com que o experimento fosse prematuramente encerrado não se deve a qualquer patologia por parte dos guardas, mas à própria natureza humana e à forma pela qual o poder se estrutura na sociedade. Prova disso são as condutas dos soldados nazistas durante a II Guerra Mundial, dos soldados americanos em Abu Ghraib, no Iraque, e - sim - da polícia paulista na onda de violência que varreu as periferias em 2012 - todas assustadoramente similares ao comportamento dos guardas de Stanford. Assim como a atual realidade carcerária brasileira, por sinal.
      O experimento ainda deu origem ao filme alemão Das Experiment, de 2001, que, embora não seja ruim, se afasta da realidade e descamba para a histeria.
Abu Ghraib.
     Numa brilhante palestra recentemente divulgada no site TED, Phillip Zimbardo, comentando a experiência, descreveu o que chama de "Efeito Lúcifer", afirmando que "o mal é o exercício do poder". Como Zimbardo afirma, a típica justificativa de que soldados e/ou carcereiros que cometem abusos são "algumas maçãs podres" não convence - "talvez o barril é que seja podre", ele afirma. Talvez.
     O "Efeito Lúcifer" é o conjunto de circunstâncias que leva pessoas "boas" (adjetivo usado por Zimbardo; não tenho certeza de que seja o mais adequado) a se tornar más. No centro de tudo está o poder e seu abuso.
     E se Zimbardo está certo, se o problema não são algumas poucas maçãs podres, e sim o barril, talvez precisemos pensar em formas de evitar que o barril apodreça as boas maçãs. Talvez devamos trocar o barril. Isso vale para a Alemanha de 1945, os EUA de 2006 e o Brasil de 2013.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Ditadura da intolerância e direitos humanos

 
 
Marco Feliciano: um pastor homofóbico e racista
presidindo a Comissão de Direitos Humanos
e Minorias da Câmara dos Deputados
 
 
      Não há nada mais traiçoeiro do que o inconsciente. Podemos tentar esconder nossos preconceitos, podemos tentar mostrar ao mundo uma versão de nós mesmos que nos pareça mais simpática, mas o inconsciente, esse danadinho, sempre dá um jeito de expor nossas mazelas e nossa miséria. Freud chamava isso de ato falho ou, numa expressão deliciosamente precisa, lapsus linguae.
     O caderno "tendências x debates" da edição de hoje da Folha de São Paulo traz um artigo escrito pelo deputado federal Marco Feliciano, do PSC-SP, intitulado Ditadura gay e direitos humanos. Ele nem precisaria ter escrito mais nada. O título de seu artigo já diz tudo o que se precisa saber a respeito do parlamentar.
     Marco Feliciano, que é pastor evangélico, foi indicado por seu partido para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM). O descalabro gerou mais do que justificados protestos, não só por parte da comunidade GLBTT, como de muita gente que, sem integrar essa comunidade, espera não apenas o mínimo de bom senso e coerência dos parlamentares, mas também que uma comissão dessa natureza seja presidida por alguém que respeite tais direitos.
     O pastor-parlamentar inicia seu artigo sugerindo que a indicação do deputado Gabriel Chalita para o Ministério da Ciência e Tecnologia foi vetada "pelo simples fato de ele ser católico e praticante", fingindo ignorar o escândalo de corrupção denunciado pelo assessor de Chalita, este sim o verdadeiro motivo do veto. "Perseguição religiosa?", indaga, já insinuando ser vítima da mesma perseguição. Não, pastor, foi corrupção mesmo.
     Segundo o deputado, "a indicação do meu nome gerou um furação de manifestações dissimuladas pela internet por parte de militantes da comunidade GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais). Algumas me acusaram de ser racista e homofóbico."
     "Dissimular", o deputado deve saber, não é sinônimo de "divulgar". Ao contrário, significa "ocultar", "disfarçar", "fingir", "afetar com artifício", segundo o dicionário Michaelis. O que o parlamentar afirma, portanto, é que todas as manifestações contrárias à sua nomeação partiram de militantes da comunidade GLBTT, mesmo que aparentemente venham de outros setores da sociedade.
     Bem, até onde sei, não sou gay, lésbica, bissexual, travesti nem transexual. Isso não me impede de questionar a legitimidade do parlamentar para presidir uma comissão que existe para promover e garantir justamente alguns direitos que o deputado ataca. A incapacidade de Marco Feliciano de perceber que não é necessário integrar a comunidade GLBTT para discordar de sua nomeação é, a meu ver, prova clara de sua incapacidade de exercer a presidência da CDHM.
     Ainda nas palavras do deputado, "tudo teve início quando postei na internet que os africanos são descendentes de um 'ancestral amaldiçoado por Noé'. Referia-me a uma citação bíblica, segundo a qual o filho de Noé, após ser amaldiçoado pelo pai, foi mandado para a África. A maldição foi quebrada com o advento de Jesus, que derramou seu sangue para nos salvar. Não usei a palavra negro, pois me referia a um povo definido por uma região e não pela cor de sua pele."
     Portanto, na cabeça do deputado, não há problema em ser racista, desde que o fundamento seja a Bíblia. A mesma Bíblia que atribui à mulher a origem de todos os males, que mostra um Deus bipolar (o Javé rancoroso do Velho Testamento se converte num Deus amoroso no Novo Testamento) que pede a seus fiéis que matem seus filhos só para provar que O amam, enfim, a mesma Bíblia que tem sido usada para os mais escusos fins desde que o cristianismo se tornou uma força não só espiritual como também política. Então, não é o deputado que é racista, só o que ele fez foi citar a Bíblia. Sei. Aliás, não se trata de racismo, porque a menção foi geográfica e a palavra "negro" não foi usada. Claro, na época de Noé, o continente africano estava tomado por japoneses, holandeses, índios e albinos. Por favor!
    Afirmando que "sobre homossexuais, minha posição é mais tolerante do que se pode imaginar", o pastor-parlamentar ressuscita o velho bordão de amar o pecador e odiar o pecado. Talvez, como Silas Malafaia, ele ache que "amar os homossexuais como amo os assassinos" é expressão da máxima tolerância. Lamento informar, caro pastor: não é. "Esta é a minha fé - só prego o amor e o perdão". Caro pastor, os homossexuais não precisam ser perdoados por nada, e - não se espante - eles não estão pedindo e nem precisam do seu perdão.
     E, embora se considere muito tolerante, o pastor alega que "esses militantes GLBTT rotulam como homofóbica qualquer pessoa que discordar de suas posições. Acusam de incitação à violência, o que qualquer pessoa isenta sabe que não é verdade. Mas, jogada ao vento, essa mentira causa estragos à imagem do acusado perante a opinião pública. Vivemos uma ditadura gay", concluindo que "a fúria deles é por saber que questiono suas pretensões. Defendo a Constituição e ela precisaria ser alterada para aprovar suas lutas."
     Considero-me uma pessoa isenta, e não creio que discordar das reinvidicações da comunidade GLBTT seja sinônimo de homofobia. Por outro lado, sei que é absolutamente verdadeira a incitação à violência - não só à violência física, mas também, e talvez principalmente, a psicológica - por parte dos que proclamam que a homossexualidade é uma doença, um mal a ser erradicado. O pastor-parlamentar não defende a Constituição - que deve ser interpretada, como um todo, sempre com base no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) - e sim trechos isolados que lhe permitem construir um raciocínio não condizente com o espírito da Constituição. Afirmar-se tolerante e sustentar a existência de uma "ditadura gay", num país em que há tanta violência contra os homossexuais, é uma incongruência gigantesca que o parlamentar tenta, sem sucesso, esconder.
     É inegável que Marco Feliciano se coloca em clara posição de antagonismo em relação à comunidade GLBTT. Ele conclui seu artigo afirmando que "essa comissão é muito mais importante do que discussões rasas", deixando clara sua intenção de não contribuir (e se possível, atrapalhar) para qualquer avanço no reconhecimento de direitos da comunidade GLBTT.
     Ocorre que as pessoas têm o direito de viver sua sexualidade da forma como acharem melhor. E é dever do Estado garantir que isso ocorra, inclusive por meio da criminalização de condutas que agridam alguém pelo só fato de ser homossexual. A Constituição, que Marco Feliciano afirma defender, elenca como objetivo da república brasileira "construir uma sociedade livre, justa e solidária". Um Estado que não reconheça a cada um o direito de amar os outros como quiser (ou puder) não contribuirá para que essa sociedade livre, justa e solidária seja construída.
     Marco Feliciano ainda viola a Constituição ao trazer valores religiosos para, na qualidade de membro do Poder Legislativo de um Estado laico, balizar suas decisões políticas e negar direitos à comunidade GLBTT. Que ele faça isso na qualidade de deputado já é algo gravíssimo. Atribuir-lhe a presidência da CDHM é uma aberração política.
     Como é possível que o pastor-parlamentar presida uma comissão criada para defender direitos que ele mesmo não reconhece?