segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Quatro chineses e um terminal



            
Spielberg imaginou, o Brasil transformou em realidade.

              Na verdade ninguém sabe se eles são mesmo chineses.
            São dois casais de orientais que estão detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, sem poder entrar nem sair do Brasil. A Polícia Federal, embora desconfie que sejam chineses, ainda não conseguiu apurar suas nacionalidades. Eles entraram no Brasil com passaportes coreanos falsos, e se recusam a dizer de onde vieram. Embora tenham sido presos ao chegar ao Galeão, em um voo doméstico vindo de Cumbica, a polícia não conseguiu identificar, pelos nomes constantes dos passaportes que carregavam, em que voo chegaram ao Brasil. É possível que tenham jogado fora os passaportes com que viajaram após passar pela alfândega.
            Como a polícia não sabe de onde eles vieram, não tem como mandá-los de volta. Os quatro estão há três meses numa sala reservada do aeroporto. Por lei, a responsabilidade de mantê-los é da companhia aérea. Como a polícia não foi sequer capaz de identificar em que voo eles chegaram ao Brasil, a manutenção dos viajantes misteriosos ficou a cargo da Gol, que os levou de Cumbica ao Galeão. Além da alimentação, a Gol ainda paga um segurança para monitorá-los.
            Esses fatos já são mais do que suficientes para que se constate o absurdo da situação. A incompetência da Polícia Federal, agravada pela greve iniciada em 7 de agosto, é tamanha que três meses não foram suficientes para descobrir de onde os imigrantes ilegais vieram, embora estejam sob vigilância constante. E atribuir à Gol a responsabilidade pela manutenção dos quatro em razão de um voo doméstico, só porque houve incompetência para descobrir o voo internacional no qual chegaram ao Brasil, é um descalabro.
            Infelizmente o surrealismo da situação não para por aí.
            Os quatro são representados pelo advogado Luiz Fernando Nicolelis, que, segundo a Folha de São Paulo, já impetrou três habeas corpus, todos indeferidos, inclusive pelas instâncias superiores do Judiciário. A justificativa para os indeferimentos é patética: eles não estão presos. A situação alcançou tamanho grau de insanidade que o advogado vem pedindo que a Polícia Federal prenda seus clientes para que ele possa impetrar novo habeas corpus.
            Chegamos, portanto, a uma situação tão tresloucada que o advogado precisa pedir à polícia que prenda seus clientes, para só depois conseguir adotar as providências necessárias para soltá-los.
            É claro que qualquer um identifica esses fatos com aquele filme preguiçoso do Spielberg, O Terminal, em que a personagem de Tom Hanks vive uma situação muito parecida com a dos orientais encurralados em Cumbica.
            Mas há uma outra situação, infelizmente bastante comum no passado brasileiro, muito mais parecida com a dos viajantes misteriosos.
            No período da ditadura, era comum que as pessoas fossem presas sem acusação formal, e que ficassem encarceradas por períodos indeterminados sem saber sequer a razão de suas prisões. Nos momentos mais deploráveis do período, não era raro que juízes e tribunais – o Supremo Tribunal Federal inclusive – voltassem as costas aos injustamente presos, valendo-se de argumentos sem nenhum sentido.
            É exatamente isso o que está acontecendo com os moradores involuntários de Cumbica.
            É inadmissível que essas quatro pessoas fiquem confinadas numa sala reservada por três meses sem que haja acusação formal contra elas. A Polícia Federal afirma que o porte de documento falso não é crime, apenas o uso. Então, se não há indício de crime, por que os quatro ainda estão detidos em Cumbica? Ou a polícia arruma um crime para acusá-los, ou deve soltá-los. Se eles foram detidos no Galeão e não estavam usando os passaportes falsos, sua situação tem que ser vista como a de qualquer turista estrangeiro que tenha perdido os documentos (num assalto, por exemplo).
            Aos juízes e desembargadores que indeferiram os pedidos de habeas corpus porque os estrangeiros “não estão presos”, sugiro que passem três meses em uma sala reservada do aeroporto, vigiados por um segurança, sem poder ir a lugar algum. Encarceramento é encarceramento. Privação de liberdade é privação de liberdade. E o habeas corpus existe para proteger a liberdade, que é um direito, não um amontoado de palavras espalhadas por textos legais. Um magistrado incapaz de enxergar privação de liberdade nessa situação deveria procurar outro emprego.
            O mais grave é que essa prisão (sim, é esta a palavra exata) ilegal está sendo bancada por uma empresa privada, a Gol, que, embora nada tenha a ver com a incompetência da Polícia Federal, já gastou mais de R$ 30.000,00 com a manutenção dos quatro moradores de Cumbica.
            Diga o que quiser a Polícia Federal, o fato é que há quatro estrangeiros detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, sem nenhuma acusação formal. E o Poder Judiciário, embora ciente dessa barbaridade, não determina que sejam libertados, apesar dos reiterados pedidos do advogado deles.
            Enquanto a Polícia Federal não se decidir em relação ao cometimento ou não de crime, e o Poder Judiciário mantiver os braços cruzados e os olhos fechados diante dessa violação absurda das leis brasileiras, da Constituição e dos direitos desses quatro estrangeiros, o Brasil pode se considerar de volta aos anos de chumbo. O tratamento dado pelo poder público a essas quatro pessoas, estrangeiras ou não, criminosas ou não, não difere em nada do tratamento dado aos presos políticos durante a ditadura.
            Estarão nossas autoridades com saudade daqueles tempos?



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