Quem quer defender a intolerância precisa ter a coragem de se assumir intolerante. |
Na
edição de 02.07.2011 da revista Época, o deputado Jair Bolsonaro respondeu a
perguntas enviadas pelos leitores. Um leitor fez a seguinte pergunta: “Se o PL 122/06 fosse aprovado, intimidaria
os assassinos de homossexuais. Qual seria a ação que o Legislativo deveria
tomar para garantir os direitos da população LGBT?”
O
deputado deu a seguinte resposta: “A
maioria dos homossexuais é assassinada por seus respectivos cafetões, em áreas
de prostituição e de consumo de drogas, inclusive em horários em que o cidadão
de bem já está dormindo.”
Compare
agora esse tipo de raciocínio aos argumentos presentes no artigo Parada gay, cabra e espinafre, de J. R.
Guzzo, publicado na última edição da revista VEJA:
“O primeiro problema sério quando se fala em
‘comunidade gay’ é que a ‘comunidade gay’ não existe – e também não existem, em
consequência, o ‘movimento gay’ ou suas lideranças. Como o restante da
humanidade, os homossexuais, antes de qualquer outra coisa, são indivíduos. Têm
opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições opostas em
política, religião ou questões éticas. Votam em candidatos que se opõem. Podem
ser a favor ou contra a pena de morte, as pesquisas com células-tronco ou a
legalização do suicídio assistido. Aprovam ou desaprovam greves, o voto
obrigatório ou o novo Código Florestal – e por aí vai. Então por que, sendo tão
distintos entre si próprios, deveriam ser tratados como um bloco só?”
“Outra tentativa de considerar os
gays como um grupo de pessoas especiais é a postura de seus porta-vozes quanto
ao problema da violência. Imaginam-se mais vitimados pelo crime do que o resto
da população; já se ouviu falar em ‘holocausto’ para descrever a sua situação.
Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram
assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50 000 homicídios
por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays: é a
violência contra todos.”
“Não há proveito algum para os homossexuais, igualmente, na facilidade
cada vez maior com que se utiliza a palavra ‘homofobia’; em vez de significar
apenas a raiva maligna diante do homossexualismo, como deveria, passou a
designar com freqüência tudo o que não agrade a entidades ou militantes da
‘causa gay’.”
“Qualquer artigo na imprensa que
critique o homossexualismo é considerado ‘homofóbico’; insiste-se que sua
publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois ‘pregar o
ódio é crime’. Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está
praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de
homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for. Na verdade, não obriga
ninguém a gostar de ninguém; apenas exigem que todos respeitem os direitos de
todos.”
“Há mais prejuízos do que lucro,
também, nas campanhas contra preconceitos imaginários e por direitos duvidosos.
(...) O mesmo acontece em relação ao casamento, um direito que tem limites
muito claros. O primeiro deles é que o casamento, por lei, é a união entre um
homem e uma mulher; não pode ser outra coisa. Pessoas do mesmo sexo podem viver
livremente como casais, pelo tempo e nas condições que quiserem. Podem
apresentar-se na sociedade como casados, celebrar bodas em público e manter uma
vida matrimonial. Mas a sua ligação não é um casamento – não gera filhos, nem
uma família, nem laços de parentesco. Há outros limites, bem óbvios. Um homem
não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável
com ela, mas não pode se casar. (...) Argumenta-se que o casamento gay serviria
para garantir direitos de herança – mas não parece claro como poderiam ser
criadas garantias que já existem.”
E
por aí vai.
Para
quem não tem opinião formada sobre essas questões, os argumentos de J. R. Guzzo
podem parecer bem mais razoáveis do que a verve caricatural de Jair Bolsonaro –
até porque a proposta do artigo é
“ajudar” os homossexuais a não perder de foco o que é importante, tanto que o texto
é encerrado com a seguinte conclusão: “Perder
o essencial de vista, e iludir-se com o secundário, raramente é uma boa ideia”.
O artigo, portanto, parece ser bem mais racional, ponderado e tolerante do que
as manifestações histriônicas de Jair Bolsonaro. Mas não é.
Quero
deixar claro, desde logo, que eu não tenho nada contra os defensores de uma
linha de pensamento mais conservadora, a despeito da minha discordância. O
Brasil é um país democrático, onde cada um pensa o que quiser. Cada um defende
as ideias e valores que considera importantes. O problema de manifestações
como a de J. R. Guzzo é a profunda desonestidade intelectual que existe em seus
argumentos.
Jair
Bolsonaro pode ser um extremista, mas é indiscutivelmente honesto na forma como
expõe suas ideias e propostas – e por isso, apesar de grande rejeição de boa
parte da sociedade, ele foi democraticamente eleito. O eleitor de Jair
Bolsonaro pensa como ele e se identifica com seu modo de ver o mundo. Jair
Bolsonaro só prega para convertidos: dificilmente quem tem dúvidas em relação a
questões polêmicas como aborto, cotas, volta da ditadura e racismo será
convencido por seus argumentos.
Por
outro lado, o discurso falsamente democrático, conservador “light”, do qual o
artigo de J. R. Guzzo é um exemplo perfeito, ostenta uma pretensa
racionalidade, uma dissimulada parcimônia que pode enganar muita gente que
ainda não se decidiu definitivamente por uma ou outra posição.
Não
há problema algum no embate de ideias contrapostas. Que elas sejam apresentadas
às pessoas e que cada um opte pela linha de pensamento que achar mais correta.
Mas numa sociedade que reflete pouco sobre as informações que recebe, é
fundamental que os argumentos sejam honestos. Do contrário, as pessoas estarão
simplesmente sendo enganadas.
Peguemos,
como exemplo, os argumentos que transcrevi acima:
1)
Não existe “comunidade gay” porque os homossexuais “têm opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições
opostas em política, religião ou questões éticas”. Mas isso ocorre em
qualquer espécie de comunidade – toda comunidade é formada por indivíduos.
Evangélicos, trabalhadores sindicalizados, integrantes de uma associação de
amigos do bairro, sócios de um clube. Se o argumento de J. R. Guzzo é correto,
então o conceito de comunidade simplesmente não existe.
2)
“Pelos últimos números disponíveis, entre
250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde
se cometem 50 000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a
violência contra os gays: é a violência contra todos.” A violência contra
os gays não se resume a homicídios. Impossível que o articulista não saiba
disso.
3)
Afirmar que qualquer artigo na imprensa que “critique o homossexualismo” é
considerado homofóbico, mais do que uma mentira, é uma afirmação impossível de
confirmar ou refutar, a não ser que o autor explique o que significa “criticar
o homossexualismo”, o que J. R. Guzzo não faz. Além do mais, quem critica, e
como é possível afirmar que qualquer
artigo – logo, todos os artigos –
é criticado? Já li muitos artigos na imprensa e na internet que criticam
questões políticas ligadas ao homossexualismo, e os comentários dos leitores,
quando não se dividem, muitas vezes apoiam o articulista. Afirmar que há uma
generalização na crítica a esses artigos é fazer outra generalização e,
maliciosamente, empregar em sentido contrário a própria lógica que se pretende
criticar.
4)
Afirmar que “o casamento, por lei, é a
união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa”, desconsidera
o fato de que no final de 2011 o STF já decidiu que uniões homoafetivas devem
ser consideradas famílias – dando novo sentido a uma norma constitucional que dizia que apenas a união estável entre homem e
mulher poderia ter esse reconhecimento. E o argumento de que o casal
homossexual “não gera filhos, nem uma
família, nem laços de parentesco”, se aceito, nos forçaria a reconhecer que
casais maduros ou idosos, que se conhecem e se casam após a chamada idade
fértil, também não poderiam ser considerados famílias. E é impossível que J. R.
Guzzo não saiba que um casamento atribui mais direito aos consortes do que a
união estável, principalmente em questões de herança. Basta ler o Código Civil.
Estas
são conclusões a que chegamos com facilidade quando paramos para analisar
criticamente esse tipo de argumento. Mas muita gente absorve o que lê sem
maiores reservas, principalmente quando a linguagem aparenta ser ponderada,
racional, “democrática”. É necessário olhar com mais atenção para enxergar o
discurso de intolerância – e, em muitos casos, de verdadeira ilegalidade – que se
esconde por trás dessa fachada de falsa civilidade.
J.
R. Guzzo é um jornalista experiente, e duvido que seja um idiota. Duvido,
portanto, que não tenha percebido as grotescas falhas de seu raciocínio. Optar
por ignorá-las implica atribuir a argumentos sabidamente fracos uma força que
eles não têm, com o objetivo de convencer seus leitores de que são argumentos
robustos. Em outras palavras, significa saber que os argumentos não são válidos, mas defendê-los mesmo assim. Mais do que simplesmente desonesto, isso é imoral, porque evidencia
uma intenção consciente de enganar os leitores. Intenção que fica clara num
olhar atento ao artigo, pois que parcimônia e racionalidade poderiam existir num
texto que não se pretende preconceituoso, mas que compara uma relação entre
duas pessoas do mesmo sexo a uma relação entre um homem e uma cabra? (“Um homem não pode se casar com uma cabra,
por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”).
O problema do intolerante é que, por mais que ele procure dar à intolerância um
verniz de civilidade, às vezes o inconsciente nos trai...
Repito,
nada contra o pensamento mais conservador. Mas no debate de ideias é preciso
manter a dignidade e a honestidade - que são, ou deveriam ser, o contraponto à liberdade de opinião. Quem quer defender a intolerância precisa
assumir isso explicitamente e dar a cara a tapa. Agir de outro modo, como foi feito no artigo de VEJA, é praticar
um estelionato intelectual.
Num
debate honesto, Jair Bolsonaro se sai melhor do J. R. Guzzo.
(Obs.: Gostaria muito de saber quem é o autor da ilustração do início do texto, para dar-lhe o devido crédito, mas não consegui descobrir. Se alguém souber, por favor me avise.)
René, como sempre, belíssimo texto!
ResponderExcluirSobre o assunto, penso o seguinte: criou-se na sociedade ocidental moderna, em que a tolerância com as diferenças é muitas (e acertadamente) vezes imposta pelo Estado através de normas legais, a cultura do "politicamente correto". Ao meu ver - e sei que muitos não pensam assim - ser "politicamente correto" é exteriorizar racionalmente uma posição de tolerância com a qual não se concorda internamente, a fim de evitar não só as reprimendas morais de boa parte da sociedade, como, e talvez principalmente, evitar a responsabilização civil e/ou criminal por parte do Estado caso a verdadeira opinião fosse manifesta.
O que esse jornalista fez foi justamente tentar ser "politicamente correto". Racionalizou argumentos estapafúrdios para, de forma polida e revestida de cultura, justificar seu preconceito sem parecer preconceituoso. O artigo dele poderia ser resumido assim: "Não tenho nada contra os homossexuais! Porém...".
Pior: esse é o tipo de manifestação que só INCENTIVA e PERPETUA a intolerância, como você bem observou!!
É uma pena que as pessoas não tenham a coragem de expôr suas convicções, com medo de encarar as consequências delas resultantes... Realmente, o Bolsonaro é muito mais verdadeiro nesse ponto!
Tem outras coisas até mais capciosas.Me irrito bastante com o "Mas se alguém diz que não gosta de gays não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais"; a lei não obriga a "gostar", mas proíbe sim o "não gostar" quando externado de determinadas maneiras.
ResponderExcluirE gerar filhos não é condição para formar família nem entre casais heterossexuais em idade fértil, se eles assim não quiserem.
Detalhes: HomossexualIDADE. 'Ismo' dá a entender que é doença, o que obviamente não faz o menor sentido (E caso fosse necessário, se poderia citar sobre a desconsideração da homossexualidade como doença nas décadas de 60 e 70).
ResponderExcluirOutra coisa: Esse texto da VEJA não representa o conservadorismo. Não sou conservador, mas, pelo respeito que tenha a opiniões diversas, isso não representa posição alguma. Isso passa pelo ódio, ignorância e falta de ética, características ja familiares a essa 'revista'.
Esse debate só tem alguma relevância pela influência das religiões nos costumes sociais. Sabe-se lá por qual razão, a quase totalidade das religiões fundadas no Deus de Abraão que, sabe-se lá por que, se preocupam demasiadamente com a sexualidade dos indivíduos, reprimindo condutas tidas por imorais, entre as quais a homossexualidade.
ResponderExcluirProposta: sem prejuízo da necessária liberdade de culto religioso, este só deve ser garantido a quem goza das faculdades civis. O ensino religioso catequizante deve ser proibido - somente o ensino da história das religiões.
O combate ao homossexualismo só existe em função de crenças religiosas irracionais (todas elas são irracionais, senão não seriam crenças, seria ciência).
Suprimindo as crenças irracionais do inconsciente coletivo, o problema restará resolvido - e cada um fará o que quer com o próprio corpo em suas respectivas intimidades.
Professor, eu lembro que depois de uma aula, discutíamos a respeito do Jair Bolsonaro. Eu disse que ele era um absurdo, e me perguntava como poderia existir alguém que conseguisse externar abertamente seu ódio pelos homoafetivos. E você falou que não era dele que se devia ter medo, e sim daqueles que mascaram suas intenções através da "aparente civilidade", aqueles que se articulam bem e não falam, abertamente absurdos, e por isso conseguem convencer de certo modo, algumas pessoas.
ResponderExcluirAo ler o artigo da Veja eu lembrei da nossa conversa, e infelizmente constatei a verdade: o que você havia me dito está absolutamente correto. E isso me dá medo.