Lúcio, o "Charles Bronson de Itaquera": bandido bom é bandido morto. |
“A minha mãe de criação foi vítima de latrocínio. Na época eu
tinha de 16 para 17 anos e tentei algumas vezes visitar o sujeito, um deles foi
preso, na época no DEIC. Sinceramente, a minha intenção era matar ele lá
dentro. Eu ia matá-lo, você não tenha dúvida, meu intuito era pegar ele. Não
vou te falar que sou um gênio, mas a gente assiste alguns filmes, você tem
algumas ideias, e eu assisti a um filme, tive um ideia lá – e eu fiz. Era um
faroeste que tinha uma bíblia e um revólver, e aquilo me inspirou. Eu fiz.
Arrumei uma arma, comprei, e fui no DEIC pra matar o cara. E funcionou, até
cinco metros da cela dele. Eu sentia o gosto da vingança. Aí o tira tava saindo
e me reconheceu. Frustrou meu plano, quase acabei ficando preso, mas como o
delegado que atendeu a ocorrência da minha mãe tava lá: ‘Já que você tanto quer
caçar bandido, por que não entra pra polícia?’ – e aquilo, eu falei ‘esse
delegado tem razão! Vou ser polícia. E bandido eu vou caçar’. E cacei, durante
25 anos. Cacei. Todos que eu vi eu cacei. O que eu deveria e mais por alguém.
Eu nunca deixei a desejar, graças a Deus.”
Esse depoimento, dado pelo
ex-policial Lúcio, abre o documentário Jesus no Mundo Maravilha (e outras histórias da Polícia Brasileira), de Newton Cannito, que se debruça sobre o cotidiano de
três policiais expulsos da corporação.
Lúcio, o “Charles Bronson de
Itaquera”, afirma, sem o menor constrangimento, ter matado “mais de 80 e menos 100
bandidos”. Não demonstra qualquer arrependimento por essas mortes e, ao longo
do documentário, trata de temas como a tortura e homicídio de marginais com
leveza e bom humor.
Jesus, deprimido por causa da exoneração, chegou a tentar o suicídio. |
Jesus, outro policial expulso
da corporação, vive deprimido porque o militarismo é o centro da sua
existência. A depressão o levou a tentar o suicídio. Ele não entende por que
foi exonerado, e luta na Justiça para ser reintegrado à polícia. Enquanto isso
não acontece, trabalha como segurança em vários locais, dentre os quais o Mundo
Maravilha, o parque de diversões que dá nome ao filme.
O terceiro policial, Pereira,
tornou-se pastor evangélico após cumprir pena e consegue enxergar a fragilidade
moral do papel de matador que assumiu antes de ser preso.
Paralelamente a essas três
histórias, um casal que teve o filho assassinado por um policial (segundo a
mãe, por ser negro) tenta conviver com a dor da ausência e com a luta
para que o matador de seu filho seja preso.
Completando o quadro, o
Palhaço Maravilha, uma presença felliniana que perambula pelo parque enquanto o
documentário é feito, transmite uma imagem de inocência quase infantil, até
revelar, em determinado momento, uma ambição tão ingênua quanto oportunista.
Essas personagens seguem seus
próprios caminhos ao longo do documentário, rumo a um encontro difícil que,
embora constrangedor, não traz qualquer espécie de redenção ou aprendizado aos
envolvidos. Confrontados com as palavras severas e o olhar duro dos pais do
jovem assassinado, os ex-policiais sentem o momentâneo desconforto de enxergar
o marginal, o bandido, o outro, não como um alvo, mas como um ser humano.
Mas essa fugaz colisão de
mundos não gera nenhuma explosão. Os pais que perderam o filho não passarão a
entender melhor o mundo dos ex-policiais, que, por sua vez, não deixarão de ver
a “bandidagem” como escória a ser eliminada. No incômodo encontro produzido por
Cannito, ao qual não faltaram os “representantes dos direitos humanos” – cujo
discurso, tão correto quanto vazio, não alcança as realidades dos envolvidos
nas tragédias, sejam as vítimas ou os algozes – não há qualquer troca
verdadeira, além do curto momento de amargura e constrangimento que, fica bem
claro, não passará disso – um momento.
Que talvez tenha repercutido
mais profundamente em uma única pessoa – o hoje pastor Pereira, que, ao ouvir
do pai do jovem morto: “Não leve a mal,
não, mas eu sei lá por que você está com essa bíblia hoje aqui? De repente você
cometeu um erro grave e se arrependeu”, contorce o rosto e baixa os olhos,
no que é provavelmente o momento de maior humanidade de todo o filme.
Cannito transmite essa
incomunicabilidade, em que todos falam, mas ninguém parece disposto a ouvir,
sobrepondo às palavras ora uma sonata de Mozart, ora a abertura da ópera Guilherme Tell, de Rossini. A ironia,
por sinal, é a linha condutora da narrativa, e a dissonância entre o humor da
forma e a gravidade do conteúdo gera uma intencional sensação de perplexidade.
A opção de narrar a quase totalidade da história num parque de diversões pobre
e decadente fortalece a sensação de irrealidade.
Um filme indispensável. |
Cannito explica que usou o
humor porque queria despertar o choque, porque a forma do drama social está tão
desgastada que perdeu o impacto, e que “para
revelar novamente essa realidade cruel era preciso mostrá-la em uma nova forma”
(leia a entrevista na íntegra aqui). Sem dúvida, seu objetivo foi alcançado.
“A polícia perdeu a moral totalmente, tudo devido às emissoras de
televisão. Ocorrência policial não pode ser filmada. Na nossa época nós
impúnhamos moral e ninguém falava nada para nós”, afirma um policial aposentado, defensor
enfático da pena de morte e dos esquadrões da morte (enquanto o filme mostra
cenas de tortura e abuso policial na Favela Naval, em Diadema, registradas em 1997).
“Foram 25 anos de guerra honesta, e eu nunca desisti”, diz Lúcio. E resume numa frase a convicção de muitos, não só policiais: “Hoje,
infelizmente, o Estado não quer que você faça nada mais do que o que está na
lei. Por isso que aumenta a criminalidade”.
Feito em 2007, Jesus no Mundo Maravilha é indispensável
para quem quer conhecer melhor a mentalidade de uma parte dos membros da
polícia, que enxergam a lei não como fundamento, e sim como empecilho à sua
atuação. Claro que nem todos pensam assim. Mas o universo mostrado no filme
retrata a visão de mundo de muita gente – policiais e não policiais. É o que
basta para confirmar a relevância da obra.
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