"Carcereiros", novo livro de Drauzio Varella. O massacre do Carandiru na origem do PCC. |
No dia 02 de outubro de 1992 –
há vinte anos – na Casa de Detenção conhecida em São Paulo como Carandiru, para
usar uma expressão comum aos agentes penitenciários, “a cadeia virou”.
Não toda a cadeia, mas o
pavilhão Nove, onde ficavam encarcerados os detentos primários. Ao lado do Nove
ficava o Oito, com os reincidentes, criminosos mais experientes não só em
relação à “vida bandida” mas também em relação à vida atrás das grades.
Os agentes penitenciários que
cuidavam do pavilhão Oito, ao ver que a situação do Nove se agravava – os
presos tomaram o pavilhão, expulsaram os agentes que nele trabalhavam (um erro
que lhes custaria muito caro) e fizeram barricadas, impedindo a entrada de quem
quer que fosse – decidiram tentar recolher os detentos do Oito, quase mil e
oitocentos.
Não foi uma tarefa fácil. O
Batalhão de Choque da PM de São Paulo – conhecido como “o Choque” – já estava
no presídio. Presidiário também tem medo de morrer, e em situações como essas a
primeira reação é desentocar as facas e se preparar para a guerra. Os agentes
que cuidavam do Oito, no entanto, também eram experientes e conheciam bem o
universo carcerário, e conseguiram, de forma quase miraculosa, convencer os detentos
a voltar para suas celas, por meio de um acordo: os “faxinas”, também
presidiários, ficariam com as chaves das celas, e poderiam soltar os demais se
isso fosse necessário. Além disso, de hora em hora um funcionário passaria
pelas celas informando os detentos sobre o que ocorria do lado de fora. Com os
presos em suas celas e trancados, com o Oito completamente sob controle dos
agentes, a polícia não teria motivo para invadir o pavilhão. E não invadiu.
Os detentos do Nove cometeram
um erro que se mostrou fatal: não fizeram nenhum refém. Qualquer agente
penitenciário com alguma experiência encerraria aquela rebelião em dois dias,
sem que houvesse nenhuma (ou quase nenhuma) morte: bastava cortar a água e a
eletricidade, e os detentos acabariam vencidos pelo cansaço. Estratégia óbvia e
usada muitas vezes anteriormente.
Mas houve uma ordem – até
hoje não se sabe bem de quem – para que o Choque invadisse o pavilhão Nove. O
resultado não poderia ter sido outro: o massacre do Carandiru, a maior tragédia
já registrada no sistema carcerário brasileiro, com (pelo menos) cento e onze
mortos (há estudos que apontam números maiores, nunca confirmados
anteriormente). Todos presidiários. Nenhum policial foi morto.
Essa história inaugura o novo
livro do médico Drauzio Varella, “Carcereiros”, e foi contada ao próprio autor
pelos agentes penitenciários que viveram aquele momento trágico. Contraponto a “Estação
Carandiru”, “Carcereiros” apresenta a mesma realidade mostrada na obra
anterior, agora sob a ótica de quem está do outro lado das grades, custodiando
os detentos – pessoas que, de certo modo, encontram-se presas (literalmente) à
mesma realidade daqueles de quem devem cuidar.
Não há por que duvidar dos
fatos narrados pelos carcereiros ao médico – por mais que se leia e se estude a
respeito, quem vive qualquer realidade concreta sabe mais sobre ela do que quem
se debruça sobre livros e pesquisas. Drauzio Varella é um contador de histórias
talentosíssimo, dono de uma prosa leve, informal e saborosa. Leitura mais do
que recomendada.
Mas o que me importa nesse
momento não é propriamente a obra em si, e sim a consequência que se extrai do
massacre. Drauzio Varella afirma que o massacre levou os presos à conclusão de
que era necessário se organizar, fundamentalmente para se proteger de eventos
como aquele. Era o embrião do PCC, facção criminosa que “organizou” parte
significativa do crime em São Paulo e que, hoje, vive uma guerra declarada com
a polícia paulista.
É claro que não foi apenas o
vácuo de poder deixado pelo massacre do Carandiru que levou ao surgimento do
PCC. Há diversos outros fatores, dentre os quais o mais importante é a
precariedade das condições carcerárias que, embora ainda subsista hoje, era
muito pior há vinte anos. Dentre outros objetivos, o PCC buscava a melhoria das
condições penitenciárias, uma bandeira que facilitou muito a arregimentação de
membros para a organização criminosa.
Mas destaco essa não tão óbvia
relação entre o massacre do Carandiru e o surgimento do PCC para mostrar que a
guerra que vivemos hoje encontra um dos seus fundamentos justamente na tão
propalada mentalidade de que violência se combate com mais violência (um raciocínio
de uma ilogicidade gritante, mas que ganha mais adeptos a cada dia). Acuada, a
sociedade bate palmas para a polícia que mata indiscriminadamente, à margem da
lei – sem se dar conta do óbvio fato de que essa violência só acirrará a
guerra, não a atenuando de modo algum.
Não há aqui qualquer crítica
expressa aos policiais do Choque que atuaram no massacre, e sim à determinação
que receberam (o que não implica qualquer apoio ao que fizeram. Aliás, o fato
de que, passados vinte anos, nenhum policial foi julgado pelo ocorrido – seja para
ser absolvido ou condenado – é uma excrescência jurídica incompreensível). No
dia 15 de outubro, Drauzio Varella, entrevistado no programa “Roda Viva” por
conta do lançamento do livro, disse o seguinte:
“Agora, você imagina: você põe um bando de soldados, que têm ódio
de presos – com razão, eles vivem numa guerra particular contra os bandidos, na
rua – dá uma metralhadora na mão de cada um e um cachorro, manda invadir um
pavilhão que está pegando fogo, escuro, e você espera que vá acontecer o quê?”
O fato é que quem apoia o
massacre, a chacina, o “mata mesmo!”, estimulando um impulso que já existe no
policial (em razão da natureza da atividade que exerce) e que, somado ao medo da
morte (policial, assim como presidiário, também tem medo de morrer), torna a
tarefa de controlar esse impulso ainda mais difícil (e fica aqui o
reconhecimento a todos os policiais que, a par dessas dificuldades, conseguem
fazê-lo), não se dá conta de que está fomentando uma espiral de violência que só
tende a piorar a situação.
Diversos estudos mostram que
o policial que invoca para si o poder de vida e morte sobre os bandidos vai
paulatinamente se afastando da legalidade, porque abandona um parâmetro
objetivo de certo e errado e adota seu próprio parâmetro, subjetivo e cambiante
ao sabor do tempo e das circunstâncias. Com o tempo, “legalidade” se torna uma
palavra desprovida de conteúdo, e o policial descamba de vez para o mundo do
crime – processo demonstrado com muita perspicácia na obra “O homem X”, de Bruno
Paes Manso.
A parcela da sociedade que (re)age
de acordo com o calor do momento não se dá conta dessas intrincadas relações de
causa e efeito que envolvem a violência urbana. Se não fosse o massacre do
Carandiru (tão aplaudido por alguns), talvez o PCC não tivesse a força que tem
hoje. Talvez tantos policiais não tivessem morrido. Mas é preciso analisar os
fatos com frieza para detectar essas relações. Se não entendemos o passado,
repetimos os mesmos erros no futuro e, como dizia o velho rock dos anos 80, “a
história se repete, mas a força deixa a história mal contada”.
A solução para o problema que vivemos. Penso o mesmo
ResponderExcluirO GLOBO: – Mas… a solução seria…
- Solução? Não há mais solução, cara… A própria idéia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC…) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios…). E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução.
Trecho da entrevista com Marcola em 2006 para o Globo.
http://acertodecontas.blog.br/atualidades/entrevista-com-o-lider-do-pcc-marcola/
Lucio
Marcola ensinando o governo a governar e mostrando que entende mais nossa realidade do que os políticos profissionais. Com a bandidagem mostrando competência e os políticos o contrário, estamos lascados!
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