Spielberg imaginou, o Brasil transformou em realidade. |
Na verdade ninguém sabe se
eles são mesmo chineses.
São
dois casais de orientais que estão detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, em
Guarulhos, sem poder entrar nem sair do Brasil. A Polícia Federal, embora
desconfie que sejam chineses, ainda não conseguiu apurar suas nacionalidades.
Eles entraram no Brasil com passaportes coreanos falsos, e se recusam a dizer
de onde vieram. Embora tenham sido presos ao chegar ao Galeão, em um voo
doméstico vindo de Cumbica, a polícia não conseguiu identificar, pelos nomes
constantes dos passaportes que carregavam, em que voo chegaram ao Brasil. É
possível que tenham jogado fora os passaportes com que viajaram após passar pela alfândega.
Como
a polícia não sabe de onde eles vieram, não tem como mandá-los de volta. Os
quatro estão há três meses numa sala reservada do aeroporto. Por lei, a
responsabilidade de mantê-los é da companhia aérea. Como a polícia não foi
sequer capaz de identificar em que voo eles chegaram ao Brasil, a manutenção
dos viajantes misteriosos ficou a cargo da Gol, que os levou de Cumbica ao
Galeão. Além da alimentação, a Gol ainda paga um segurança para monitorá-los.
Esses
fatos já são mais do que suficientes para que se constate o absurdo da
situação. A incompetência da Polícia Federal, agravada pela greve iniciada em 7
de agosto, é tamanha que três meses não foram suficientes para descobrir de
onde os imigrantes ilegais vieram, embora estejam sob vigilância constante. E atribuir
à Gol a responsabilidade pela manutenção dos quatro em razão de um voo
doméstico, só porque houve incompetência para descobrir o voo internacional no
qual chegaram ao Brasil, é um descalabro.
Infelizmente o surrealismo da situação não para por aí.
Os
quatro são representados pelo advogado Luiz Fernando Nicolelis, que, segundo a
Folha de São Paulo, já impetrou três habeas
corpus, todos indeferidos, inclusive pelas instâncias superiores do
Judiciário. A justificativa para os indeferimentos é patética: eles não estão
presos. A situação alcançou tamanho grau de insanidade que o advogado vem
pedindo que a Polícia Federal prenda
seus clientes para que ele possa impetrar novo habeas corpus.
Chegamos,
portanto, a uma situação tão tresloucada que o advogado precisa pedir à polícia
que prenda seus clientes, para só depois conseguir adotar as providências
necessárias para soltá-los.
É
claro que qualquer um identifica esses fatos com aquele filme preguiçoso do
Spielberg, O Terminal, em que a
personagem de Tom Hanks vive uma situação muito parecida com a dos orientais
encurralados em Cumbica.
Mas
há uma outra situação, infelizmente bastante comum no passado brasileiro, muito
mais parecida com a dos viajantes misteriosos.
No
período da ditadura, era comum que as pessoas fossem presas sem acusação formal,
e que ficassem encarceradas por períodos indeterminados sem saber sequer a razão de
suas prisões. Nos momentos mais deploráveis do período, não era raro que juízes
e tribunais – o Supremo Tribunal Federal inclusive – voltassem as costas aos
injustamente presos, valendo-se de argumentos sem nenhum sentido.
É
exatamente isso o que está acontecendo com os moradores involuntários de
Cumbica.
É
inadmissível que essas quatro pessoas fiquem confinadas numa sala reservada
por três meses sem que haja acusação formal contra elas. A Polícia Federal
afirma que o porte de documento falso não é crime, apenas o uso. Então, se não
há indício de crime, por que os quatro ainda estão detidos em Cumbica? Ou a
polícia arruma um crime para acusá-los, ou deve soltá-los. Se eles foram
detidos no Galeão e não estavam usando os passaportes falsos, sua situação tem
que ser vista como a de qualquer turista estrangeiro que tenha perdido os documentos (num assalto, por exemplo).
Aos
juízes e desembargadores que indeferiram os pedidos de habeas corpus porque os estrangeiros “não estão presos”, sugiro que
passem três meses em uma sala reservada do aeroporto, vigiados por um
segurança, sem poder ir a lugar algum. Encarceramento é encarceramento.
Privação de liberdade é privação de liberdade. E o habeas corpus existe para proteger a liberdade, que é um direito,
não um amontoado de palavras espalhadas por textos legais. Um magistrado
incapaz de enxergar privação de liberdade nessa situação deveria procurar outro
emprego.
O
mais grave é que essa prisão (sim, é esta a palavra exata) ilegal está sendo
bancada por uma empresa privada, a Gol, que, embora nada tenha a ver com a
incompetência da Polícia Federal, já gastou mais de R$ 30.000,00 com a
manutenção dos quatro moradores de Cumbica.
Diga o que quiser a Polícia Federal, o fato é que há quatro estrangeiros detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, sem nenhuma acusação formal. E o Poder Judiciário, embora ciente dessa barbaridade, não determina que sejam libertados, apesar dos reiterados pedidos do advogado deles.
Enquanto
a Polícia Federal não se decidir em relação ao cometimento ou não de crime, e o
Poder Judiciário mantiver os braços cruzados e os olhos fechados diante dessa
violação absurda das leis brasileiras, da Constituição e dos direitos desses
quatro estrangeiros, o Brasil pode se considerar de volta aos anos de chumbo. O
tratamento dado pelo poder público a essas quatro pessoas, estrangeiras ou não,
criminosas ou não, não difere em nada do tratamento dado aos presos políticos
durante a ditadura.
Estarão
nossas autoridades com saudade daqueles tempos?
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