quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sobre universidades, cruzes e fuscas



Protesto na PUC-SP contra a eleição da professora Anna
Maria Cintra para a função de reitora da universidade.


            A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – a PUC-SP – tem vivido em convulsão desde que a professora Anna Maria Cintra, terceira colocada lista tríplice de candidatos na eleição para a reitoria da universidade, foi nomeada por dom Odilo Scherer para assumir a função de reitora. Inconformados, alunos, professores e funcionários da universidade desencadearam uma greve que, ao menos até o momento, não tem previsão para terminar.
            É certo que o estatuto da universidade prevê que o grão-chanceler da instituição pode nomear como reitor qualquer um dos três candidatos da listra tríplice que lhe é encaminhada. Não houve, assim, o descumprimento de nenhuma regra do estatuto. Houve a quebra de uma tradição de mais de trinta anos, de eleição do candidato mais votado. Por outro lado, os três candidatos, numa assembleia realizada no Tuca em agosto, se comprometeram por escrito a não assumir o cargo caso não fossem os mais votados, o que não aconteceu.
            Não quero me alongar sobre a situação em si – apenas ressalto que, a despeito do que prevê o estatuto, uma vez que é dado a alunos e professores o direito ao voto, cria-se a expectativa de que a votação sirva para alguma coisa – principalmente quando há apenas três candidatos, como é o caso (e como costuma ocorrer) e quando há uma tradição de três décadas nesse sentido.
            Mas o que me interessa, no momento, é o debate publicado hoje na seção “tendências/debates” da Folha de São Paulo. De um lado, os professores Carlos-Arthur Ribeiro do Nascimento, Jeanne Marie Gagnebin e Salma Muchail, todos do Departamento de Filosofia da PUC-SP, defendendo a mobilização no artigo Um ataque à democracia na universidade. Do outro, o professor do Instituto Tecnológico Pio XI e da Escola Dominicana de Teologia, Edson Luiz Sampel, defendendo a escolha de dom Odilo, no artigo Pontifícia Universidade Católica: pontifícia e católica.
            O primeiro artigo traz argumentos semelhantes àqueles que já mencionei, e revela a preocupação com a perda do espaço democrático na universidade. Não vou me estender sobre ele. O link está logo acima e o artigo fala por si.
            Muito mais preocupante e surpreendente foi o artigo de Edson Luiz Sampel, cujos argumentos me deixaram de tal forma perplexo que resolvi escrever um pouco a respeito.
            Após defender a legitimidade do procedimento – o que era esperado – o articulista afirma que o grão-chanceler nomeará o reitor “com cabal discricionariedade, tendo em vista o bem maior da instituição”, salientando ainda que “Dom Odilo tem dado o melhor de si para recrudescer a confessionalidade da PUC-SP, resgatando-lhe a ‘alma católica’. Infelizmente, essa postura do grão-chanceler, assaz benemérita e imprescindível do ponto de vista pastoral e jurídico-canônico, arrosta opositores vorazes. Debaixo do inconsistente vexilo da independência acadêmica, alguns desejam mesmo que o catolicismo seja banido do campus e cambiado por um relativismo cristão ou cristianismo light ou, então, por outras ideologias”.
            Depois de comparar a situação do reitor da PUC-SP à do diretor da Volkswagen (“Quanto tempo duraria na fábrica da Volkswagen um diretor que fosse grande defensor e entusiasta dos automóveis montados pela Ford?”), Edson Sampel afirma: “No entanto, querem que a PUC-SP seja complacente com professores que defendem, por exemplo, o aborto na mídia – e que só tem acesso aos jornais em virtude de exibirem o título de professor ou professora da PUC-SP”, para concluir que “quanto mais congruente com os valores autenticamente católicos, tanto mais a PUC-SP ascenderá ao cume da excelência científica, pois a Igreja é perita em humanidades (Populorum progressio, 13)”.
            Admito que a menção ao resgate da “alma católica” da PUC-SP ao menos mostra a transparência das intenções de dom Odilo. Mas no contexto da atividade universitária, chamar de “inconsistente vexilo” (“vexilo” é sinônimo de bandeira – precisei pesquisar) um valor que é não só caro, mas fundamental a qualquer universidade – a independência acadêmica – me parece desconsiderar a essência e a concepção da instituição em si.
            Esse argumento, estranho a qualquer acadêmico, é reafirmado na menção aos “professores que defendem o aborto na mídia”. Como aluno de uma universidade que reputo séria, não quero que a PUC-SP seja “complacente” com professores que defendem o aborto na mídia. Não se trata de “tolerar” ou ser “condescendente” com professores que expõem opiniões próprias, geralmente fruto de muito estudo e reflexão. A PUC-SP deve respeitar essas opiniões e, principalmente, ter em vista que a atividade científica séria só se constrói com liberdade intelectual e pluralismo das opiniões – algo bem diferente de complacência.
            Também é bom lembrar que as pessoas que opinam na mídia não o fazem porque são professores da PUC-SP – e sim porque são estudiosos que conhecem a fundo os temas sobre os quais são indagados. Um professor de direito civil que conheça a fundo Direito de Família não será procurado para falar sobre contratos mercantis. É a qualificação intelectual que leva ao cargo de professor da PUC-SP, e não o contrário.
            A comparação entre o reitor da PUC-SP e o diretor da Volkswagen parece confirmar a afirmação, feita no artigo dos professores Carlos-Arthur, Jeanne e Salma, de que “a mantenedora, desde 2005 e de modo autoritário, mercantiliza o ensino”. De fato, a comparação é esdrúxula. A Volkswagen não tem o compromisso de formar pensadores, ao contrário das universidades. Aplicar a lógica de uma indústria automotiva privada a uma universidade (e nesse aspecto não interessa se a universidade é pública ou privada, a função é a mesma) é trazer ao ambiente acadêmico um aspecto mercantil de que as melhores universidades privadas tentam se afastar, tanto quanto lhes for possível. Formar pensadores dotados de senso crítico e construir fuscas são coisas bem diferentes.
            O mais surpreendente de tudo é que, diante de uma postura assumidamente sectária, na qual opiniões que não sigam o dogma (outra palavra que não combina nada com o mundo acadêmico) católico devem ser refutadas, o articulista defenda que “quanto mais congruente com os valores autenticamente católicos, tanto mais a PUC-SP ascenderá ao cume da excelência científica” (prefiro creditar à Folha e não ao articulista o uso do verbo “acender” no lugar de “ascender”).
            Confesso minha dificuldade em compreender essa afirmação. Os valores católicos determinam, dentre outras coisas, que Darwin estava errado, que o surgimento do homem se deu tal como descrito na Bíblia e que o mundo tem cerca de 6.000 anos. Como conciliar um apego estrito a essas ideias com o “cume da excelência científica”? Afirmar que “a Igreja é perita em humanidades” é insuficiente, já que sua história demonstra que ela também é perita em desumanidades (por exemplo, apenas em 1992 a Igreja reviu o processo de Galileu Galilei, "perdoando-o" pela heresia de ter afirmado, três séculos antes, que a Terra não era o centro do universo).
            Desde o surgimento da universidade (em 1088, com a fundação da Università di Bologna), cujos objetivos principais consistiam justamente na compilação, organização e divulgação do conhecimento até então produzido, a essência de uma universidade está no respeito à pluralidade de pensamento. Ainda que se admita o estabelecimento de linhas-mestras de construção teórica, isso não pode significar, de modo algum, a perda da liberdade científica e, principalmente, da liberdade de pensamento. Ou a PUC-SP pretende, no futuro, eliminar o evolucionismo de seus currículos e ensinar o criacionismo, como fazem algumas escolas do eixo religioso nos EUA?
                 A PUC, antes de ser pontifícia e antes de ser católica, é uma universidade. É este o substantivo (e o núcleo) do nome PUC. Nesse sentido, o título do artigo de Edson Sampel talvez revele mais do que seu autor pretendia.
            O atual movimento, embora tenha repercutido a ponto de gerar protestos, não é de agora. Em março deste ano, dom Luiz Bergonzini, bispo emérito de Guarulhos (falecido em junho), escreveu em sua página na internet que Graças a Deus, a PUC não é uma "progressista universidade comunista"!, em artigo no qual afirmou que “se a PUC é da Igreja Católica, deve seguir o Evangelho e a Moral Cristã. Não pode ter em seu corpo docente professores contrariando os ensinamentos da Igreja Católica, dentro ou fora da sala de aula”. Alguém deveria ter-lhe perguntado: e alunos não católicos (pagantes, todos), podem integrar o corpo discente? 
            Talvez formalmente a PUC-SP pertença à Igreja Católica. Mas na prática ela pertence aos alunos, ex-alunos e professores, pessoas que convivem na instituição para construir o pensamento, para que se formem advogados, historiadores, psicólogos etc. Gente que, durante o curso, ajuda a formar a PUC, e que, ao sair da faculdade, leva a PUC consigo. Se alguém tiver alguma dúvida a esse respeito, tente imaginar a PUC sem seus professores e alunos. Que se entregue à PUC, vazia, à Igreja Católica, dizendo: “toma, é sua e só sua”.
            Ou a PUC-SP se dá conta de que está no mundo, ou é melhor deixar de ser uma universidade e se transformar num curso preparatório para seminários. Só não dá para querer ser as duas coisas ao mesmo tempo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Alô, criançada, a polícia chegou!



Angeli, genial como sempre.


            Hoje, pela manhã, o governador Geraldo Alckmin defendeu a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente – o ECA – porque, nas suas palavras, “ela tem equívocos. O primeiro é que o menor fica no máximo três anos apreendido e sai com a ficha limpa, não importa quantos crimes ele cometa. A pena para crimes mais graves deve ser maior, para estabelecer um limite ao criminoso”.
            A afirmação não foi bem recebida pelos defensores mais enfáticos dos direitos humanos – o governador é acusado de fomentar a violência e aumentar a repressão. Mas embora eu levante com bastante frequência a bandeira dos direitos humanos, não me parece que a fala do governador tenha sido bem dimensionada por seus críticos.
            O primeiro ponto que observo na posição de Alckmin – e que me causa um certo alívio – é que ele não levantou a já batida bandeira da diminuição da maioridade penal. Bandeira que, aliás, vem sendo repetida exaustivamente na internet nos últimos dias.
Campanha na internet. É o que muita gente
quer para o Brasil. Não resolveria nada, mas...
            Há muita gente que defende essa ideia - em 2010, o então presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, Eliseu Padilha (PSDB-RS), anunciou que encaminharia para votação nada menos que 21 projetos que tratam da redução da maioridade penal - e só não o fez porque  diversas entidades que defendem direitos das crianças e adolescentes fizeram muita pressão, gerando uma repercussão negativa. 
             Sou radicalmente contrário a qualquer projeto de lei que busque reduzir a maioridade penal para 16 anos – ou, como pretendem alguns, para 12 anos. Não tenho a pretensão de esgotar esse assunto num espaço tão curto, mas vou tentar sintetizar as razões mais óbvias para isso.
            Quem defende a redução para 16 anos (fiquemos com a postura menos extrema) costuma afirmar que 1) a lei é muito branda para os adolescentes infratores; 2) os adolescentes de hoje são mais maduros e precoces, e podem distinguir o certo do errado; 3) muitos países adotam idades menores para a punição criminal ou decidem, em alguns casos, que “fulaninho será julgado como adulto”. Há diversos outros argumentos, mas esses são os mais comuns. E o espaço é curto.
            Nenhum desses argumentos consegue me convencer. Explico o porquê.
            1) Em muitas situações a lei é, sim, branda para os adolescentes infratores. Mas isso não é um problema do ECA, e sim do sistema repressivo como um todo. Um estuprador primário pode receber a pena mínima prevista para o crime – 6 anos – e cumprir apenas 2/5 dela em regime fechado – ou seja, 2 anos e 5 meses, aproximadamente. Quero com isso demonstrar que, para maiores e menores, a lei, que é pensada para os casos gerais (e não para as exceções) poderá ser (e muitas vezes será) injusta. É preciso analisar se as punições previstas em lei são adequadas para o contexto geral, e não para as exceções. Do contrário, será justa para as exceções e injusta para todos os demais. Não estou afirmando que o ECA é justo ou injusto, e sim que o argumento de que a lei é benéfica para os menores infratores não costuma levar em consideração esse aspecto do problema. E tenho a impressão – absolutamente empírica, já aviso – de que, para a maioria das infrações praticadas por menores, a regra geral (internação por até 3 anos) é adequada. Até porque a finalidade das medidas previstas no ECA é diferente da finalidade das penas previstas no Código Penal, justamente por levar em consideração o fato de o menor ainda estar em formação – o que nos leva ao argumento seguinte.
            2) Sim, os menores de hoje são mais maduros e precoces do que os de 20 anos atrás. Mas, se essa lógica for aplicada para reduzir a maioridade penal para 16 anos, provavelmente daqui a 20 anos, sob o mesmo argumento, poderemos reduzi-la para 14 anos, e daqui a 40 anos, para 12 – idade que, para alguns, já seria adequada hoje. Além disso, tanto aos 16 quanto aos 18, a pessoa, via de regra, ainda está em formação da personalidade, do caráter, dos valores. É claro que o critério de 18 anos é arbitrário, como seria o de 16 ou 14 (quem, em sã consciência, afirmaria que a pessoa com 18 anos é mais ou menos madura do que quando tinha 17 anos, 11 meses e 29 dias de vida?) – e é claro que essa arbitrariedade gera injustiças. Mas o argumento de que o jovem de hoje sabe mais (ou menos) do que o jovem e antigamente e que, por isso, deve responder criminalmente, não parece condizer com a realidade. Pelo contrário - nossos avós se casavam mais cedo, saíam de casa mais cedo, pariam mais cedo etc.
            3) Quanto ao argumento de que nos EUA, na Inglaterra etc. a maioridade penal começa mais cedo, não me parece que realidades tão distintas possam ser comparadas de maneira simplista. Adolescentes ingleses e norte-americanos de baixa renda não padecem do abandono governamental que se vê no Brasil. Um Estado que não presta os serviços sociais mais primários (educação, saúde etc.) de forma minimamente decente contribui para que crianças e adolescentes sejam seduzidos pela marginalidade. Pretender, depois de ser omisso, reparar o erro com aumento de repressão implica confundir causa e efeito e atacar o problema pela ponta errada.
            Deixo por último o que costumo chamar de “argumento do Champinha”. Como uma versão tupiniquim da “reductio ad hitlerum”, a “reductio ad champinhum” é aquele argumento que surge em quase todas as discussões sobre redução da maioridade penal.
            O Champinha, para quem não sabe, é um rapaz condenado por estupro e homicídio, que só não está solto porque foi considerado completamente insano... é o típico psicopata, cometeu crimes pavorosos que chocaram a sociedade, mas só tinha 16 anos quando os crimes foram cometidos. Portanto, só poderia ficar preso por 3 anos.
            Só que a lei não é feita pensando nos Champinhas, que são a exceção e não a regra. Lei vale para todos e deve ser pensada com base no corriqueiro, não nas situações extremas – o que não significa que não deva estar preparada para lidar com as exceções. Mas não se pode elaborar uma lei partindo-se do pressuposto de que cada menor infrator é o Champinha.
            Finalmente, é sempre bom lembrar que a Constituição Federal veda a diminuição da maioridade penal, de modo que discussões a esse respeito só poderiam ser feitas diante de uma nova assembleia constituinte (daí a inutilidade dos 21 projetos de lei que o deputado Eliseu Padilha pretendia colocar em pauta em 2010).
            Deixando de lado o aspecto jurídico, é sempre bom lembrar que o aumento da repressão não tem nada a ver com a solução do problema. A solução está em impedir que o menor seja seduzido para o mundo do crime – dando-lhe educação decente e oportunidades de trabalho adequadas, e mostrando que o policial é um aliado com quem contar, não um inimigo a ser temido. Se isso não for feito, não adianta nada endurecer a lei nem reduzir a maioridade penal para 8 anos de idade.
Certamente, um ambiente propício
à ressocialização do menor infrator...
            E mais: se nossas cadeias são verdadeiras escolas do crime, que bem fará à sociedade enfiar ainda mais gente nas masmorras superlotadas que temos, fazendo com que menores de 16 anos (alguns, gosto de pensar, ainda recuperáveis) convivam com delinquentes escolados e perigosos, numa instituição que sabidamente não ressocializa ninguém?
            Em suma, numa época em que se fala cada vez mais na falência da pena de prisão, e em que se buscam alternativas melhores para que a sociedade lide com o crime, reduzir a maioridade penal – ampliando o espectro do Direito Penal na sociedade – não parece uma boa ideia.
            Daí porque, contrariando a lógica que eu a princípio adotaria, de criticar a postura do governador Alckmin, enxergo em sua fala uma postura menos conservadora do que parece à primeira vista (e que seria esperada do atual PSDB).
            Explico-me: embora eu defenda que a redução da criminalidade deve partir da priorização da prevenção, e não da repressão, não ignoro o fato de que a mudança do atual modelo social leva tempo, durante o qual os menores infratores (que não serão imediatamente alcançados por uma política pública de médio/longo prazo) cometerão verdadeiras atrocidades. Ignorar esse aspecto do problema seria ingenuidade – um luxo ao qual não podemos nos dar.
            Dentro desse quadro trágico em que temos de procurar a solução menos pior, parece-me que a fala do governador não se revela tão reacionária quanto parece num primeiro momento. A solução não está na repressão, e sim na prevenção. Mas prevenção leva tempo. Até lá, o quê? Endurecer as medidas previstas no ECA me parece mais adequado do que levantar a velha bandeira da diminuição da maioridade penal. Pelo menos isso Alckmin não fez.
            Bom seria uma sociedade sem crimes. Mas isso não existe. Havendo crimes, haverá punições justas e injustas. É inevitável. É preciso calibrar o sistema para que o número de injustiças seja o menor possível. E a postura de Alckmin, embora não agrade aos mais progressistas (certamente deliciará os conservadores), não foge tanto à razoabilidade. Afinal, para lidar com a situação do momento, o que mais podemos fazer?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Carta a um vira-latista brasileiro


"Vira-lata, eu?"



            Prezado vira-latista:

            Sei que o vira-latismo brasileiro ganha adeptos a cada dia, mesmo com o Brasil crescendo e melhorando. Como não sou um vira-latista, e como o momento que o país vive não me parece favorável ao vira-latismo, pergunto-lhe se você sabe a razão de tanto sucesso.
            Tentei encontrar nas origens próximas e remotas do vira-latismo um motivo, talvez puramente psicológico, que me explicasse por que, afinal de contas, o número de vira-latistas tem aumentado tanto. Mas confesso que a pesquisa histórica não esclareceu minhas dúvidas.
            A origem próxima está, como você bem sabe, no artigo Complexo de vira-latas, do Nelson Rodrigues, publicado na revista Manchete em 1958 às vésperas da estreia do Brasil na Copa. Claro que o Nelson tratava de futebol ao afirmar que “por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol” e que “o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia”. Mas ao mesmo tempo não era só sobre o futebol que o Nelson deitava seu olhar crítico. Tanto que a expressão “complexo de vira-latas” se consolidou e o vira-latismo encontrou seu nome de batismo. Ah, e os vira-latas brasileiros ganharam sua primeira copa.
            Sabemos todos, é claro, que, apesar de batizado apenas em 1958, o vira-latismo tem origens mais remotas. Desde o descobrimento, o Brasil tem inúmeros expoentes do movimento, que, embora tenham enriquecido às custas da colônia, não pouparam críticas ao povo, à terra e aos costumes não só dos índios, como também dos brasileiros “civilizados” que vieram após a colonização. Nem falo de portugueses como Carlota Joaquina, que, ao voltar para Portugal em 1821, bateu as sandálias contra um canhão do navio em que viajava para tirar os últimos grãos de pó brasileiro dos pés, dizendo: “Afinal, vou para terra de gente”. A questão são os próprios brasileiros que, desde o início da nossa história, olham para si mesmos com um inexplicável desprezo. O Brasil foi marcado pelo complexo de vira-latas desde seu nascimento, ainda que esse sentimento só tenha sido batizado bem mais tarde.
            Ok, podemos até admitir que nossos primórdios não foram lá essas coisas e que a esculhambação marcou o início do Brasil. Mas parece que a auto-rejeição ficou entranhada no inconsciente de muita gente. E hoje, meu caro vira-latista, já não temos o menor motivo para manter essa autoimagem distorcida.
            É claro que nós temos os nossos problemas, e fechar os olhos para eles, adotando um ufanismo acrítico similar ao que os militares nos tentaram empurrar durante a ditadura, é uma péssima ideia. Somos campeões na desigualdade, nossa carga tributária é altíssima e não vemos retorno algum, continuamos a patinar em áreas essenciais como saúde, educação e segurança, temos níveis de corrupção patológicos e uma estrutura burocrática mastodôntica. Tudo isso – e muito mais – é verdade. Mas ainda assim, amigo vira-latista, estamos vivendo o mais longo período democrático de nossa história, o Brasil cresceu muitíssimo em setores cruciais na última década e meia, nossas instituições vêm se consolidando de maneira até então inédita entre nós, já não somos mais devedores do FMI, melhoramos nosso IDH, temos uma moeda estável e saímos quase ilesos de uma crise que tem devastado os EUA e a Europa. Ah, e nos tornamos a sétima economia do mundo. Não é pouca coisa, convenhamos...
            Ainda assim, os vira-latistas preferem olhar para a metade vazia do copo. Mais do que isso, enxergam nos EUA e na Europa o substrato da perfeição. Para o vira-latismo, não importa que o sistema eleitoral americano seja esdrúxulo, que o metrô de Nova Iorque seja uma porcaria (“ah, mas eles têm muito mais linhas e estações do que o de São Paulo”, gritam os vira-latistas), que o sistema financeiro tenha falhas estruturais aberrantes e que os bancos façam o que lhes der na telha. Não importa que, até o ano passado, os EUA não tivessem um serviço público de saúde. Não importa a pobreza endêmica que assola algumas regiões americanas após 2008 (“você está louco? Não há pobreza nos EUA!”, bradarão extremistas do vira-latismo). Não importa que a União Europeia esteja caindo aos pedaços (“ah, mas a Alemanha...”). Não importa nem mesmo que os EUA e os países europeus olhem para o Brasil de hoje com admiração e respeito. Para o vira-latismo, são apenas detalhes, porque o norte-americano e o europeu são pessoas essencialmente melhores do que o brasileiro.
            E aí chegamos ao ponto do vira-latismo que me causa maior perplexidade, meu caro amigo vira-latista, e que eu gostaria que alguém me explicasse. É essa ideia – que me soa esquisita – de que o brasileiro tem algo em seu DNA ou em sua cultura que o torna preguiçoso, indolente, vagabundo, malandro e safado por definição. O problema é que, embora eu conheça muitos brasileiros assim, também conheço muitos brasileiros empreendedores, esforçados, inteligentes, estudiosos e determinados. Também conheço muito estrangeiro vagabundo e malandro.
Então, esse discurso de que “brasileiro é tudo [preencha com seu adjetivo depreciativo predileto]”, que me parece estar na espinha dorsal do vira-latismo, e que sintetiza toda uma história de auto-rejeição (afinal, são brasileiros afirmando que “brasileiro é tudo...”) soa um pouco esquisito. Primeiro, porque os brasileiros com quem convivo não são necessariamente deste ou daquele jeito. Segundo, porque aceitar essa ideia significa aceitar que nossa cultura e/ou nosso DNA nos tornam naturalmente menos propensos ao trabalho e à seriedade. Só que nossa cultura e nosso DNA não surgiram do nada, são o resultado de muitas culturas e DNA’s – americanos, europeus, africanos, indígenas etc. Se o vira-latismo não atribui a esses outros povos as falhas que atribui aos brasileiros, como é que a mistura de tantas qualidades poderia gerar uma criatura feita só de defeitos?
É por isso, prezado vira-latista, que sua teoria não me convence. O Brasil só faz crescer, e a expectativa para as próximas duas décadas é a melhor possível. A ciência ainda não demonstrou que os brasileiros têm alguma característica genética e/ou cultural que os distinga dos outros povos em relação à disposição para o trabalho e à capacidade de se educar. Para o bem e para o mal, não somos melhores nem piores do que os outros – e, principalmente, os outros não são melhores nem piores do que nós.
É também por isso que não entendo como o vira-latismo continua a ganhar adeptos a cada dia. Talvez você consiga me explicar, amigo vira-latista. Agora, caso não consiga, fica aqui uma sugestão: se você não encontrar uma boa razão que justifique o vira-latismo, por que não abandona o clube? Se todos se livrarem dessa síndrome de vira-latas que assola o país, talvez consigamos encarar os muitos problemas que ainda desafiam o Brasil com mais objetividade e, quem sabe assim, com mais chances de encontrar algumas soluções. 
Do contrário, teremos de concluir que, se "brasileiro é tudo" etc. etc., então não há solução possível, pois somos geneticamente (ou culturalmente) destinados ao fracasso. Ficaremos mesmo como uns vira-latas, roendo uns ossinhos magrelos e achando que é só isso o que merecemos. Afinal, se até você, prezado vira-latista brasileiro, achar que o Brasil e os brasileiros não merecem ser levados a sério, por que alguém levaria você a sério?
Pense nisso.



sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O passado é uma roupa que não nos serve mais




"Olhem! Um comunista!"

 
           No dia 13 de novembro foram publicados no Diário Oficial da União o estatuto e o programa de um novo partido político, idealizado por um grupo de jovens liderado pela estudante de direito da universidade da Serra do Rio Grande do Sul, Cibele Bumbel Baginski, de 23 anos.
            Seria uma excelente notícia, a mostrar que a juventude vem se envolvendo com as questões políticas do país, não fosse um detalhe: o partido político que esse grupo de jovens pretende criar será chamado de Aliança Renovadora Nacional, ou simplesmente ARENA.
            Não se trata, portanto, a rigor, de um novo partido político, e sim da ressurreição do partido criado em 1965 para dar apoio à ditadura militar instaurada no Brasil por um golpe de Estado no ano anterior. Tanto é assim que a imprensa e os próprios idealizadores do partido o chamam de “nova ARENA”.
            E para que não reste qualquer dúvida a respeito da ligação entre a antiga ARENA e a nova, os parágrafos 2º e 3º do artigo 1º do estatuto publicado na imprensa oficial (que pode ser lido aqui) estabelecem o seguinte:

§ 2º A ARENA possui como ideologia o conservadorismo, nacionalismo e tecno-progressismo, tendo para todos os efeitos a posição de direita no espectro político; devendo as correntes e tendências ideológicas ser aprovadas pelo Conselho Ideológico (CI), visando a coerência com as diretrizes partidárias.

§ 3º A ARENA, em respeito às convicções ideológicas de Direita, não coligará com partidos que declaram em seu programa e estatuto a defesa do comunismo, bem como vertentes marxistas. O Conselho Ideológico emitirá Normativa especificando demais partidos com convicções ou ações não compatíveis com a ARENA, com os quais será proibida a coligação dado o contexto político e regional.

            O artigo 2º, que trata dos objetivos do partido, elenca, em seu inciso IV, a luta contra a “comunização da sociedade e dos meios de produção além de outras práticas insidiosas ao pleno desenvolvimento e qualidade da sociedade brasileira”. Segundo reportagem da Folha de São Paulo de 14.11.2012, o partido “defende a ‘abolição de quaisquer sistemas de cotas raciais, de gênero ou condições especiais’, a maioridade penal aos 16 anos e o retorno ao currículo escolar da Educação Moral e Cívica”. Ainda de acordo com a reportagem, “Baginski disse que o partido já conversa com políticos com mandato, mas não quis dar nomes. Disse apenas que entre as pessoas ‘muito respeitadas’ estão os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Romário (PSB-RJ)” (leia a reportagem na íntegra aqui).
            Tudo bem que parcela da juventude adote os valores do conservadorismo e se mobilize para defender suas ideias, sejam elas quais forem. Mas nessa situação específica duas questões fundamentais saltam aos olhos e preocupam: a necessária vinculação a um ícone do passado que remete diretamente ao período menos democrático da história brasileira e o anacronismo das ideias.
            A história da ARENA, que durou de 1965 (quando foi criada pelo AI-2, embora o partido só tenha sido fundado no ano seguinte) a 1979, quando o pluripartidarismo foi restaurado no Brasil, é a narrativa de uma batalha feroz contra a democracia. O partido do governo, assim como a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969, nada mais eram do que aparatos do cenário de uma farsa que pretendia convencer o público (o povo brasileiro) de que o Brasil vivia sob um manto de legalidade – o que, todos sabiam, era uma mentira deslavada, até porque a “legalidade” era alterada ao sabor dos humores dos militares. É lamentável que a juventude de hoje, a fim de propagar seja lá que ideia (conservadora ou não), busque se valer de um símbolo tão sombrio da história brasileira.
            Quanto à atualidade das propostas do novo partido, pareceriam piadas se seus idealizadores não as levassem tão a sério. No Brasil atual, pretender lutar contra a “comunização da sociedade e dos meios de produção” é, literalmente, caçar fantasmas. Só nos resta desejar aos futuros membros da nova ARENA boa sorte na luta contra os comunistas que estão “comunizando” o Brasil – se eles conseguirem encontrar algum.
            Em relação à inconsistência das ideias em si, nem vale a pena se estender, porque nisso os idealizadores da nova ARENA não são diferentes de boa parte da classe política brasileira, a começar pelo próprio Jair Bolsonaro. Basta lembrar que a presidente do partido que defende a “abolição de quaisquer sistemas de cotas raciais, de gênero ou condições 'especiais’” (item 2.2 do programa do partido) é bolsista do Prouni (e não vê qualquer incoerência nisso), ou que o “Conselho Ideológico” previsto no estatuto como “órgão máximo na ARENA” (art. 14), desenhado quase à moda socialista (êpa!), não combina muito bem com o propalado objetivo de “enfatizar a individualidade em vez da uniformidade”  (art. 2º, III). E, lendo o programa nacional do partido, confesso que não entendi como "defender o Estado Necessário" (4.1) pode ser compatível com "retomar o controle de todas as empresas estatais que são fundamentais à proteção da nação" (4.2)....
            Em suma, ignorâncias, inconsistências e anacronismos à parte, concluo que os jovens idealizadores da nova ARENA – que, agora, precisará reunir cerca de 500.000 assinaturas para poder se registrar junto ao TSE – tentarão caminhar para frente olhando para trás. 
       Resgatando um passado vergonhoso (o item 7.2 do programa nacional fala em "reorganização e reaparelhamento das forças de segurança pública"...) para lutar quixotescamente contra um moinho de vento que já parou de rodar há décadas, a nova ARENA, se conseguir as assinaturas necessárias para sair do papel, provavelmente se tornará mais uma das muitas piadas sem graça no anedotário político brasileiro, e sua relevância política na condução dos rumos do Brasil será a mesma de um Jair Bolsonaro – nenhuma.
            Elis Regina cantava nos anos 70 que "o passado é uma roupa que não nos serve mais". Vivemos em uma democracia (certamente, não graças à ARENA) e cada um segue o caminho que quiser. Mas quem caminha de costas tem muito mais chance de tropeçar e cair.




segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Intolerância disfarçada



Quem quer defender a intolerância precisa ter a coragem
de se assumir intolerante.
         
            Na edição de 02.07.2011 da revista Época, o deputado Jair Bolsonaro respondeu a perguntas enviadas pelos leitores. Um leitor fez a seguinte pergunta: “Se o PL 122/06 fosse aprovado, intimidaria os assassinos de homossexuais. Qual seria a ação que o Legislativo deveria tomar para garantir os direitos da população LGBT?”
            O deputado deu a seguinte resposta: “A maioria dos homossexuais é assassinada por seus respectivos cafetões, em áreas de prostituição e de consumo de drogas, inclusive em horários em que o cidadão de bem já está dormindo.”
            Compare agora esse tipo de raciocínio aos argumentos presentes no artigo Parada gay, cabra e espinafre, de J. R. Guzzo, publicado na última edição da revista VEJA:
            “O primeiro problema sério quando se fala em ‘comunidade gay’ é que a ‘comunidade gay’ não existe – e também não existem, em consequência, o ‘movimento gay’ ou suas lideranças. Como o restante da humanidade, os homossexuais, antes de qualquer outra coisa, são indivíduos. Têm opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições opostas em política, religião ou questões éticas. Votam em candidatos que se opõem. Podem ser a favor ou contra a pena de morte, as pesquisas com células-tronco ou a legalização do suicídio assistido. Aprovam ou desaprovam greves, o voto obrigatório ou o novo Código Florestal – e por aí vai. Então por que, sendo tão distintos entre si próprios, deveriam ser tratados como um bloco só?”
            “Outra tentativa de considerar os gays como um grupo de pessoas especiais é a postura de seus porta-vozes quanto ao problema da violência. Imaginam-se mais vitimados pelo crime do que o resto da população; já se ouviu falar em ‘holocausto’ para descrever a sua situação. Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50 000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays: é a violência contra todos.”
“Não há proveito algum para os homossexuais, igualmente, na facilidade cada vez maior com que se utiliza a palavra ‘homofobia’; em vez de significar apenas a raiva maligna diante do homossexualismo, como deveria, passou a designar com freqüência tudo o que não agrade a entidades ou militantes da ‘causa gay’.”
            “Qualquer artigo na imprensa que critique o homossexualismo é considerado ‘homofóbico’; insiste-se que sua publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois ‘pregar o ódio é crime’. Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for. Na verdade, não obriga ninguém a gostar de ninguém; apenas exigem que todos respeitem os direitos de todos.”
            “Há mais prejuízos do que lucro, também, nas campanhas contra preconceitos imaginários e por direitos duvidosos. (...) O mesmo acontece em relação ao casamento, um direito que tem limites muito claros. O primeiro deles é que o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa. Pessoas do mesmo sexo podem viver livremente como casais, pelo tempo e nas condições que quiserem. Podem apresentar-se na sociedade como casados, celebrar bodas em público e manter uma vida matrimonial. Mas a sua ligação não é um casamento – não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco. Há outros limites, bem óbvios. Um homem não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar. (...) Argumenta-se que o casamento gay serviria para garantir direitos de herança – mas não parece claro como poderiam ser criadas garantias que já existem.”
            E por aí vai.
            Para quem não tem opinião formada sobre essas questões, os argumentos de J. R. Guzzo podem parecer bem mais razoáveis do que a verve caricatural de Jair Bolsonaro – até porque a proposta do artigo  é “ajudar” os homossexuais a não perder de foco o que é importante, tanto que o texto é encerrado com a seguinte conclusão: “Perder o essencial de vista, e iludir-se com o secundário, raramente é uma boa ideia”. O artigo, portanto, parece ser bem mais racional, ponderado e tolerante do que as manifestações histriônicas de Jair Bolsonaro. Mas não é.
            Quero deixar claro, desde logo, que eu não tenho nada contra os defensores de uma linha de pensamento mais conservadora, a despeito da minha discordância. O Brasil é um país democrático, onde cada um pensa o que quiser. Cada um defende as ideias e valores que considera importantes. O problema de manifestações como a de J. R. Guzzo é a profunda desonestidade intelectual que existe em seus argumentos.
            Jair Bolsonaro pode ser um extremista, mas é indiscutivelmente honesto na forma como expõe suas ideias e propostas – e por isso, apesar de grande rejeição de boa parte da sociedade, ele foi democraticamente eleito. O eleitor de Jair Bolsonaro pensa como ele e se identifica com seu modo de ver o mundo. Jair Bolsonaro só prega para convertidos: dificilmente quem tem dúvidas em relação a questões polêmicas como aborto, cotas, volta da ditadura e racismo será convencido por seus argumentos.
            Por outro lado, o discurso falsamente democrático, conservador “light”, do qual o artigo de J. R. Guzzo é um exemplo perfeito, ostenta uma pretensa racionalidade, uma dissimulada parcimônia que pode enganar muita gente que ainda não se decidiu definitivamente por uma ou outra posição.
            Não há problema algum no embate de ideias contrapostas. Que elas sejam apresentadas às pessoas e que cada um opte pela linha de pensamento que achar mais correta. Mas numa sociedade que reflete pouco sobre as informações que recebe, é fundamental que os argumentos sejam honestos. Do contrário, as pessoas estarão simplesmente sendo enganadas.
            Peguemos, como exemplo, os argumentos que transcrevi acima:
            1) Não existe “comunidade gay” porque os homossexuais “têm opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições opostas em política, religião ou questões éticas”. Mas isso ocorre em qualquer espécie de comunidade – toda comunidade é formada por indivíduos. Evangélicos, trabalhadores sindicalizados, integrantes de uma associação de amigos do bairro, sócios de um clube. Se o argumento de J. R. Guzzo é correto, então o conceito de comunidade simplesmente não existe.
            2) “Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50 000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays: é a violência contra todos.” A violência contra os gays não se resume a homicídios. Impossível que o articulista não saiba disso.
            3) Afirmar que qualquer artigo na imprensa que “critique o homossexualismo” é considerado homofóbico, mais do que uma mentira, é uma afirmação impossível de confirmar ou refutar, a não ser que o autor explique o que significa “criticar o homossexualismo”, o que J. R. Guzzo não faz. Além do mais, quem critica, e como é possível afirmar que qualquer artigo – logo, todos os artigos – é criticado? Já li muitos artigos na imprensa e na internet que criticam questões políticas ligadas ao homossexualismo, e os comentários dos leitores, quando não se dividem, muitas vezes apoiam o articulista. Afirmar que há uma generalização na crítica a esses artigos é fazer outra generalização e, maliciosamente, empregar em sentido contrário a própria lógica que se pretende criticar.
            4) Afirmar que “o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa”, desconsidera o fato de que no final de 2011 o STF já decidiu que uniões homoafetivas devem ser consideradas famílias – dando novo sentido a uma norma constitucional que dizia que apenas a união estável entre homem e mulher poderia ter esse reconhecimento. E o argumento de que o casal homossexual “não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco”, se aceito, nos forçaria a reconhecer que casais maduros ou idosos, que se conhecem e se casam após a chamada idade fértil, também não poderiam ser considerados famílias. E é impossível que J. R. Guzzo não saiba que um casamento atribui mais direito aos consortes do que a união estável, principalmente em questões de herança. Basta ler o Código Civil.
            Estas são conclusões a que chegamos com facilidade quando paramos para analisar criticamente esse tipo de argumento. Mas muita gente absorve o que lê sem maiores reservas, principalmente quando a linguagem aparenta ser ponderada, racional, “democrática”. É necessário olhar com mais atenção para enxergar o discurso de intolerância – e, em muitos casos, de verdadeira ilegalidade – que se esconde por trás dessa fachada de falsa civilidade.
            J. R. Guzzo é um jornalista experiente, e duvido que seja um idiota. Duvido, portanto, que não tenha percebido as grotescas falhas de seu raciocínio. Optar por ignorá-las implica atribuir a argumentos sabidamente fracos uma força que eles não têm, com o objetivo de convencer seus leitores de que são argumentos robustos. Em outras palavras, significa saber que os argumentos não são válidos, mas defendê-los mesmo assim. Mais do que simplesmente desonesto, isso é imoral, porque evidencia uma intenção consciente de enganar os leitores. Intenção que fica clara num olhar atento ao artigo, pois que parcimônia e racionalidade poderiam existir num texto que não se pretende preconceituoso, mas que compara uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo a uma relação entre um homem e uma cabra? (“Um homem não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”). O problema do intolerante é que, por mais que ele procure dar à intolerância um verniz de civilidade, às vezes o inconsciente nos trai...
            Repito, nada contra o pensamento mais conservador. Mas no debate de ideias é preciso manter a dignidade e a honestidade - que são, ou deveriam ser, o contraponto à liberdade de opinião. Quem quer defender a intolerância precisa assumir isso explicitamente e dar a cara a tapa. Agir de outro modo, como foi feito no artigo de VEJA, é praticar um estelionato intelectual.
            Num debate honesto, Jair Bolsonaro se sai melhor do J. R. Guzzo.

(Obs.: Gostaria muito de saber quem é o autor da ilustração do início do texto, para dar-lhe o devido crédito, mas não consegui descobrir. Se alguém souber, por favor me avise.)


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A história se repete, mas a força deixa a história mal contada



"Carcereiros", novo livro de Drauzio Varella.
O massacre do Carandiru na origem do PCC.


            No dia 02 de outubro de 1992 – há vinte anos – na Casa de Detenção conhecida em São Paulo como Carandiru, para usar uma expressão comum aos agentes penitenciários, “a cadeia virou”.
Não toda a cadeia, mas o pavilhão Nove, onde ficavam encarcerados os detentos primários. Ao lado do Nove ficava o Oito, com os reincidentes, criminosos mais experientes não só em relação à “vida bandida” mas também em relação à vida atrás das grades.
Os agentes penitenciários que cuidavam do pavilhão Oito, ao ver que a situação do Nove se agravava – os presos tomaram o pavilhão, expulsaram os agentes que nele trabalhavam (um erro que lhes custaria muito caro) e fizeram barricadas, impedindo a entrada de quem quer que fosse – decidiram tentar recolher os detentos do Oito, quase mil e oitocentos.
Não foi uma tarefa fácil. O Batalhão de Choque da PM de São Paulo – conhecido como “o Choque” – já estava no presídio. Presidiário também tem medo de morrer, e em situações como essas a primeira reação é desentocar as facas e se preparar para a guerra. Os agentes que cuidavam do Oito, no entanto, também eram experientes e conheciam bem o universo carcerário, e conseguiram, de forma quase miraculosa, convencer os detentos a voltar para suas celas, por meio de um acordo: os “faxinas”, também presidiários, ficariam com as chaves das celas, e poderiam soltar os demais se isso fosse necessário. Além disso, de hora em hora um funcionário passaria pelas celas informando os detentos sobre o que ocorria do lado de fora. Com os presos em suas celas e trancados, com o Oito completamente sob controle dos agentes, a polícia não teria motivo para invadir o pavilhão. E não invadiu.
Os detentos do Nove cometeram um erro que se mostrou fatal: não fizeram nenhum refém. Qualquer agente penitenciário com alguma experiência encerraria aquela rebelião em dois dias, sem que houvesse nenhuma (ou quase nenhuma) morte: bastava cortar a água e a eletricidade, e os detentos acabariam vencidos pelo cansaço. Estratégia óbvia e usada muitas vezes anteriormente.
Mas houve uma ordem – até hoje não se sabe bem de quem – para que o Choque invadisse o pavilhão Nove. O resultado não poderia ter sido outro: o massacre do Carandiru, a maior tragédia já registrada no sistema carcerário brasileiro, com (pelo menos) cento e onze mortos (há estudos que apontam números maiores, nunca confirmados anteriormente). Todos presidiários. Nenhum policial foi morto.
Essa história inaugura o novo livro do médico Drauzio Varella, “Carcereiros”, e foi contada ao próprio autor pelos agentes penitenciários que viveram aquele momento trágico. Contraponto a “Estação Carandiru”, “Carcereiros” apresenta a mesma realidade mostrada na obra anterior, agora sob a ótica de quem está do outro lado das grades, custodiando os detentos – pessoas que, de certo modo, encontram-se presas (literalmente) à mesma realidade daqueles de quem devem cuidar.
Não há por que duvidar dos fatos narrados pelos carcereiros ao médico – por mais que se leia e se estude a respeito, quem vive qualquer realidade concreta sabe mais sobre ela do que quem se debruça sobre livros e pesquisas. Drauzio Varella é um contador de histórias talentosíssimo, dono de uma prosa leve, informal e saborosa. Leitura mais do que recomendada.
Mas o que me importa nesse momento não é propriamente a obra em si, e sim a consequência que se extrai do massacre. Drauzio Varella afirma que o massacre levou os presos à conclusão de que era necessário se organizar, fundamentalmente para se proteger de eventos como aquele. Era o embrião do PCC, facção criminosa que “organizou” parte significativa do crime em São Paulo e que, hoje, vive uma guerra declarada com a polícia paulista.
É claro que não foi apenas o vácuo de poder deixado pelo massacre do Carandiru que levou ao surgimento do PCC. Há diversos outros fatores, dentre os quais o mais importante é a precariedade das condições carcerárias que, embora ainda subsista hoje, era muito pior há vinte anos. Dentre outros objetivos, o PCC buscava a melhoria das condições penitenciárias, uma bandeira que facilitou muito a arregimentação de membros para a organização criminosa.
Mas destaco essa não tão óbvia relação entre o massacre do Carandiru e o surgimento do PCC para mostrar que a guerra que vivemos hoje encontra um dos seus fundamentos justamente na tão propalada mentalidade de que violência se combate com mais violência (um raciocínio de uma ilogicidade gritante, mas que ganha mais adeptos a cada dia). Acuada, a sociedade bate palmas para a polícia que mata indiscriminadamente, à margem da lei – sem se dar conta do óbvio fato de que essa violência só acirrará a guerra, não a atenuando de modo algum.
Não há aqui qualquer crítica expressa aos policiais do Choque que atuaram no massacre, e sim à determinação que receberam (o que não implica qualquer apoio ao que fizeram. Aliás, o fato de que, passados vinte anos, nenhum policial foi julgado pelo ocorrido – seja para ser absolvido ou condenado – é uma excrescência jurídica incompreensível). No dia 15 de outubro, Drauzio Varella, entrevistado no programa “Roda Viva” por conta do lançamento do livro, disse o seguinte:

“Agora, você imagina: você põe um bando de soldados, que têm ódio de presos – com razão, eles vivem numa guerra particular contra os bandidos, na rua – dá uma metralhadora na mão de cada um e um cachorro, manda invadir um pavilhão que está pegando fogo, escuro, e você espera que vá acontecer o quê?”

O fato é que quem apoia o massacre, a chacina, o “mata mesmo!”, estimulando um impulso que já existe no policial (em razão da natureza da atividade que exerce) e que, somado ao medo da morte (policial, assim como presidiário, também tem medo de morrer), torna a tarefa de controlar esse impulso ainda mais difícil (e fica aqui o reconhecimento a todos os policiais que, a par dessas dificuldades, conseguem fazê-lo), não se dá conta de que está fomentando uma espiral de violência que só tende a piorar a situação.
Diversos estudos mostram que o policial que invoca para si o poder de vida e morte sobre os bandidos vai paulatinamente se afastando da legalidade, porque abandona um parâmetro objetivo de certo e errado e adota seu próprio parâmetro, subjetivo e cambiante ao sabor do tempo e das circunstâncias. Com o tempo, “legalidade” se torna uma palavra desprovida de conteúdo, e o policial descamba de vez para o mundo do crime – processo demonstrado com muita perspicácia na obra “O homem X”, de Bruno Paes Manso.
A parcela da sociedade que (re)age de acordo com o calor do momento não se dá conta dessas intrincadas relações de causa e efeito que envolvem a violência urbana. Se não fosse o massacre do Carandiru (tão aplaudido por alguns), talvez o PCC não tivesse a força que tem hoje. Talvez tantos policiais não tivessem morrido. Mas é preciso analisar os fatos com frieza para detectar essas relações. Se não entendemos o passado, repetimos os mesmos erros no futuro e, como dizia o velho rock dos anos 80, “a história se repete, mas a força deixa a história mal contada”.