sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Um blog lerdo ou o dia em que virei um PIG-Petralha



     Os leitores deste blog já perceberam que, nos últimos tempos, o ritmo de produção de textos deu uma boa diminuída. Felizmente (para mim), recebi algumas mensagens indagando o porquê desse (quase) silêncio e - surpresa, surpresa! - pedindo mais textos.
     Fico feliz, é claro. Sinal de que tem gente que efetivamente lê o que eu escrevo. E que merece uma explicação sobre a queda da produtividade cabideira.
     Fim de ano é um período insano para qualquer professor, e o volume de trabalho (não só acadêmico) dos últimos meses bagunçou minha agenda. Mas seria mentira afirmar que esta foi a única - ou a principal - razão para que este se tornasse - como um leitor chamou numa mensagem que recebi - um "blog lerdo".
     O principal motivo da lerdeza blogueira do Cabide é preguiça. Isso mesmo, preguiça.
     Não é preguiça de escrever, nem de debater. É preguiça de tentar debater o que quer que seja, numa época em que muita gente parece não distinguir debate de embate. Ou mesmo de combate.
     A dialética é sempre deliciosa, mesmo quando infrutífera, mesmo quando o confronto de ideias antagônicas não leva a nenhuma conclusão. A preguiça não vem da contraposição dessas ideias (sem a qual a dialética nem existiria). Mas nos últimos tempos - talvez, de forma mais evidente, neste último ano - a contraposição deu lugar a uma polarização extremada, ideológica e, em última análise, desprovida de conteúdo.
     Talvez isso tenha ocorrido por conta do julgamento do Mensalão. Talvez não, e o Mensalão só tenha evidenciado o que já existia. Mas esse julgamento é emblemático e mostra a que ponto a troca de ideias chegou - ou desceu.
     Foi um julgamento com muitos erros, não só processuais, como de postura por parte dos ministros. Ainda assim, e com todas as (merecidas) críticas que se possam fazer à decisão final, não deixa de ser positivo reconhecer que, ao contrário do que ocorria na era FHC, o STF firmou posição quanto à sua independência em face do Legislativo e do Executivo federais. Mais do que isso, políticos de relevância nacional se viram frente a uma situação inédita no país: a de arcar com as consequências de suas escolhas. E todo o processo transcorreu sem abalos significativos na estabilidade das instituições públicas.
     A rigor, a decisão conseguiu a proeza de não agradar totalmente a ninguém. A ala conservadora da sociedade, embora tenha festejado as condenações, criticou desde o tempo que o processo levou até a brandura das penas. Mais de uma vez ouvi e li expressões da linha "tranca essa corja e joga a chave fora", e coisa muito pior (algumas pessoas não se constrangem em pedir o - literal - linchamento dos "petralhas mensaleiros". Experimentei perguntar a algumas dessas pessoas se elas sabiam o que, exatamente, os tais petralhas tinham feito. As respostas demonstraram uma ignorância inacreditável, sintetizada muitas vezes num patético "roubou"). Em muitas ocasiões tentei argumentar que a prisão dos condenados não traria nenhum bem para a sociedade. Fui imediatamente rotulado de defensor dos corruptos, de "petralha honorário", por assim dizer.
     No sentido oposto, quando afirmei que José Dirceu e José Genoíno - dentre outros - não eram presos políticos, e sim políticos presos (como falar em "presos políticos" cujo partido a que estão filiados controla o governo federal há 10 anos?), ou quando observei que "julgamento de exceção" não era uma expressão adequada para o Mensalão (há uma diferença abismal entre o STF e Nuremberg), fui imediatamente classificado como "reaça" e "PIG honorário".
     Sim, eu consegui essa proeza: sou reaça, sou PIG e sou petralha. Curiosamente, essas classificações, vindas de direções opostas, se basearam num único e mesmo ponto de vista (o meu).
     Paralelamente, os artigos de jornais e revistas, os programas de televisão e da internet, os livros lançados recentemente, enfim, todos os meios possíveis de divulgação de ideias, parecem ter sofrido um achatamento intelectual - não apenas no sentido de se nivelarem por baixo (o que ocorreu), mas também no sentido de ficarem chatos. Críticas do nível de Reinaldo Azevedo ou Lobão são tão intelectualmente rasteiras (e monótonas) quanto a santificação de Dirceu e Genoíno - como se um passado louvável de luta e dignidade conferisse carta branca para a desonestidade no presente. Num artigo recente, li que "Lula fez o que tinha de fazer para tirar milhões da miséria", logo, tudo estaria automaticamente justificado. Como se questões éticas (para não mencionar as legais) pudessem ser solucionadas de forma tão simplória. Recentemente, circulou nas redes sociais um texto acusando Lobão de ter causado o suicídio de seus pais. Lobão merece inúmeras críticas, mas explorar de forma tão baixa uma tragédia pessoal para atacar as ideias de quem quer que seja, por mais equivocadas que sejam, é de uma torpeza indescritível.
     Então, diante do excesso de trabalho, da despencada do nível do debate e da aparentemente infindável sede de sangue das duas torcidas organizadas (progressistas x reacionários), comecei a ficar com preguiça de discutir certos assuntos. Numa fórmula simples:
     
    


      Mas, como toda preguiça, daqui a pouco essa também passa.
     Qualquer hora dessas, o blog deixa de ser lerdo e volta ao ritmo de antigamente.

domingo, 3 de novembro de 2013

Procure saber - e entender


"Você morre como um herói, ou vive o suficiente
para se ver transformado em vilão."

     Seriam risíveis - se não dissessem respeito a tema tão caro a uma democracia - as tentativas dos integrantes do grupo Procure Saber (notadamente Gil, Caetano, Erasmo, Roberto Carlos e Paula Lavigne) de justificar o injustificável, de explicar a postura retrógrada inicialmente adotada (e agora envergonhadamente rejeitada, ainda que não de forma explícita).
     Seria cômico ver os malabarismos argumentativos, as piruetas retóricas e os bamboleios dialéticos dos artistas da Procure Saber para justificar sua indefensável defesa dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que tornam obrigatória a autorização do biografado e/ou de sua família para a publicação de qualquer biografia no Brasil, se não fossem tão relevantes os aspectos da liberdade de expressão ameaçados por esses dois bisonhos dispositivos legais.
     Não que se esperasse postura diferente de Roberto Carlos, conhecidíssimo control freak, que não suporta que falem - bem ou mal - de sua pessoa, embora seja uma pessoa muito pública. De Erasmo, não sei se se espera algo. Paula Lavigne é um tanque de guerra, dela tudo se espera. E como ninguém entende o que Djavan diz em suas letras, só o fato de entendermos de que lado ele está na briga já pode ser considerado um avanço.
     Mas a posição de Caetano, Gil e Chico - notórios defensores da liberdade de expressão, até por terem sofrido as agruras da censura prévia durante a ditadura - surpreendeu a todos. Ninguém, em sã consciência, poderia imaginar que nossos libertários tropicalistas abandonariam o "é proibido proibir", ou que Chico daria ao seu "Cálice" um novo e tenebroso sentido.
     Cazuza viu seus heróis morrerem de overdose. Não demos a mesma sorte. Como diz a personagem de Aaron Eckhart em The Dark Knight, "you either die like a hero, or you live long enough to see yourself become a vilain". Pois é, Chico, Gil e Caetano (felizmente) ainda não morreram, e continuam produzindo música de qualidade (embora o auge de todos já esteja no passado), mas mancharam - a meu ver de forma indelével - suas histórias de vida com a defesa inaceitável da censura prévia para a publicação de biografias.
     Eles negam, é claro. As últimas colunas semanais de Caetano no Globo são um primor de, hum, "caetaneamentos". Caetano anda caetaneando o que há de bom mais do que nunca. Parece querer competir com Djavan no obscurantismo.
     No artigo Cordial, Caê escreve: "Censor, eu? Nem morta!". Li e reli o artigo e até hoje não entendi o que ele quis dizer. Caê começa o artigo afirmando que sua tendência é contra a exigência de autorização prévia, para depois descambar num quiproquó retórico em que conclui que "sou sim a favor de podermos ter biografias não autorizadas de Sarney ou Roberto Marinho. Mas as delicadezas do sofrimento de Gloria Perez e o perigo da proliferação de escândalos são tópicos sobre os quais o leitor deve refletir."
    Entenderam? Então me expliquem. Biografia de político e empresário pode, mas de artista não?
     Chico Buarque fez um papelão ainda maior. No artigo Penso eu, disse que o autor da biografia proibida de RC, Paulo César de Araújo, nunca o tinha entrevistado. Paulo César o desmentiu publicamente, publicando inclusive foto e vídeo da entrevista que Chico negou ter dado. Chico, o mais radical do grupo depois de RC, pediu desculpas publicamente. Vexame total.
    A imprensa em geral, com a superficialidade que lhe é inerente, caiu de pau nos artistas, defendendo com unhas e dentes a liberdade de expressão e fingindo que o direito à privacidade, também constitucionalmente garantido, não existe. Paulo César de Araújo tem posado em jornais, revistas e programas de TV como mártir. Nada é tão simples, nem para um lado, nem para o outro.
     Mas, a par do debate rasteiro que temos acompanhado, a defesa da necessidade de autorização prévia de biografados e/ou seus parentes me parece insustentável. 
     Biografia é um gênero literário, dos mais pobres no Brasil, não só por causa da já natural indigência do mercado editorial brasileiro, como também por conta dos entraves que a legislação atual impõe aos biógrafos. Biografia autorizada é elogio. Não é literatura, é marketing. Simples assim, o resto é conversa fiada. Eventuais mentiras e abusos devem ser reprimidos a posteriori. Não é uma ferramenta perfeita, mas é a única viável.
     O grupo Procure Saber, diante da inevitável repercussão negativa de sua postura, publicou no Youtube um constrangedor vídeo no qual Gil, RC e um Erasmo aparentemente meio bêbado tentam sustentar o insustentável. O Tremendão bateu todos os recordes de hipocrisia ao afirmar que "se nos sentirmos ultrajados, temos o dever de buscar nossos direitos, sem censura prévia, sem a necessidade de que se autorize por escrito quem quer falar de quem quer que seja". RC, que processou civil e criminalmente o autor de sua biografia, diz no vídeo que prega a liberdade e o direito às ideias. Discurso que não condiz com as atitudes do grupo. E, só para lembrar, RC agora tenta proibir a publicação de um livro sobre a jovem guarda porque - é claro! - fala de sua vida e obra. Mas é possível escrever um livro sobre a jovem guarda sem mencionar RC? É possível escrever sobre a tropicália sem mencionar Caetano e Gil? Então, um trabalho sobre a história da MPB fica condicionado à autorização de seus protagonistas?
     As reiteradas pancadas que a mídia vem dando no grupo levaram a um racha, e hoje, no artigo Código, no Globo, Caê resolveu descer a lenha em RC. Natural. Quando se sustenta o insustentável, as bases argumentativas tendem a ruir.
     Conto os dias para que o STF julgue inconstitucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil - o que me parece inevitável. E, ao contrário do que se tem afirmado, acho pouco provável que essa mancha na biografia dos (ex?) libertários membros do Procure Saber desapareça com o tempo. Nossos ídolos ainda são os mesmos, e as aparências não enganam não?
     Procurei saber, procurei entender. Mas a postura do Procure Saber, apesar do inegável direito à privacidade que todos, até as figuras públicas, têm, é incompreensível e inaceitável. É censura prévia sim, doure-se a pílula o quanto quiser. E é a sentença de morte de todo um gênero literário.
     Para além do debate raso, não é preciso muito esforço para que se conclua que o Procure Saber, ao defender a manutenção dos artigos 20 e 21 do Código Civil, dá um tiro no próprio pé. O que, aliás, ao que tudo indica, seus integrantes já notaram.
     É bom lembrar que, embora o Código Civil tenha entrado em vigor em 2002 (substituindo o de 1916), seu anteprojeto começou a ser redigido nos anos 70. É claro o ranço autoritário dos artigos 20 e 21, cuja constitucionalidade se debate no STF. A maioria dos ministros já sinalizou que, provavelmente, esses artigos serão declarados inconstitucionais. É esperar para ver. Até lá, seguimos todos (esperamos que a turma do Procure Saber também) refletindo a respeito. Enquanto isso, nossos artistas - que, recentemente, ganharam o apoio de ninguém menos do que Jair Bolsonaro (o que já deveria fazer com que desconfiassem de seus argumentos) - continuam se enrolando em suas próprias contradições como gato em novelo de lã.
     Você não sente nem vê
     Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
     Que uma nova mudança em breve vai acontecer
     E o que há algum tempo era novo, jovem
    Hoje é antigo, e precisamos todos, rejuvenescer.
     Aguardemos os próximos capítulos.




sábado, 12 de outubro de 2013

Filha, mãe, avó e puta

  
"Filha, mãe, avó e puta" - um livro essencial.


   Gabriela Leite mal partiu e já deixa saudade - de sua coerência, de sua ousadia, de sua coragem.
     Gabriela foi embora em 10 de outubro de 2013 - anteontem - e nos deixou, como herança, uma trajetória capaz de horrorizar os moralistas e de nos fazer repensar concepções tradicionais sobre o que uma mulher pode e deve fazer com seu próprio corpo e com sua liberdade.
     Filha de família tradicional e de pais moralistas, aos 22 anos, enquanto estudava sociologia e filosofia na USP (foi a segunda colocada no vestibular), Gabriela Leite decidiu virar prostituta.  Abandonou a faculdade em 1973 e trabalhou na Boca do Lixo, em São Paulo, na Zona Bohemia de Belo Horizonte e na Vila Mimosa, no Rio de Janeiro. Em 1979, Gabriela participou da primeira Revolta das Prostitutas, e conseguiu afastar um delegado que torturava e matava profissionais do sexo. No final dos anos 80, publicou o primeiro manual de prevenção às DST's voltado para as prostitutas. Posteriormente, fundou a ONG Davida, que defende os direitos das prostitutas, e em 2005 fundou a grife Daspu (uma provocação à grife "chic" Daslu).
     Gabriela lançou, em 2009, um livro fantástico: "Filha, mãe, avó e puta", em que conta sua história, da qual destaco o seguinte trecho:

     "Adoro os homens. Gosto de estar com eles, e não conheço homem feio. Todos são bonitos: cada um com seu cheiro característico, seu andar, seu modo de olhar. Alimentam um amor imenso pela mãe e pelo próprio corpo. Magros ou gordos, todos têm um belo corpo, mesmo quando são barrigudinhos. Às vezes me pergunto como eles fazem para andar: será que o pau no meio das pernas não atrapalha? Essa pergunta eu (ainda) não tive coragem de fazer.
     Outra coisa que adoro é falar o que penso. Sem papas na língua. Quem ler este livro vai perceber isso. Aprendi uma porção de coisas nessa temporada na Terra. Uma delas é a importância de se ter uma opinião, de reclamar quando não se está gostando de algo. Demorei muito para adquirir esse direito e, por isso mesmo, não abro mão dele. Passei um pedaço da minha vida lutando por ele. Estou gastando um outro bom naco tentando convencer minhas colegas prostitutas de que esse direito também é delas.
     Existe uma terceira coisa que eu prezo muito. Talvez seja a que mais prezo, aliás. É a liberdade. Liberdade de pensar diferente, de vestir diferente, de se comportar diferente... Não sei direito de onde veio essa minha paixão pela liberdade (minha vida é feita de muitas certezas, mas também de infinitas dúvidas e contradições), mas ela veio para ficar.
     Meu destino até aqui foi norteado por esses três amores. E, como todos nós sabemos, o amor não traz só felicidade. Ele gera muita dor também, em nós mesmos e em quem está perto. sei que, por causa dessa minha obsessão por romper amarras (sejam elas políticas, culturais, morais ou pedagógicas), feri algumas pessoas queridas. Mas acredito que também ajudei um sem-número de prostitutas a ter uma vida mais digna. Fui, sou e vou continuar sendo responsável pelos meus atos. O que pensar sobre eles é resultado do conceito de vida de cada um. Enquanto eu puder continuar exercendo minha liberdade, não tenho com o que me preocupar."

     Gabriela fez do próprio ato da prostituição um exercício de liberdade - tanto física quanto intelectual. E rejeitou o processo de vitimização que setores "bem-intencionados" da sociedade impingem às prostitutas. Vale lembrar as palavras de Gabriela no programa Roda Viva em 01.06.2009 (apenas para lembrar, em 02 de junho se comemora o Dia Internacional da Prostituta, como recordação do fato ocorrido em 02 de junho de 1975, em Lyon, quando mais de 100 prostitutas ocuparam a Igreja de Saint-Nizier para protestar por seus direitos):

     "Eu acho que a princípio é muito boba essa história de querer salvar pessoas, né? É de uma pretensão imensa. E salvar o quê? As pessoas fazem suas opções, às vezes as opções são menores, às vezes são um pouquinho maiores, mas as pessoas fazem. E elas vão para os seus lugares porque elas estão optando por isso. E se ela quiser sair, eu acho que ela, como mulher, sai por si mesma. Ela começa a pensar: 'não quero, não me dou bem nessa história, vou fazer outra coisa'. Como todas as pessoas. Então isso sempre  me incomodou porque nunca quis que ninguém me salvasse, eu sempre tomei as minhas decisões. E quando o pessoal da igreja dizia: 'não, você precisa ter uma outra vida, se encontrar com Deus', eu dizia: 'Não, eu quero ter minha vida do jeito que é'. Por isso que eu acho que não é por aí que a gente deve ver a questão da prostituição. A questão da prostituição deve estar inserida dentro das questões da sexualidade, das políticas da sexualidade, dos direitos sexuais, porque as feministas sempre disseram que estavam trabalhando os direitos sexuais e reprodutivos. Se você ler todos os relatórios das várias conferências internacionais, no Cairo, em Pequim, essa coisa toda, lá só tem os direitos reprodutivos. Os direitos sexuais estão ali juntos, para irem juntos na caixinha. Ninguém nunca mexeu com os direitos sexuais. E a  prostituição, na minha opinião, é um direito sexual. E, de mais a mais, as pessoas se esquecem de que as prostitutas estão lá no seu trabalho trabalhando porque tem alguém que vai lá procurar elas. Então existe essa demanda, existe na sociedade. E para mim a  grande história é sair debaixo do tapete, se mostrar e dizer: 'Olha, eu sou uma delas e estou aqui, sou uma mulher inteirona, como qualquer outra mulher" (trechos da entrevista podem ser vistos aqui; a entrevista completa está transcrita aqui).
     Gabriela afirma, contundente e certeira, a certa altura do livro:

     "É uma babaquice dizer que só puta vende o corpo! E vender sua cabeça, quanto custa? O operário vender seu braço, quanto custa? Todo mundo vende sua força de trabalho, que está com seu corpo. Existe uma tendência de alguns estudiosos de se declararem a favor das prostitutas e contra a prostituição. Um contra-senso geral e total."

     A grife Daslu, da empresária Eliana Tranchesi, a maior expoente do mercado de luxo num país desigual como o Brasil, quis processar a Daspu. O processo não seguiu adiante. Eliana Tranchesi, investigada pela Polícia Federal por sonegação fiscal, tinha o hábito de ir à missa todos os domingos e mantinha uma capela no interior da Daslu. Morreu de câncer, como Gabriela Leite. O legado que cada uma dessas mulheres deixou para o Brasil é evidente, dispensa maiores comentários e fica sujeito à avaliação de cada um.
     Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei apresentado pelo deputado Jean Willis, chamado "projeto Gabriela Leite", que visa regulamentar a prostituição no país. 
     A coragem e a coerência de Gabriela Leite, numa sociedade hipócrita e moralista como a brasileira, farão falta. Permanecem não apenas seu exemplo e as medidas adotadas para regularizar a profissão (a mais antiga do mundo, segundo dizem) e combater a AIDS, como também as reflexões suscitadas por suas escolhas. 
     Gabriela parte, mas sua obra, suas escolhas e, acima de tudo, sua luta sobrevivem.
     Filha, mãe, avó, socióloga e puta - e exemplo de ser humano.

Descanse em paz, Gabriela Leite.
E que sua luta continue.



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Black bruacas, desinformação e catarse


O caso mais emblemático de auto-bullying da história brasileira

   Ando com uma preguiça medonha de debater certos assuntos, porque parece que a irracionalidade tomou conta das pessoas. Mas percebi que a quase totalidade dos textos do blog tem a ver justamente com a falta de racionalidade do mundo, então resolvi escrever sobre o que todo mundo já escreveu: o STF, os embargos infringentes, o Mensalão, o Zé Dirceu, a impunidade etc. etc. etc.
     Mas não vou repetir as obviedades que qualquer pessoa minimamente informada deveria estar cansada de saber: os embargos não vão reabrir o caso todo, a discussão técnica é mais aprofundada do que esse debate midiático rasteiro e por aí vai. Nem vou defender o acerto da decisão do Supremo. Embora me pareça obviamente acertada, o fato de a decisão ser favorável aos embargos por um voto mostra que a questão não é simples nem pacífica. Concordo com a decisão, considero-a acertadíssima, mas respeito quem defende o contrário. Desde que saiba do que está falando. O problema é que a maioria absoluta das pessoas que estão com "nojo do Brasil", "revoltadas com a impunidade", xingando os ministros de "vendidos", "canalhas" etc. não conhecem minimamente a realidade sobre a qual esperneiam.
     Comecemos pelo mais novo movimento social do Brasil, que podemos apelidar carinhosamente, numa corruptela dos black blocs, de "black bruacas". No dia seguinte à decisão do ministro Celso de Mello quanto ao cabimento dos embargos infringentes, as atrizes da novela "Amor à vida" postaram algumas fotos vestidas de preto, com expressões carrancudas, "de luto pelo Brasil". Pareciam uma banda de death metal escandinava. Rosamaria Murtinho disse ao site EGO (o site de, vá lá, "notícias" relevantes como esta aqui): "O que está acontecendo é um absurdo, querem desmoralizar o STF, que é a última instância do poder e deve ter suas decisões respeitadas. Estou de luto pelo Brasil", afirmou, talvez não se dando conta de que foi o próprio STF, numa decisão que deve ser respeitada, que admitiu os embargos. 
     É pouco provável que essas senhoras (assim como sua mais notória (?) seguidora, Carla Perez) tenham a mais remota ideia do que sejam embargos infringentes, hermenêutica constitucional, duplo grau de jurisdição etc. As black bruacas foram muito criticadas, mas acima de tudo viraram alvo de gozação. Merecidamente.
     Pior que a indignação desinformada das black bruacas (que, nesse ponto, são acompanhadas por muita gente bem intencionada e pouco informada) é a esquizofrenia hidrofóbica de folhetins como VEJA. Curiosamente, ainda há seres humanos que acreditam que VEJA "informa". Em relação ao julgamento dos embargos, a edição de VEJA da semana passada trazia uma reportagem que dizia: "O ministro Luís Roberto Barroso, o 'novato', como o descreveu o ministro Marco Aurélio Melo, fez um comentário não apenas infeliz, mas equivocado, quando defendeu seu voto pela eternização do julgamento do mensalão, justificando-o, entre outras razões, pelo fato de não se importar com a reação da opinião pública. (...) Nenhum juiz, nenhuma corte em tempo algum, pode desprezar a opinião pública". Após o ministro Celso de Mello dar ao Brasil uma lição de civilidade e direito, afirmando, de forma corretíssima, que o juiz deve julgar de acordo com a lei, e não com o clamor popular, a mesma revista, nesta semana, afirma em seu editorial: "O ministro Celso de Mello poderia ter poupado a inteligência das pessoas ao insistir que o Supremo Tribunal Federal (STF) não pode ceder ao 'clamor popular' ou à 'pressão das multidões'. Claro que não pode. Tanto não pode que isso não precisa ser declarado. Não existe mérito algum em que Celso de Mello tenha votado sem se importar com o grito básico das ruas. Isso é dever básico, essencial e primário de todo juiz". VEJA é que deveria ter poupado a inteligência das pessoas.
     O fato - triste e preocupante - é que os mensaleiros foram transformados numa Geni nacional. A população anda tão cansada da impunidade na política que precisa de um linchamento em praça pública para acreditar que o Brasil vai melhorar. Sobre os mensaleiros (e isso não significa afirmar sua inocência) vêm sendo despejadas décadas de frustração nacional com todas as falhas estruturais e culturais que permeiam nossa história.
     A antiguidade grega conhecia bem o sentido da catarse no teatro, a purificação espiritual pela descarga emocional representada em um drama. Foi o que o público dos cinemas brasileiros sentiu ao ver o Capitão Nascimento espancando um político corrupto em Tropa de Elite 2 - há inúmeros relatos de aplausos nas salas de projeção. O povo busca essa catarse novamente na imolação pública dos mensaleiros. E qualquer obstáculo no roteiro "corruptos-malvados-vão-para-a-cadeia-e-nasce-um-Brasil-novo" é motivo de frustração.
     O anseio pelo linchamento é tamanho que qualquer tentativa de trazer o debate de volta à razão é criticado por ser uma "defesa da impunidade". Tempos atrás, publiquei um texto chamado "Defender a lei não é defender bandidos". Assim como defender que os criminosos tenham direito a um julgamento justo e a um sistema penitenciário decente não significa concordar com seus crimes, defender que os mensaleiros tenham um julgamento imparcial não significa compactuar com a impunidade, defender a corrupção, não querer que o Brasil melhore etc. Mas não está fácil convencer as pessoas disso. Recentemente, apenas por defender o cabimento dos embargos, um amigo me chamou, em tom de brincadeira, de "amante de pizza". Outro me perguntou, também em tom de brincadeira (espero!), se não deveríamos acabar com os culpados a pauladas em praça pública.
     No debate sobre o mensalão, a sociedade se tornou maniqueísta: se concordamos com o cabimento dos embargos, somos petistas, estamos do lado dos mensaleiros, queremos a impunidade. Do contrário, estamos do lado do bem, da busca por um Brasil melhor. E boa sorte para quem tentar argumentar o contrário. 
         Curiosamente, a sociedade condena as "chicanas" do ministro Lewandowski, mas não vê problema algum quando Joaquim Barbosa impede Celso de Mello de votar, para que a pressão das ruas e dos meios de comunicação o faça mudar de ideia quanto à procedência dos embargos. Na ânsia por ver o bandido preso, a sociedade não se dá conta de que, quando o Judiciário puder aplicar a lei apenas para alguns, todos nós perderemos. Se o STF impedir um recurso de José Dirceu, tudo bem. Mas e se impedir um recurso meu, ou seu? Quem vai decidir quem tem ou não tem direitos que a lei diz que valem para todos?
      E quando um jurista de mentalidade conservadora e que sempre se opôs ao PT, como Ives Gandra, alguém que, em suma, não tem compromisso ideológico algum com os petistas e não ganharia nada com a defesa de qualquer mensaleiro, afirma à Folha que "Dirceu foi condenado sem provas", isso deveria fazer com que as pessoas pensassem: "deve haver algo de errado nesse julgamento". Mas nada supera a aversão figadal aos mensaleiros.
     Enfim, the worst vice is advice, mas ainda assim parece um bom conselho: é melhor pensar com o cérebro do que com o fígado, principalmente quando pensamos em questões de justiça e de Justiça. É melhor tentar enxergar racionalmente para além dos ódios que a insatisfação crônica com tudo o que há de errado no Brasil há décadas nos leva a sentir. Do contrário, negaremos aos mensaleiros aqueles direitos que gostaríamos que fossem respeitados, caso fôssemos nós os réus.
     Mas, para um povo combalido por séculos de roubalheira, malversação de dinheiro público e politicagem da pior espécie, talvez seja pedir demais.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A a moda, a malandragem e os manifestantes


"Très chic, Madame!"

     Na quinta-feira passada, foi publicada no Diário Oficial da União a autorização, dada pela ministra da Cultura Marta Suplicy, para que o estilista Pedro Lourenço capte 2,8 milhões de reais pela Lei Rouanet para promover um desfile de moda em Paris. Très chic, non? No começo do mês, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura havia dado um parecer negando o pedido do estilista. Mas Madame Suplicy intercedeu para que o benefício saísse, e então... voilà! Pedro Lourenço voará para Paris às nossas custas.
     Madame, sempre muito elegante em seus tailleurs bem cortados, escreveu um artigo hoje na Folha, justificando a decisão. No artigo, intitulado Moda é Cultura, a ex-ministra do prazer aéreo afirma que "a moda também gera símbolos. Marcas que, de tão importantes, se tornam até sinônimo da cultura do país. Atraem turistas, agregam valor a outros produtos e se, combinadas com gastronomia, música, monumentos, potencializam uma imagem positiva e contribuem para o 'soft power' do país".
     Entenderam? Num país como o Brasil, campeão de desigualdades, devastado por uma violência avassaladora, com bolsões de miséria e fome espalhados por todo o território, conceder quase 3 milhões de reais para um estilista rico fazer um desfile em Paris "potencializa uma imagem positiva" do Brasil. 
     Mas Madame deixa claro que "sem esses criadores, e outros que agora virão (espero as estilistas que trabalham com rendas nordestinas), nós não teremos condição de projetar nossas milhares de confecções charmosas que, com o tempo, darão alegria a tantas mulheres como quando hoje compram algo 'francês'". Tudo em nome do charme, portanto. Aguardem os milhões destinados aos colares de semente de melancia vendidos no centro de Sampa.
     E, enquanto nossa ex-ministra do prazer aéreo relaxa e goza com a fashionização dos recursos públicos, a Câmara dos Deputados manteve o mandato do deputado federal Natan Donadon, do PMDB-RO, já condenado pelo STF a 13 anos e 4 meses de prisão por peculato e formação de quadrilha, por ter desviado cerca de 8 milhões de reais da Assembleia Legislativa de Rondônia, um Estado paupérrimo. O deputado, que integra a bancada evangélica, já está preso há dois meses. Depois da decisão, foi cumprimentado por colegas como o deputado Sérgio Moraes (PTB-RS), aquele que disse à imprensa, tempos atrás, que estava pouco se lixando para a opinião pública. Segundo a Folha, ao saber da decisão, o deputado ajoelhou no chão do plenário da Câmara e gritou: "Não acredito!". É, eu também não.
Natan Donadon: condenado pelo STF,
teve seu mandato preservado pela Câmara.
     A pergunta que fica é: onde estão os manifestantes que protestaram contra os tais 20 centavos, contra o desaparecimento do Amarildo, contra a alta do Toddynho e contra o fim da série House? A inércia e a apatia da juventude que acha bonito quebrar agências bancárias, diante desses fatos estarrecedores, confirma as piores previsões sobre os movimentos de junho e julho - era onda, firula, fogo de palha, uma bagunça divertida e sem foco nenhum. Porque, quando os reflexos das piores tradições da velha politicagem brasileira se apresentam, nossos novos revolucionários parecem estar preocupados com alguma outra coisa.
     A manutenção do mandato de Natan Donadon abre um precedente para a manutenção dos mandatos dos condenados do Mensalão. Se isso ocorrer, os Vejeiros de plantão farão um escândalo, haverá algumas manifestações etc. Mas e agora? Diante desses dois retratos do Brasil velho, elitista e corporativista que teima em tentar voltar, não vejo o menor sinal de indignação da população. Só umas plaquinhas preguiçosas perguntando "onde está Amarildo?" (como se não tivéssemos uns 10 Amarildos por semana na periferia de Sampa) e uns resmungos da militância virtual nas redes sociais. Mas as ruas estão vazias.
     E o resto é silêncio.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Dubai é aqui


Marte Debora Dalelv. Condenada em Dubai
pelo crime de ter sido estuprada.

     Dubai entrou na moda nos últimos anos como destino de executivos (e engravatados em geral) sedentos de lucros e Meca (perdoem o trocadilho) da opulência dos mercados financeiros, polo de investimentos etc. A cidade de Dubai (que tem o mesmo nome do Emirado), construída no meio do nada e sem qualquer beleza natural, atrai também turistas pela sua modernidade, tecnologia de ponta e urbanismo progressista.
     Mas Dubai ainda é um Emirado Árabe, e como tal adota as leis muçulmanas e os valores do Corão. O mundo tende a ignorar esse contraste e a olhar, fascinado, para o lado moderno e próspero do lugar.
     Até o momento em que uma estrangeira é estuprada.
     A essa altura todo mundo já conhece a história: em março, a norueguesa Marte Deborah Dalelv, de 24 anos, que estava em viagem de negócios pelo país, procurou a polícia de Dubai e denunciou um estupro. Segundo a denúncia, ela teria ido a uma festa com um colega de trabalho, ambos beberam e, quando voltaram ao hotel, o colega (seu chefe, por sinal) a teria violentado.
     A resposta dada a Marte pela polícia de Dubai - diga-se de passagem, em plena consonância com as leis daquele país (ah, as loucuras do fanatismo religioso!) - foi confiscar seu passaporte e trancafiá-la numa cela por quatro dias sem permissão sequer para usar o telefone. No final da semana passada, Marte foi condenada a 16 meses de reclusão por ingerir bebida alcoólica, fazer sexo fora do casamento e atentar contra a decência (a UOL divulgou a notícia no dia 19).
     Que ninguém acuse Dubai de misoginia. Afinal, o chefe de Marte também foi condenado a 13 meses de reclusão, por consumo de álcool e relações sexuais consentidas...
     A repercussão mundial foi tão negativa, e tão intensa, que o governo de Dubai decidiu perdoar Marte - e, é claro, perdoar também seu agressor.
     Todo esse horror parece muito distante do Brasil. Afinal, o fato ocorreu em um país árabe, imerso na cultura muçulmana (que é assumidamente machista e desigual no trato entre homens e mulheres) e que, no que toca aos direitos humanos, ainda não saiu do Paleolítico.
     Parece. Mas as aparências enganam.
     Quando a notícia da libertação de Marte foi divulgada da internet, os comentários dos internautas - sempre um bom termômetro de parcela da opinião popular - deixaram bem claro que temos muito mais  de Dubai - em seu aspecto medieval, não em sua faceta moderna - do que imaginamos.
     Os links estão no texto, o leitor pode dar uma conferida. Destaco três, dentre muitos, muitíssimos, no mesmo sentido:

"Mas um pouco de decência também é bom, né?"

"caiu na gandaia tomou todas disse foi estuprada e foi presa que loucura"

"Se vai transar, leve um gravador primeiro e pergunte para a parceira, posso transar com você? Previna-se porque depois ela pode dizer que foi estuprada e você vai preso. Em Dubai, transou e não tem compromisso assinado dançou! Eta sociedade esquisita! Não vá a Dubai principalmente se sua companheira não for casada."

     Há comentários ainda piores, mas a linha-mestra, que se repete ad nauseam (literalmente) é o velho argumento: a vítima provocou. Afinal, ela estava em uma festa, bebeu com o colega, nada mais natural do que ela querer fazer sexo com ele, mesmo que, digamos, não demonstre isso claramente. Simples, não? Não.
     O que surpreende nos comentários às notícias é a convicção quase unânime de que o sexo foi consensual, e que Marte, sabe-se lá por qual razão, decidiu acusar o chefe de estupro. Convicção, aliás, também do Judiciário de Dubai, já que o chefe de Marte foi condenado por ter relações sexuais consentidas.
     Outro argumento frequente nos comentários é o de que Marte estava em outro país, outra cultura, logo, deveria respeitar os costumes locais. Nada mais é do que uma variante do "foi ela que provocou". E por trás da aparente suavidade do "uma coisa não justifica a outra, maaaassss...." se revela cristalina aquela certeza íntima de que, ao contrário do que a boca diz, a cabeça acredita que a conduta de Marte justifica, sim, o que ela passou depois.
     Que fique claro: eu não estava lá, não posso afirmar com certeza que Marte foi estuprada. Por outro lado, os internautas que se apressaram em condená-la (e que têm uma certeza quase religiosa - novamente, perdoem o trocadilho - de que ela consentiu) também não estavam lá, e sabem tanto - ou tão pouco - sobre o que de fato aconteceu quanto eu. Escolher entre acreditar na versão da suposta vítima ou no suposto agressor, se as duas versões forem igualmente prováveis (não me parece o caso, por sinal), não esclarece o ocorrido, mas informa muito sobre quem faz a escolha.
     Bom seria se Dubai (no que tem de pior) fosse um país distante. Mas no Brasil do século XXI, Dubai não está distante. Nem mesmo está perto. Dubai é aqui.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Saudades da ditadura?




    O plano era dar uns dias de folga ao blog, estou de férias etc. Mas algumas coisas simplesmente entalam na garganta da gente, e expeli-las se torna questão de saúde, se não pública, ao menos privada.
     E eis que, em menos de uma semana, surgem nas redes sociais pelo menos três - sim, três! - textos remoendo "saudades da ditadura". Sintomaticamente, dos que me chegaram às mãos, um de um sujeito dos seus 50 e poucos, outro de uma pessoa entre 30 e 35, e o último - horror! - de um rapaz de menos de 20. Este, acrescido de um vídeo do ex-presidente Figueiredo (aquele que, na presidência, afirmou que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo) e do texto "saudades... Éramos felizes e não sabíamos".
     E meu plano de dar férias ao blog foi para o espaço. Porque, se três gerações distintas sentem saudade da ditadura, algo está muito mais errado do que imaginávamos.
      Chamemos esses três grupos, representados por esses indivíduos, respectivamente de saudosistas, idealistas e neorreaças. A nomenclatura é imperfeita, bem sei, mas servirá para fins didáticos.
     O saudosista, na casa dos 50 e tantos, lembra com carinho do tempo em que não havia tanta criminalidade nem corrupção, a economia era estável (rescaldo do "milagre econômico" que já se despedia) e as domésticas sabiam seu lugar - aquele quartinho dos fundos que fazia as vezes de neosenzala. Aeroporto era coisa de gente chique, assim como automóvel. Eletrodoméstico era termômetro de caridade - gente com "consciência social" doava o liquidificador para a empregada quando comprava um novo (os mais radicais, quase comunistas, doavam videocassetes velhos).
     Os idealistas nasceram entre o fim da ditadura e o início da redemocratização; amargaram as trapalhadas econômicas dos meados dos anos 80 e os primeiros tropeços democráticos dos anos 90. Gozaram de alguns privilégios dos quais se viram, na última década, subtraídos - ou, a seu ver, surrupiados.
     Os neorreaças, muitos filhos de saudosistas, nada sabem da ditadura, além do pouco que ouviram nas aulas de história na escola (às quais não prestaram atenção). Sem jamais terem aberto um jornal, formaram o que chamam de "convicção política" a partir do que ouviram do papai e/ou da mamãe - ávidos leitores e assinantes da VEJA. Sentem falta de um período que não conheceram, mas que seus pais descrevem como aquele tempo em que "tudo era melhor".
     Esses três grupos têm, entre si, inúmeras distinções e similaridades. Destacam-se, no entanto, duas características principais:
     1) Uma inacreditavelmente estúpida confusão entre causa e efeito;
     2) a defesa intransigente da tese de que "não havia corrupção" e "nenhum militar enriqueceu na presidência".
     A confusão entre causa e efeito pode ser constatada de várias maneiras. As mais comuns consistem nas afirmações de que a escola pública "tinha qualidade" durante a ditadura e de que os índices de criminalidade eram menores.
     Mas foi justamente a partir dos anos 70 que as escolas públicas começaram a perder qualidade. Isso não ocorreu apenas com o achatamento dos salários dos professores (fenômeno que se intensificou a partir dos anos 80, razão pela qual muita gente, de forma equivocada, situa nessa década o início do declínio da educação no Brasil). O primeiro golpe dos militares na educação ocorreu com o deliberado projeto de eliminação do senso crítico e da consciência cidadã dos alunos, que foram substituídos, numa verdadeira lavagem cerebral, por um patriotismo de caráter extremista que substituía qualquer análise crítica da realidade brasileira (se alguém duvida, basta ir a um sebo, comprar um livro escolar de história dos anos 70 e ler o que se escrevia sobre Jango e a "revolução" que "salvou o Brasil do comunismo"). E só para lembrar, foi Samuel Johnson, e não Nelson Rodrigues, quem disse que "o patriotismo é o último refúgio do canalha". Nelson só emulou, mas ambos estavam certos.
     Assim como a destruição do sistema educacional público, a catástrofe econômica dos anos 80 e o aumento da criminalidade - alguém ainda duvida que esses fenômenos estão relacionados? - foram em parte o preço do "milagre econômico" dos militares. Ou alguém acha que obras faraônicas e a proibição de entrada de produtos estrangeiros no Brasil (para "estimular a indústria interna") não cobrariam seu preço? Milagres não existem, muito menos em economia. E se, por um lado, o cenário externo contribuiu para a crise, não se pode negar que os militares contribuíram com sua carga de ignorância e ineficiência (é bem conhecida a preferência de Costa e Silva pelas palavras cruzadas a qualquer livro sobre o país que ele presidia) para o preço que o "milagre" inevitavelmente cobraria. É incontestável - até os mais conservadores admitem - que o "milagre econômico" aprofundou sobremaneira a desigualdade. Alguma relação entre desigualdade e criminalidade?
     Em suma, achar que a situação do país piorou por causa da saída dos militares (e não apesar dela) revela uma imensa ignorância sobre a história brasileira e uma falta de informação abismal. É até compreensível - embora não aceitável - que saudosistas e idealistas pensem assim, com base em suas vivências empíricas. Mas os neorreaças não têm nem mesmo essa desculpa. 
     Quanto à tese de que não havia corrupção na ditadura e que os militares não enriqueceram no poder, é de uma ingenuidade atroz. Deveria ser óbvia a qualquer vertebrado a diferença entre inexistência e falta de divulgação. Evidentemente, o mundo atual é muito mais transparente do que o dos anos 60-80. Além disso, achar que os militares estavam numa redoma moral, imunes ao que eles mesmos consideravam um traço cultural dos brasileiros, é de uma inocência sem par. Mais denúncias não significam necessariamente mais corrupção. Podem muito bem significar mais investigações e mais transparência. Vale lembrar que a imprensa vivia sob censura na época, o que, é claro, não acontece hoje. E corrupção não se limita a dinheiro. Corrupção, em sentido amplo, implica violar a lei, que se aplica a todos, inclusive aos governos. E nesse aspecto, nenhum governo foi mais corrupto que o militar (de resto, vale ler o livro "Como eles agiam", do historiador Carlos Fico, para se ter uma ideia do grau de corrupção - inclusive em sentido estrito - durante a ditadura).
     Haveria muito mais a ser dito, dentre argumentos aparentemente mais ponderados a verdadeiros delírios (inacreditavelmente, ainda há quem acredite no risco de um "golpe comunista" no Brasil). Mas a síntese dessa história toda é: você não precisa concordar em nada com o governo atual; você pode querer um governo liberal, conservador, repressor etc. Mas você só pode lutar por um governo diferente do atual numa democracia. Ditaduras não dão espaço a visões de mundo diferentes.
     Então, seja você um saudosista, um idealista ou um neorreaça, se você sente saudade da ditadura, lembre-se que você só pode lutar pela volta dela porque ela não existe mais.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Geração coca-zero, memes e um novo Brasil


A juventude toma o Congresso Nacional: a mais bela cena de 2013

    Quem poderia imaginar, ao acordar ontem, que testemunharia um dos mais belos momentos da história recente do país?
     Ontem, mais de 250 mil pessoas tomaram as ruas do país para protestar. Só na cidade de São Paulo, foram 65 mil. O mote inicial dos protestos - o aumento de 20 centavos nas tarifas de ônibus - já ficou para trás. Foi a gota d'água. Da PEC 37 à preferência dos governos por investir em estádios ao invés de educação, passando pela corrupção na política, uma gama de temas levou os protestantes, a maioria jovens, às ruas. Numa das cenas mais lindas que jamais testemunhei, a juventude tomou o Congresso Nacional, em Brasília, hoje símbolo, no imaginário popular, do que a política representa de pior (alguém lembra a cena final de Tropa de Elite 2?).
     É claro que a história não se escreve de um minuto para outro. Mas as manifestações anteriores - principalmente a terceira e a quarta - foram, em retrospecto, as premissas para o chamado Quinto Grande Ato contra o aumento das passagens, esse que foi, sem dúvida nenhuma, o ponto de virada do movimento.
     Apenas lembrando: o terceiro protesto foi marcado por atos de vandalismo e depredação, praticados por sociopatas que se aproveitaram do anonimato que esse tipo de evento proporciona para extravasar suas neuroses (como escrevi no texto anterior, O sono da razão). Qualquer pessoa que conhece minimamente a realidade de São Paulo já podia prever o que aconteceria a seguir: assim como, em 2006, os ataques do PCC provocaram uma reação desproporcional e absolutamente brutal da polícia, era previsível que os abusos praticados por uns poucos dementes na terceira passeata levassem a uma reação extremada da polícia no quarto ato - principalmente porque os principais jornais de São Paulo, em seus editoriais, fomentaram a violência e o maior rigor da polícia contra os "vândalos".
     Claro que a mesma imprensa que atiçou o governo e a polícia contra os manifestantes (tornou-se um clássico instantâneo no youtube a cena em que o apresentador Luís Datena rebola na gramática para que o público de uma pesquisa desaprove o movimento, enquanto o público continua a aprová-lo) passou a reclamar quando seus próprios repórteres começaram a ser agredidos. Pau que bate em Chico também bate em Francisco, principalmente quando não se sabe quem é um e outro. Depois que alguns repórteres apanharam da polícia, o discurso da grande mídia mudou. Os "vândalos" se tornaram "manifestantes", e a "defesa rigorosa da ordem" se transformou em "brutalidade policial".
     Com os ventos midiáticos mudando de direção, engajar-se ficou cool. Arnaldo Jabor, que no dia anterior havia comparado o "ódio à cidade" dos manifestantes ("revoltosos de classe média que não valem 20 centavos") ao PCC, voltou atrás, num patético arremedo de mea culpa que não convenceu ninguém. Mais constrangedor foi ver um bando de globais que nunca se preocuparam um minuto com a violência policial cotidiana contra negros e pobres nas periferias pintando o olho de roxo e fazendo carinha de "#chatiado" porque UMA jornalista da Folha foi vítima de abuso policial - um oportunismo político de dar orgulho a qualquer Stalin wannabe. Ser politizado nunca foi tão legal.
     Também era previsível que no Quinto Ato a polícia fosse moderada, dada a tremenda repercussão negativa dos abusos policiais cometidos na quarta passeata. Fazendo cosplay de oráculo, cheguei a tranquilizar algumas pessoas que tinham receio de ir ao protesto: "acho que a coisa vai ser mais tranquila justamente por causa da repercussão negativa da última", escrevi a uma amiga preocupada. Dito e feito.
     Mas a adesão de quase um quarto de milhão de pessoas Brasil afora, isso ninguém poderia prever.
     A falta de um foco específico nas passeatas, antes de ser um problema, talvez seja sua maior qualidade. Porque mostra que a juventude não suporta mais inúmeros problemas brasileiros, e não um problema específico. O Quinto Ato foi a explosão de uma panela de pressão, a gota d'água que faltava para o caldo entornar. E, ao contrário do ridículo movimento Cansei de 2007 (uma manifestação "política" capitaneada por Hebe Camargo, precisa dizer algo mais?), ontem o povo brasileiro mostrou à classe política que realmente está cansado - da violência, da corrupção, da impunidade, da precariedade da educação etc.
     Impossível não lembrar o grande momento da minha geração, os protestos dos caras-pintadas contra o presidente Collor em 1992. A resposta ao desesperado apelo do então presidente na televisão ("não me deixem só") foi um abandono total e uma exigência maciça, por parte da juventude, de que ele deixasse o cargo.
     Éramos a geração coca-cola, "os filhos da revolução, burgueses sem religião". Éramos o futuro da nação, há 20 anos. Hoje, somos o presente e essa nova geração - geração coca-zero? - é o futuro. Talvez, daqui a 20 anos, o dia 17 de junho de 2013 seja lembrado pelos livros de história como o ponto da virada, o momento em que o "chega!" deixou de ser discurso e passou a ser ato.
     É claro que tudo depende de como serão as próximas manifestações. Mas arrisco - olha o cosplay de oráculo outra vez! - que, se os atos seguirem pacíficos, a adesão será cada vez maior. O apoio da população está garantido. As reivindicações são justas. Resta ver como a classe política vai reagir diante de um fenômeno tão raro, inusitado e - para os maus políticos, para quem ainda quer um Brasil "mais do mesmo", desigual, ineficiente, injusto - preocupante.
     Memes não são só aquelas carinhas bobas que povoam o Facebook. O termo meme foi cunhado em 1976 pelo biólogo Richard Dawkins, no livro O gene egoísta. Significa uma unidade de informação - geralmente uma ideia - capaz de se autopropagar (o livro usa a curiosa expressão "vírus memético"). Pense numa ideia que "contamina" as pessoas que entram em contato com ela. Pense num povo subitamente "contaminado" pela ideia de que pode mudar a realidade de seu país - ideia que se alastra rapidamente, como um vírus poderoso. Um apocalipse zumbi às avessas.
     O Primeiro Grande Ato, em 06 de junho, contou com 5 mil pessoas. O ato de ontem reuniu 250 mil - sem contar as inúmeras manifestações no exterior. Ao que parece, a sede por reformas estruturais no Brasil alcançou o status de meme. A velha classe política que se cuide!
     Fundamental agora é que os protestos não descambem para a violência, como infelizmente ocorreu no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre. Em São Paulo, ontem à noite, na porta do Palácio dos Bandeirantes, houve um início de tumulto. Foi bonito ver os próprios manifestantes contendo os mais exaltados, ver a juventude, e não a polícia, acalmando os ânimos. Ver o movimento e o governo iniciando um diálogo. É preciso responder à pergunta fundamental: ok, chegamos até aqui. E agora?
    Tudo depende do que virá a seguir. Os próximos dias - talvez semanas, quem sabe meses - darão o real sentido do belo ato de ontem. Se o Terceiro e o Quarto Ato se tornaram as premissas do Quinto, este talvez se revele a premissa de algo ainda mais grandioso. Os próximos atos determinarão se a juventude que parou o Brasil poderá dizer, daqui a 20 anos, "eu fiz história", ou se terá de se limitar a um melancólico "eu quase fiz história".


quinta-feira, 13 de junho de 2013

O sono da razão


Goya: O sono da razão produz monstros


    Não vou discutir a óbvia legitimidade do Movimento Passe Livre nem o direito das pessoas de, numa sociedade plural, protestarem e se manifestarem contra o que quer que entendam que precisa ser mudado. Como quase todo mundo, já li e ouvi versões as mais diversas sobre os confrontos entre manifestantes e a polícia, sobre quem deu início à onda de violência, sobre o que "está por trás" dos confrontos (as teorias conspiratórias pululam). Mas creio que alguns aspectos desse momento de crise merecem uma ponderação mais racional - racionalidade, obviamente, é o que está faltando na situação.
     Apenas para raciocinarmos juntos:
     1) Embora o Movimento Passe Livre tenha organizadores, a adesão de pessoas que, sem integrar propriamente a ala organizada do movimento, a ele adere, torna difícil o controle da situação pelo próprio movimento. O que deveria fazer o MPL após constatar que os protestos dos últimos dias resultaram em atos de extrema violência? Encerrar as manifestações? Tentar conter os ânimos mais acirrados? Ou deixar tudo como está porque um movimento organizado não pode ser responsabilizado pela loucura e truculência de uns poucos?
     2) O velho (e pelo visto, adorado) maniqueísmo: todo manifestante, por estar ao lado do MPL, está certo, é um herói do povo, luta pelos direitos da população (esta ingrata que não reconhece o sacrifício de seus "heróis" e ainda os critica). Por outro lado, todo policial fardado é um psicopata violento e sedento de sangue, enviado ou por um prefeito facínora ou por um governador truculento. Nenhum desses policiais, é claro, usa transporte público. Ora, nem são os manifestantes heróis santificados pelo só fato de integrarem o MPL (ou a ele aderirem), nem são os policiais os vilões apriorísticos da história. Pelo que pude ler (não compareci a nenhum ato), houve abusos dos dois lados.
     3) Tentar justificar a violência descabida de alguns manifestantes com o argumento de que é o poder público quem comete uma "violência" contra a população ao aumentar a tarifa, como cheguei a ler em alguns textos (e como, sutilmente, os organizadores do MPL defendem em artigo de hoje na Folha de São Paulo), é insanidade. Talvez o quebra-quebra arranhe a imagem da prefeitura, mas a maior vítima dessa violência é a própria população, não o poder público.
     4) Quem critica a "truculência" de governantes que se recusam a negociar "com a faca no pescoço" e que apoiam a ação da polícia parece não se dar conta de que a violência como "argumento de negociação" mata a própria ideia de negociação. Quem usa a violência como argumento não negocia, chantageia. E a presença da polícia é fundamental em manifestações desse tipo, assim como a repressão a atos de vandalismo. É para isso que a polícia serve, afinal (não estou, obviamente, me referindo aos abusos).
     Esses são apenas quatro de inúmeros questionamentos que a situação atual suscita. Essas questões não têm respostas simples nem se solucionam na base de "certo" e "errado". Mas certamente esse nó não será desatado ao sabor das paixões desenfreadas.
     Há vândalos no movimento, sim. Mais do que isso, há, como em todo agrupamento humano, indivíduos que se valem do anonimato que o grupo fornece para extravasar suas neuroses e psicoses. Apenas os entusiastas de uma revolução que nunca virá são incapazes de enxergar que depredações de bens públicos (bens que não são do Estado ou da prefeitura, e sim do próprio povo que essas pessoas alegam defender) atrapalham, e não ajudam, o MPL.
     Entre 1797 e 1799, o pintor espanhol Francisco De Goya concebeu uma série de 80 gravuras a que chamou Los Caprichos. O Capricho nº 43 se chama El sueño de la razón produce monstruos.
     O sono da razão produz monstros. Quando a racionalidade sai de cena, resta apenas o que possuímos de mais animalesco e selvagem. É pouco provável que esse caminho leve a alguma solução válida.
     A criminalidade já chegou a patamares inaceitáveis de violência. A escalada de violência atingiu um nível de guerra civil. Além da absurda brutalidade dos bandidos, teremos de suportar também manifestações como a de terça-feira, em que diversas pessoas (entre policiais e manifestantes) saíram feridas, em que bens públicos (nossos bens) foram depredados, em que um policial quase foi linchado por uma turba ensandecida?
     O MPL já organiza outras passeatas e não dá mostras de que pretende recuar. Segundo a Folha, a polícia acionará a Tropa de Choque para o ato previsto para hoje.
     Então, tanto para quem comparece a tais atos como para quem pretende analisá-los a uma distância segura, mais razão e menos emoção (e menos ideologia, também), por favor. A sociedade como um todo agradece.
     Com a razão adormecida, os monstros ganham o mundo. Não me espantarei se, em breve, alguma passeata contra a violência também terminar em quebra-quebra, depredações, mortos e feridos.

terça-feira, 4 de junho de 2013

A classe média, que malvada!


Marilena Chauí: chilique contra a classe média

    Nas últimas semanas, a internet foi bombardeada por críticas ferozes (e defesas pueris) à classe média brasileira, capitaneadas pelo chilique da professora Marilena Chauí no lançamento do livro 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma, ocorrido em 13 de maio em São Paulo.
     O chilique, que pode ser visto aqui, deita por terra qualquer pretensão de levar a sério os argumentos da professora. Depois de definir "classe média" por um critério algo confuso, mas de natureza claramente  marxista ("o que define uma classe no modo de produção capitalista é a maneira pela qual ela se insere na relação entre os meios sociais privados de produção da força produtiva"), e de afirmar que o acesso aos bens de consumo não transforma a classe trabalhadora em classe média, Marilena Chauí - convenhamos, de forma muito honesta - explica: "E por que eu defendo esse ponto de vista? Não é só por razões teóricas e políticas. É PORQUE EU ODEIO A CLASSE MÉDIA! A classe média é um atraso de vida! A classe média é a estupidez! É o que tem de reacionário, conservador, ignorante, petulante, arrogante, terrorista! É uma coisa fora do comum! Então, eu me recuso a admitir que os trabalhadores brasileiros, porque galgaram direitos, conquistaram direitos, esses direitos foram conquistados com 20 anos de luta, fora os 500 anteriores de luta e desespero, e dizer que essas lutas e essas conquistas fizeram a gente virar classe média? De jeito nenhum! De jeito nenhum! A classe média é uma abominação política, porque ela e fascista; ela é uma abominação ética, porque ela é violenta; e ela é uma abominação cognitiva, porque ela é ignorante!"
     O ataque histérico da professora foi saudado com compreensíveis gargalhadas e aplausos que só se explicam porque, como se sabe, Marilena Chauí tem um séquito que aplaude qualquer bobagem que ela disser. Curiosamente, não parece ter ocorrido a ninguém da plateia que ao berrar histrionicamente que odeia a classe média, a professora já deixou clara a ausência de uma objetividade mínima para que, na qualidade de "filósofa" (as aspas se justificam, pois a considero muito mais uma professora do que uma filósofa stricto sensu), ela fosse capaz de analisar o fenômeno da tal "classe média".
     Segundo o site oficial do Governo Federal, "o conceito de Classe Média foi definido pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República em conjunto com o Ministério da Fazenda, Ministério do Desenvolvimento Social, IBGE, IPEA, FGV, IPC/Pnud, IE/UFRJ, Insper, USP, MCM Consultores e Instituto Datapopular com base na ascensão e queda de renda dos brasileiros". Esse conceito, como se vê, não foi ditado unilateralmente por um órgão, um governo ou uma pessoa, mas construído com base em parâmetros e dados trazidos por setores distintos da sociedade.
     O Governo Federal - do qual Marilena Chauí discorda - dividiu a sociedade brasileira em três classes: classe alta, classe média (com renda familiar per capita entre R$ 291 e R$ 1.019) e classe baixa. Ainda segundo o governo, 104 milhões de pessoas compõem a classe média. São, segundo a professora, todos trabalhadores subitamente endinheirados (se é que se pode chamar de "endinheirada" uma família cuja renda per capita seja de R$ 291), ou todos reacionários, conservadores, ignorantes, petulantes, arrogantes, terroristas, abominações políticas, éticas e cognitivas?
     O pensamento de que a classe média é uma consciência coletiva intrinsecamente má foi replicado nas redes sociais, em blogs, em artigos et alii. Até mesmo o jurista Márcio Sotelo Felippe adotou a premissa, ao afirmar, em seu artigo Fascismo no Brasil de hoje, que "a inculta e selvagem classe média brasileira tem horror à diferença. Não gosta de negro, não suporta homossexual, não quer pobres por perto a não ser para limpar suas privadas. Quando é de direita - quase sempre - tem ódio da esquerda. Não é apenas contra. Não é que discorda. Odeia. A classe média brasileira é a favor da pena de morte, da redução da maioridade penal, da execução sumária de transgressores, repete frases como 'bandido bom é bandido morto' e seu ideal de política é tal qual o 'volkisch' da Alemanha nazista, mas isso, claro, quando o acusado é pobre, negro, puta, gay, etc".
     Nem vou me dar ao trabalho de refutar os autointitulados expoentes da classe média que se rebelaram contra o chilique de Marilena Chauí, porque os argumentos usados, na maioria dos textos que li ("a classe média sustenta esse país", "a classe média gera empregos" etc.) são tão rasos que nem vale a pena iniciar qualquer debate nesse sentido. Também não creio que Marilena Chauí deva ser levada muito a sério (e nem me parece que ela seja, fora do seu círculo de fãs). Não sei se procede a crítica, feita nos anos 80 pelo diplomata José Guilherme Merquior, de que Marilena Chauí plagiou Claude Lefort (segundo li, ela não negou, limitando-se a invocar contra o diplomata o, a meu ver sempre inútil, argumento ad hominem). Também não sei se é verdade que ela plagiou Julián Marías - o capítulo 3 da Unidade 3 de Convite à Filosofia, de MC, é de fato praticamente idêntico ao ponto 24 do capítulo II do Introdución a la Filosofia, de JM, e MC, ao menos na edição que li, não faz qualquer menção a JM, embora a obra deste date de 1947 (não sei quando Convite à Filosofia foi lançado, não achei edições anteriores a 1994, mas como MC nasceu em 1941, creio que o livro de Julián Marías seja anterior). Mas não conheço filosofia o suficiente para acusar MC de plágio nesse caso, porque ambos podem ter bebido da mesma fonte. Ou não.
     Em suma, não considero Marilena Chauí uma grande pensadora, e me parece que seus admiradores apreciam mais sua verve político-ideológica (e seu talento inato para a stand-up comedy) do que suas ideias filosóficas. Então, se ela quiser berrar para seu fã-clube que o que ela entende por classe média é tudo aquilo que já transcrevi, arrancando aplausos e gargalhadas, não creio que isso deva ser levado muito a sério. O próprio Lula, que subiu ao palco depois da professora, parece não levá-la a sério, já que afirmou (suponho que jocosamente): "Depois de anos que lutei para chegar à classe média, vem essa mulher e esculhamba com a classe média..."
     O problema surge quando essa concepção de "classe média malvada" começa a ser encontrada em textos mais inteligentes e que, além disso, não deixam claro a que classe média se referem.
     Considero um equívoco atribuir a uma classe social - seja qual for o parâmetro empregado para defini-la - tais ou quais características, ainda mais nos termos extremados como os empregados nos trechos que destaquei acima. Primeiro, porque reacionário, conservador, ignorante, petulante e arrogante (deixemos o terrorista de lado) são características de indivíduos e, mesmo que um grupo seja formado por muitas pessoas com essas características, não me parece correto uniformizar todos e cada um dos membros desse grupo sob tais parâmetros. Segundo, porque se parte do muito ingênuo pressuposto de que em outro(s) grupo(s) da sociedade (no caso de MC, a "classe trabalhadora") essas características não estariam presentes. Ou não haverá, parafraseando Márcio Sotelo Felippe, pobres ou membros da "classe trabalhadora" a favor da pena de morte, da redução da maioridade penal, da execução sumária de transgressores, e que repitam frases como 'bandido bom é bandido morto'? Ou a "classe trabalhadora" não é também fascista, violenta e ignorante?
     A piada de Lula contém uma verdade implícita: à exceção de quem (como Marilena Chauí) adota uma concepção de classes fundada primordialmente na ideia da exploração de uma classe por outra, a ascensão social, a escalada do que o governo chama de "classe baixa" para a "classe média" é uma conquista, e antes disso, uma meta. Não há nada mais petulante e arrogante (para usar os adjetivos empregados pela professora) do que um "intelectual" que arvora para si a "sabedoria" de dizer o que o povo (seja a "classe trabalhadora", seja a "classe baixa") quer, independentemente do que esse mesmo povo pense e diga a respeito. Como brincou Joãosinho Trinta: "Quem gosta de pobreza é intelectual, pobre gosta de luxo."
     Caracterizar toda uma classe - seja econômica (critério do Governo), seja social (critério de MC) - atribuindo-lhe características típicas de vilões de histórias em quadrinhos (do que decorre que outras classes seriam os heróis, ou pior, a mocinha da história) - não é o tipo de análise que costuma levar a boas conclusões (basta lembrar que Marx e Engels defendiam a inevitabilidade da extinção da burguesia e a "ditadura do proletariado", duas hipóteses sobre as quais a História sapateou). A realidade social é multifacetada demais para se adequar a maniqueísmos rasteiros.
     A classe média não é, enquanto classe, vilã da história, assim como a classe baixa - ou a "classe trabalhadora" - não é o herói, nem a mocinha. Os defeitos individuais são encontrados em todas as classes. Abordagens simplistas como a de Marilena Chauí certamente não são úteis para levar uma sociedade complexa e plural (como a brasileira) à superação de suas profundas desigualdades. Mas se ela própria afirma que seu ódio pela classe média - e não há nada mais irracional do que o ódio - é a razão pela qual defende seu ponto de vista, a incoerência que se segue a partir de tal premissa não deveria surpreender ninguém.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Sociedade e autoridade - parte 3


O símbolo da Terceira Onda, criado por alunos da
Escola Secundária Cubberley, em 1967.

     Na tentativa de refletir sobre a relação entre sociedade e autoridade, escrevi sobre a experiência de Milgram e o experimento de aprisionamento de Stanford. Uma terceira experiência que vale a pena lembrar, com resultados tão perturbadores quanto as anteriores, surgiu quase que por acidente, sem planejamento prévio, como resultado de uma pergunta feita por um adolescente numa aula de história da Escola Secundária Cubberley, em Palo Alto, em 1967 (coincidentemente, a mesma cidade em que, quatro anos depois, Phillip Zimbardo conduziria a experiência de Stanford).
     Numa aula sobre a Segunda Guerra Mundial, um aluno questionou o professor Ron Jones sobre a responsabilidade do povo alemão pelos crimes dos nazistas (o debate sobre como a Alemanha foi capaz de ignorar - e, portanto, aceitar - tais crimes continua até hoje). Incapaz de dar uma resposta direta (já que nenhuma racionalidade poderia justificar a adesão acrítica da quase totalidade dos alemães a Hitler), Ron Jones induziu a classe a um experimento sociológico, para tentar demonstrar a facilidade com que um grupo pode aderir ao fascismo.
     O exercício começou numa segunda-feira.
     Assumindo o papel de líder autoritário da sala, que tinha cerca de 30 alunos, o professor deu uma palestra sobre a "beleza da disciplina" e começou a impor à classe, num primeiro momento, exercícios simples como sentar-se adequadamente e respirar de forma correta, criando um ambiente de ordem e disciplina rigorosa. 
     Na terça-feira, ao chegar à aula, o professor encontrou os alunos sentados de forma rígida e ordenada. A maioria dos estudantes olhava de forma séria e concentrada para a frente. Jones escreveu na lousa: "FORÇA através da disciplina. Força através da comunidade". Discursou, então, sobre o valor da comunidade. Depois, fez a sala recitar em uníssono, repetidamente, o mantra "força através da comunidade". Começou a pedir que alguns alunos se levantassem, até que todos ficassem em pé, sempre entoando a frase. Segundo Jones, "os alunos começaram a olhar uns para os outros e sentir o poder de pertencer. Todo mundo era capaz e igual. Eles estavam fazendo algo juntos". No final da aula, Jones criou uma saudação para ser usada apenas pelos membros da classe, chamando-a de saudação da Terceira Onda.
     Na quarta-feira foi criado um cartão de adesão. 13 alunos haviam solicitado a transferência para a sala, para integrar o grupo, que agora contava com 43 membros. Três estudantes foram escolhidos para relatar eventuais descumprimentos das regras por outros membros do grupo. Jones determinou que alguns alunos criassem um símbolo, e que outros arregimentassem membros para o grupo. O cozinheiro da escola pediu para fazer um cardápio para a Terceira Onda. Numa reunião, o diretor da escola cumprimentou Jones com a saudação da Terceira Onda. No final do dia, a Terceira Onda já contava com mais de 200 alunos. Jones observou que, nesse ambiente, as qualidades dos alunos mais inteligentes eram diluídas: "As habilidades intelectuais de questionamento e raciocínio eram inexistentes". Além disso, começava a surgir uma tensão entre os membros mais comprometidos com as regras do grupo e aqueles que não as levavam tão a sério.
     Na quinta-feira, Jones percebeu que a experiência estava fora de controle. A essa altura o grupo, estimulado pelo professor, achava que a Terceira Onda tomaria todo o país. Vozes dissidentes eram silenciadas à força pelo grupo. Um adolescente perdeu a mão construindo explosivos. Jones marcou um comício para o dia seguinte e, na sexta-feira, encerrou o experimento, explicando aos alunos que se tratava apenas uma simulação.
     A experiência foi retratada em dois filmes, o norte-americano The wave (1981) e o alemão Die welle (2008). É possível ainda enxergar inúmeras referências ao fato no filme Clube da Luta (1999).
     Dois anos depois do experimento, Ron Jones foi demitido e proibido de ensinar em escolas públicas. E até hoje se arrepende de ter colocado em risco a vida dos alunos. Mas a tese que todos nós estamos sujeitos ao fascínio do fascismo foi comprovada. 
     Mais do que isso, a experiência demonstra que o totalitarismo prescinde de símbolos que remetam a seu passado trágico (como a suástica) e mesmo de discursos excludentes. Na verdade, a história mostra que o fascismo geralmente surge após uma fase de "melhora" social - Jones narra que Robert, um aluno fraco e não muito inteligente, contou-lhe que se sentia perfeitamente integrado a um grupo pela primeira vez na vida. Nos primeiros dias, o desempenho do grupo melhorou consideravelmente. E é bom lembrar que Hitler impulsionou a então destroçada economia alemã, antes de desencadear o Holocausto. 
     Paraísos artificiais são campos férteis para as piores distopias. E, pelo visto, não há sociedade imune à sedução do fascismo travestido de boas intenções.

Ron Jones - proibido de lecionar em escolas públicas, o
professor se arrepende de ter colocado em risco a vida dos alunos.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Dois assaltos



     Na última terça-feira fui assaltado. É o segundo assalto a mão armada em menos de um ano.
     Este blog não se presta, em regra, a reminiscências pessoais nem é local de terapia em grupo, mas há algo a ser dito sobre esses dois eventos que tem relação direta com muito do que escrevo por aqui. Explico-me.
     Primeiro assalto: foi logo depois do almoço, em plena luz do dia, nos Jardins. Estava próximo à delegacia, onde cheguei em menos de 20 minutos. Contei o ocorrido e acrescentei que o assaltante, armado, ainda poderia estar nos Jardins, talvez assaltando outras pessoas. A reação da polícia foi me pedir, educadamente, para aguardar numa sala de espera, enquanto atendiam uma senhora bem vestida que estava discutindo com o genro. Fiquei quase uma hora diante de uma televisão, me atualizado sobre um reality show qualquer (minha memória, caridosamente, já deletou qual era). Só consegui fazer o boletim de ocorrência no dia seguinte.
     Segundo assalto: foi às 18h20, também com o emprego de uma arma. A polícia conseguiu entrar em contato comigo cerca de três horas depois. Haviam pego os assaltantes. Meu celular foi recuperado. Meus documentos, não.
     Na delegacia, fiquei sabendo que os assaltantes eram três (apenas dois haviam me abordado) - um menor de idade (17 anos) e dois maiores. A polícia apreendeu com eles alguns bens (dentre eles meu celular) e uma arma de brinquedo. O menor, como é comum nesses casos, assumiu que havia roubado sozinho os bens. A polícia contatou a dona de outro celular, que afirmou que não iria à delegacia reconhecer ninguém. Eu só consegui falar com os policiais ao chegar à delegacia, por volta de 23h30. Tentei antes, por telefone, sem sucesso. Fui então informado que o menor havia sido encaminhado à Fundação Casa, pois havia um mandado de busca e apreensão contra ele. Como a primeira vítima se recusou a ir à delegacia e a polícia não conseguiu falar comigo imediatamente, os dois maiores foram soltos - embora, segundo me disseram, ambos tivessem passagem por roubo.
     Duas considerações sobre esses fatos.
     Primeira: ao contrário do que alguns podem imaginar, tudo o que já escrevi sobre direitos humanos, sistema carcerário e redução da maioridade penal permanece absolutamente inalterado. Pela mais óbvia das razões: a lógica - contaminada pelo sentimento - da vítima em relação aos seus agressores não serve para a análise racional (e impessoal) das políticas públicas. Posso garantir que meus sentimentos em relação aos criminosos que me assaltaram são pouco generosos. Isso é uma coisa. Outra, bem diferente, é a análise racional que eu faço da criminalidade urbana e os caminhos que reputo adequados para amenizar (solucionar me parece impossível, na sociedade brutal em que vivemos - brutalidade no sentido mais amplo da palavra, entenda-se bem) os gravíssimos problemas da criminalidade urbana e da violência.
     As ideias que defendo em textos como Tribunais paralelos, Defender a lei não é defender bandidos, Alô, criançada, a polícia chegou e E agora, José? E agora, você?, as ideias que defendo em aulas, debates, palestras, conversas e jantares permanecem as mesmas. A bem da verdade, embora traumáticos, esses assaltos antes confirmam do que refutam tudo o que tenho defendido nos meus textos.
     No primeiro assalto, se a polícia tivesse considerado o assalto mais relevante do que a briga da senhora com o genro, talvez o criminoso tivesse sido capturado. Faltou vontade e competência. Simples assim.
     O segundo assalto foi ainda mais emblemático da incompetência e da ineficácia sistêmicas. Os bandidos foram presos por volta das 21h30, pelo que fui informado. Cheguei à delegacia duas horas depois. Acredito que meu depoimento teria sido mais do que suficiente para que os maiores de idade ficassem presos - afinal, eu diria à polícia que havia dois assaltantes, em lugar distinto do apontado pelo menor, e os três portavam o celular que me fora roubado. Apenas o menor permaneceu preso. Imagino que os dois maiores tenham voltado exatamente para o local onde fui roubado, e posso apostar que já assaltaram outras pessoas desde então. Fui assaltado praticamente na porta do trabalho, o que significa que posso ser roubado novamente pelas mesmas pessoas amanhã ou na semana que vem.
     As falhas não são individuais, são sistêmicas. Há bons e maus policiais, investigadores e delegados, gente dedicada e gente preguiçosa, como em todas as outras profissões. Mas o sistema é inegavelmente ineficiente, e não se restringe às autoridades policiais (cuja baixa remuneração também contribui para agravar o quadro). Em 2001, o STJ cancelou a Súmula 174, segundo a qual o uso de arma de brinquedo bastava para o aumento da pena no crime de roubo. Não me parece ser necessário muito bom senso para se concluir que, sob a mira de um revólver, a intimidação é a mesma, seja ele verdadeiro ou não. A ineficiência permeia todos os escalões do sistema.
     Daí porque reduzir a maioridade penal, endurecer as penas ou tornar as condições carcerárias (ainda) mais desumanas - enfim, adotar uma postura medieval e bárbara no trato com a criminalidade - não vai adiantar nada. Vai servir apenas para acirrar a guerra urbana em que vivemos.
     Em vez de bradar por vingança e se deliciar com o sofrimento dos detentos nas masmorras do nosso sistema penitenciário - verdadeiras fábricas de monstros, que aceitamos passivamente para depois reclamarmos da brutalidade que nos é devolvida - deveríamos exigir, simplesmente, que as leis que já existem fossem cumpridas de forma eficiente. Eu não gostaria que os sujeitos que me assaltaram fossem torturados, espancados e mortos. Mas gostaria muito que tivessem sido presos, julgados e condenados pelo roubo, cuja pena é de 4 a 10 anos. A meu ver, seria uma punição justa.
     Então, aprimorar o sistema já existente e combater suas falhas me parece mais eficaz do que apoiar a pena de morte informal nas periferias ou berrar, irracionalmente, por mudanças na lei que não melhorarão a situação. Nunca acreditei, e continuo a não acreditar, em combate à impunidade ao arrepio da lei (o que significa apenas substituir uma impunidade por outra). É a certeza da punição, não sua dureza, que inibe o crime. Não adianta nada endurecer o sistema se ele continuar ineficiente.
     E se me aferro à racionalidade e não permito que esses episódios violentos, perigosos e assustadores alterem minha visão de mundo, não é porque defendo bandidos ou gosto deles. Ajo assim porque ceder ao ódio significaria me colocar permanentemente no papel de vítima do assalto, significaria aceitar esse papel e resignar-me, amedrontado e ressentido, ao lugar onde fui colocado pelo assaltante naquele momento específico. Seria permitir que aquele momento se perpetuasse e moldasse minha vida, meu comportamento e minha visão de mundo daqui para frente. Seria, enfim, atribuir ao(s) bandido(s) o poder de determinar quem eu sou e onde eu devo ficar.
     Não pretendo dar esse poder a criminoso algum.