quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Ser de direita é um luxo


Quem precisa do Estado fica à esquerda.

Vamos imaginar, apenas por um momento, que aquelas categorias de "direita" e "esquerda" ainda são adotadas pela classe política brasileira.
         Para não nos perdemos em detalhes, adotemos como premissa geral que ser de direita significa optar pelo neoliberalismo, pelo Estado mínimo, pelo laissez faire, laissez passer, e ser de esquerda significa querer um Estado mais atuante, mais forte, mais presente na solução de problemas sociais da vida privada que levam à manutenção do status quo e à desigualdade social. Não é só isso, evidentemente, mas foquemos nesse aspecto.
Sob essa ótica, temos de reconhecer que a atuação do Estado para reduzir as desigualdades sociais, o desemprego e a pobreza só interessa às vítimas da desigualdade, aos desempregados e aos pobres. Em outras palavras, quem já tem um bom emprego, casa, patrimônio, plano de saúde e educação paga (ou condições para obter tudo isso por conta própria) não precisa do Estado. E se não precisa do Estado para nada, pode, perfeitamente, defender a teoria de que o Estado deve ser mínimo e interferir o menos possível na vida privada da sociedade. Por outro lado, quem não tem nada disso, nem encontra na sociedade condições de alcançar por conta própria esses benefícios, precisa do Estado e – pelo menos em tese – compreende (porque sente na pele) a sua relevância para a superação das desigualdades.
Conclusão: ser de direita é um luxo. É como ter o último iphone, trocar de carro a cada seis meses ou viajar para a Europa três vezes por ano. Ser de direita é para quem pode, não para quem quer.
Daí sucede que, com a evolução da humanidade e a superação das mazelas sociais, no futuro todos seremos de direita. Quando ninguém mais precisar do Estado para obter moradia, saúde, educação, alimentação, emprego etc., quando o Estado retomar seu perfil liberal, não haverá mais ninguém de esquerda, e todos nos regozijaremos entre brindes de Romanée-Conti, lembrando, sem saudade nenhuma, de quando ainda havia gente de esquerda no mundo.
Até que isso ocorra, continuaremos a testemunhar a ascensão do novo direitista, a versão anos 2000 do “novo rico”. Como a socialite que comenta com a amiga que “enfim a empresa do Oswaldinho decolou e saímos daquele apartamento minúsculo, horroroso. Agora estamos bem e finalmente – finalmente! – entramos para a Nova Direita. Um alívio, querida, um alívio!”
Para o novo direitista, é absurdo e ilógico que o Estado dê moradia e saúde de graça (“o Oswaldinho se esforçou tanto, agora o vagabundo quer ganhar isso na moleza?”). Faz sentido. Depois de tanto esforço para alcançar um status que lhe permita o luxo de ser de direita, nada pior do que o pavor de retroceder e ter de “recair na esquerda”, e precisar pensar no que o Estado precisa fazer para reduzir as desigualdades.
No futuro, ser de esquerda será démodé. Será como a gravata de teclas de piano ou a macarena, um anacronismo do qual os neodireitistas caçoarão.  Nenhum anjo torto procurará um poeta para lhe dizer: vai ser gauche na vida. Ser de esquerda será vintage. Será, na melhor das hipóteses, uma extravagância divertida e (principalmente) inofensiva. 
É evidente que no futuro neodireitista os pobres não desaparecerão. Afinal, alguém precisa preparar a mesa, estender as toalhas, lavar os pratos e talheres! Mas serão muito bem remunerados para isso – os neodireitistas mais otimistas preveem índices salariais estratosféricos, na casa dos 5% dos salários dos patrões – e, o que é mais importante, receberão, desde pequenos, a adequada educação da cartilha neodireitista, aprendendo que o mundo é assim mesmo e que cada um tem o seu lugar, sendo todos, é claro, igualmente importantes no desempenho de suas funções sociais.
É certo, também, que um ou outro desavisado pode não enxergar as benesses de um mundo tão evoluído. Mas isso não será problema para o projeto neodireitista. À medida que o Estado se enfraquecer, as forças policiais, destinadas a manter a calma e a ordem, serão fortalecidas. Eventuais tentativas de perturbar a paz social serão reprimidas com o rigor que a situação exigir.
Mas tudo isso pressupõe a superação da pobreza e das desigualdades, que precisará da colaboração do Estado. Expoentes do pensamento neodireitista já estão elaborando um Manifesto Capitalista que demonstrará que a “ditadura da burguesia” é uma consequência inevitável da história, que levará ao encolhimento do Estado e, quem sabe, à sua supressão.
Enquanto o sonho dourado neodireitista não se torna realidade para todos, temos de admitir que apenas um esquizofrênico conseguiria ser de direita sem ter garantidos seus direitos (à saúde, à moradia, ao pleno emprego etc.). Por outro lado, apenas um ingrato alcançaria todas essas benesses e não migraria alegremente para a direita.
Mas vivemos no Brasil e, como já dizia Tim Maia, “o Brasil é o único país onde, além de puta gozar, cafetão ter ciúme e traficante ser viciado, pobre é de direita”. Por outro lado, felizmente, há muita gente ingrata no Brasil: gente que estuda, se prepara, ascende na vida e mesmo assim não se “endireita”. Talvez isso ocorra porque, quanto mais se estuda, se investiga e se reflete, menos o simplismo burro das direitas convence. Quanto mais se pensa, menos razoável parece o raciocínio (também típico do neodireitismo) segundo o qual se EU estou bem, VOCÊ é um problema só seu.
Pois é, talvez hoje em dia ser de direita seja mesmo um luxo. Mas não ser um completo idiota é mais.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Serra abaixo




            Evidentemente, o resultado das eleições municipais dá espaço às mais diversas interpretações. Esta é só mais uma.
A eleição de Fernando Haddad para a prefeitura de São Paulo é marcada antes pela derrota do que pela vitória. Em outras palavras, houve mais uma derrota de José Serra do que propriamente uma vitória de Fernando Haddad.
Ao contrário do que parte da imprensa tem afirmado, a vitória de Haddad não representa uma vitória de Lula – que, embora tenha emplacado seu candidato em São Paulo, não conseguiu eleger seus apadrinhados em inúmeras outras cidades de cujo segundo turno participou ativamente.
No segundo turno, Lula participou de eventos em 12 cidades. Em cinco destas – São Paulo, Salvador, Cuiabá, Campinas e Taubaté – os candidatos do PT chegaram ao segundo turno em desvantagem em relação ao concorrente. Apenas em São Paulo – o principal município do estado que é o principal reduto do PSDB há décadas – a força de Lula foi suficiente para virar o jogo. Em todas as outras o PT perdeu.
No nordeste, região em que o carisma de Lula tem mais força, o PT sofreu derrotas significativas. Em Salvador, a presença de Lula não foi suficiente para evitar a vitória de ACM Neto. Em Fortaleza, o candidato do PT, Elmano de Freitas, que iniciou o segundo turno liderando as pesquisas, foi derrotado por Roberto Cláudio.
Também em Diadema, onde a força do PT sempre foi esmagadora em razão do passado sindical de Lula, o petista Mario Reali viu o jogo virar e, embora tenha iniciado o segundo turno como favorito, perdeu para o desconhecido Lauro Michels, do PV.
Portanto, atribuir a vitória em São Paulo à presença de Lula no segundo turno não me parece uma interpretação correta dos fatos.
Também não vi na campanha de Haddad nenhuma proposta tão sedutora ou relevante que justificasse a derrubada de Serra, tido como favorito desde o começo das eleições, numa cidade historicamente simpática ao PSDB.
A única conclusão que me parece possível é a de que o principal cabo eleitoral de Haddad se chama José Serra. E por isso afirmo que a eleição em São Paulo foi marcada antes pelo fracasso da campanha tucana do que pelo sucesso da campanha petista.
Serra perdeu a eleição presidencial em 2010 para uma completa desconhecida do grande público. Um dos principais erros estratégicos de sua campanha foi tentar vincular sua imagem à de Lula, esquecendo-se do óbvio fato de que Lula tinha sua própria candidata.
Talvez abalado por isso, de 2010 a 2012 Serra “endireitou”, no pior sentido da palavra. Político de formação centro-esquerdista, nos últimos dois anos Serra começou a flertar cada vez mais abertamente com a direita e o conservadorismo. Desde as batidas discussões sobre aborto à atual aproximação com Silas Malafaia, passando pelo endosso à fracassada “tática de guerra” que a polícia paulista tem adotado para enfrentar a criminalidade, Serra tem se afastado de seu passado e adotado um novo perfil, mais conservador e sectário.
O auge do equívoco estratégico deu-se na última fase da campanha. Serra, contrariando a opinião de seus marqueteiros e do próprio PSDB, insistiu na tática dos ataques pessoais, que as pesquisas já cansaram de demonstrar que não funciona em São Paulo. Nas últimas semanas, eram poucos os programas políticos de Serra que mostravam propostas efetivas, predominando os ataques a Haddad. A polêmica com o kit gay e os incessantes atritos com jornalistas não fizeram mais do que piorar uma situação que já estava ruim. A teimosia e a recusa em trabalhar em grupo já são péssimas para um treinador de futebol. Para um candidato em queda livre, são fatais.
É claro que seria ingenuidade supor que a derrota de Serra se deve a apenas um fator. A influência de Lula, o bom rumo da economia nacional, a “zebra” Russomano, o fato de os marqueteiros começarem a notar a existência (e a relevância política) das classes mais baixas, a atual guerra civil entre policiais e bandidos, a rejeição de Kassab, o mandato interrompido na metade, tudo isso contribuiu, em maior ou menor medida, para o resultado final. Mas ignorar a relevância da estratégia suicida de Serra ao longo da campanha seria um erro típico de quem não aprende com as próprias trapalhadas. Um erro, enfim, típico de Serra, em sua versão atual.
Depois dessa derrota, haverá futuro político para Serra? Se mantida sua atual orientação política, tudo sugere que não. Mas resta a esperança de que José Serra reencontre seu eixo político e as raízes ideológicas que o tornaram uma figura tão relevante para a política brasileira. Nas recentes palavras do jurista Pedro Serrano: “Serra é um grande quadro da política nacional, que em muito ajudou na reconstrução democrática. É uma tristeza ver ele neste lodo direitista e obscurantista de Malafaias e etc. Minha esperança é que Serra não morra pra política, ao contrário, que nela sobreviva, que faça autocrítica deste seu erro e que mesmo na oposição recupere sua dignidade democrática e volte a contribuir com a consolidação da democracia e exerça seu poder de oposição e crítica sem precisar apelar para o obscurantismo pseudo-religioso direitista.”
Sábias e ponderadas palavras. Também torço para que Serra não desapareça politicamente, para que reencontre seu passado e volte a ser o político que, anos atrás, tanto contribuiu para que o país melhorasse e se tornasse mais democrático. Depende exclusivamente dele.
São Paulo já deu a Serra a resposta que ele precisava ouvir. Agora, volta-se para Haddad, que tem a dura missão de administrar a locomotiva louca e desenfreada que é esta cidade. Boa sorte a ele, pelo bem de todos nós.



sábado, 27 de outubro de 2012

Natsu e o hímen







            Não sei se ainda há algo a ser dito sobre Ingrid Migliorini, a catarinense de 20 anos que resolveu leiloar a própria virgindade. Em 25 de outubro o leilão foi encerrado, e o hímen da moça alcançou a cifra de US$ 780 mil (R$ 1,58 milhão).
            Segundo o UOL, Ingrid “disse ‘entender a monotonia na vida das pessoas’ e atribui a isso o interesse sobre ‘sua vida agitada’.”
            Que vida agitada? Não li nada sobre drogas, bebedeiras, baladas enlouquecidas, orgias selvagens. Virgens românticas (como Ingrid se define) não costumam ter vidas agitadas. Vida agitada tem a Paris Hilton! O interesse que Ingrid desperta não tem nada a ver com sua vida, e sim com a opção de leiloar sua “pureza”.
            Muito já se disse e se escreveu sobre o tal documentário, “Virgins Wanted”, que teria motivado esse leilão; muito já se falou sobre o documentarista, sobre a própria Ingrid e o outro rapaz que também leiloou a virgindade, sobre o arrematante do hímen. Tudo isso já foi dissecado à exaustão. O único aspecto dessa história que não foi bem analisado – e que, curiosamente, me parece o mais interessante – é como um fato tão banal pode despertar tanto interesse do público. Certamente a “vida agitada” da protagonista não é o motivo.
            Ingrid não é a primeira mulher a leiloar a própria virgindade. No passado, as “novas aquisições” dos prostíbulos eram sempre disputadas de forma acirrada pelos clientes habituais. A literatura, o cinema e a televisão têm inúmeras histórias similares.
            E também não é o fato de Ingrid “não precisar disso” que torna a situação atípica. Inúmeras prostitutas “não precisam disso” e ainda assim adotam a prostituição como trabalho – e não há aqui nenhum julgamento sobre essa escolha, cada mulher que faça o que quiser com o próprio corpo.
            É claro, é de prostituição que estamos falando aqui. O fato de a venda da virgindade fazer parte de um “documentário” (nem imagino qual vai ser a tônica desse filme, mas diante do leilão realizado, não espero boa coisa) não altera em nada essa constatação. A alegação de Ingrid de que vai usar o dinheiro para construir “casas populares”, além de ridícula, foi desmentida pelo próprio documentarista. Se ainda há alguma dúvida, o "book" de fotos sensuais colocadas no Facebook para “divulgar o produto” e o uso do "nome de guerra" (Catarina), duas características típicas desse mercado de carne,encerram qualquer discussão a respeito.
               Repito, nenhum julgamento moral na constatação de que se trata de prostituição. Mas tratemos do caso como o que de fato ele é.
            Outros ingredientes despertaram a atenção do público: Oscar Maroni, o ex-dono do Bahamas, afirmou há alguns dias que Ingrid ofereceu a virgindade a ele há dois anos, por R$ 100 mil. Ela nega, embora afirme que, aos 17 anos, eles trocaram telefones e se falaram algumas vezes. Não fica muito claro por que uma menina de 17 anos trocaria telefonemas com Oscar Maroni, mas enfim...
            O fato é que, por mais que se tente apimentar a história, ela continua a ser absolutamente tediosa e desinteressante. Que importa para o mundo a virgindade da moça? Que interesse pode despertar um imbecil qualquer - o apelido divulgado é Natsu - que tenha se disposto a desperdiçar R$ 1,5 milhão no que provavelmente vai ser o ato sexual mais chato da sua vida?
            Pelo que a imprensa divulgou, o defloramento vai ocorrer em espaço aéreo internacional, para evitar problemas legais. Não pode beijo na boca, usar nenhum brinquedo sexual nem realizar qualquer fantasia. Segundo a própria Ingrid em entrevista à Folha de São Paulo, “só pode tirar a virgindade, nada mais”.
            Em outras palavras, a rigor, nem de sexo estamos tratando. Essa perda da virgindade será um negócio (literalmente) mecânico e desprovido de qualquer tipo de envolvimento. Chegar, dar um oi, romper o hímen da moça e ir embora.
            É prostituição sim, claro, mas da pior espécie. A prostituta, que não domina seu ofício, não se esforçará para agradar o cliente. Este não terá sequer a ilusão do misto de afeto e safadeza que tantos homens procuram nas profissionais. A relação se dará entre Natsu e o hímen, não entre o cliente e a mulher. Ingrid estará presente apenas de forma incidental.
            Como Shylock trocou 3 mil ducados por 453 gramas de carne com Antônio, em O Mercador de Veneza, de Shakespeare, Natsu trocou R$ 1,5 milhão por um pedacinho – bem mais leve – de carne. Levando em consideração a quantidade de prostitutas de luxo que ele poderia contratar por R$ 1,5 milhão, é fácil concluir que ele fez o pior negócio da sua vida.
            Ingrid, por outro lado, fez um belo negócio. Vai virar uma espécie de ícone entre as prostitutas – R$ 1,5 milhão por uma rapidinha, sem beijo na boca nem fantasia? Vai virar mito.
            Imagino que os dias seguintes ao evento não vão ser dos melhores – para Ingrid, que vai ter de viver com o peso da sua escolha e com o julgamento da sociedade, sempre severo nessas situações; para Natsu, que, se tiver o nome verdadeiro divulgado, vai virar piada entre os amigos; para o documentarista, que, embora provavelmente ganhe um bom dinheiro com essa história, vai receber o inevitável estigma do cafetão.
            Em suma, não há nada, absolutamente nada nessa situação que justifique tamanho interesse do público. Um japonês resolve comprar um hímen. Ponto final. E todo um frisson, artigos e artigos na mídia, críticas acirradas, debates apaixonados. Tudo por causa de um pedacinho de carne, menos valorizado pela sociedade a cada dia que passa, e que não deveria despertar a atenção de ninguém.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Um sábado memorável



Universidade São Judas Tadeu, 20.10.2012.
Estado de Direito e Violência Policial


            A previsão era de que o evento começaria às 14h00 e terminaria às 16h00. Começou às 14h30 e terminou às 18h00, para alívio dos seguranças e do técnico de som da universidade, que, desde as 17h00, nos avisavam que precisavam fechar o prédio para prepará-lo para o vestibular do dia seguinte.
            No dia 20 de outubro, sábado passado, promovemos o seminário Estado de Direito e Violência Policial no auditório do subsolo da Universidade São Judas Tadeu, no campus da Mooca. Na mesa, presidida pelo professor Sílvio de Almeida (presidente do Instituto Luiz Gama), estávamos eu, o tenente-coronel Adilson Paes de Souza, o Procurador do Estado Luiz Fernando Roberto e o cientista político Frederico de Almeida. Na plateia, alunos de Direito e de Comunicação Social, além dos convidados.
            Os temas das palestras já davam a tônica do tipo de discussão que estava por vir: Estado de direito, violência estrutural e o pensamento conservador; a educação em direitos humanos na polícia militar; força policial x violência policial: parâmetros da legalidade; o controle social das polícias na transição para a democracia. Temas complexos que suscitam questões de difícil resolução, para as quais não há respostas simples, certas ou erradas. 
Adilson Paes de Souza e
Luiz Fernando Roberto
            A violência é inerente à atividade policial? A partir de que momento a força policial se torna abusiva? As abordagens e batidas são feitas corretamente? A polícia deve ser criticada? O treinamento dos policiais é adequado? A violência social é causa ou consequência da violência policial? O policial é algoz ou tão vítima do sistema quanto o marginal que ele brutaliza? Que expectativas a sociedade tem em relação à polícia e como essas expectativas são respondidas?
            Questões relevantes em qualquer sociedade, mas que se mostram fundamentais diante do momento caótico que vivemos, mergulhados numa verdadeira guerra civil em que policiais e bandidos tombam aos montes, diante de nossos olhos perplexos e assustados.
            Não surgiram respostas, nem era essa a intenção. É bem provável que todos tenham deixado o auditório com mais perguntas do que quando chegaram. Mas sem dúvida foi fornecido muito material para reflexão. Para todos nós. Por nós e pelo público presente, que questionou, argumentou, indagou e dialogou com os palestrantes, enriquecendo muito o debate.
"Vitae necisque potestas":
O poder da vida e da morte.
            A atuação da polícia numa sociedade violenta e desigual como a brasileira, e numa realidade complexa como a de São Paulo, dá espaço, como não poderia deixar de ser, às posturas mais diversas. As ideias mais díspares foram expostas e defendidas, ora com serenidade, ora com paixão. E, sem que percebêssemos, o tempo corria. Até que, diante da crescente angústia dos funcionários da faculdade, o seminário foi encerrado. Nenhum dos presentes queria ir embora. Ainda havia muito a ser discutido – e os debates se estenderam para além do auditório e dos corredores da universidade, já vazios, ganhando os pontos de ônibus, os bancos dos carros, os celulares.
            O mais gratificante de tudo foi ver cerca de 70 alunos de primeiro ano, em pleno sábado à tarde, a menos de duas semanas do início das provas finais do semestre (e, portanto, do ano), presentes, envolvidos, interessados, participantes. Alguns alunos do Direito saíram de outro evento, ocorrido de manhã no campus do Butantã, e correram para a Mooca (nem todos conseguiram almoçar). Um verdadeiro tapa na cara dos cínicos que gostam de repetir o bordão de que a juventude é alienada, não se informa, não participa dos problemas sociais, só pensa em bobagem etc.
À esquerda, o professor Roberto
Coelho, prestigiando o evento.
            Para quem não bota fé nessa nova geração, um conselho: cuidado! Vocês nem imaginam o que vem por aí...
            Ao longo dessa semana, muitos alunos me procuraram, elogiaram o seminário e pediram mais eventos dessa natureza. É claro que terão. O prazer é nosso, rapaziada!
            Aos alunos que estavam presentes – e àqueles (muitos) que, embora não pudessem estar lá, demonstraram interesse e pediram mais – uma palavra final: muito obrigado, meus caros! Quando os chorosos de sempre reclamarem dos jovens alienados que não querem saber de nada na vida, eu, o Sílvio, o Adilson, o Luiz Fernando e o Frederico (além de todos os presentes, dentre os quais o professor Roberto Coelho, que ajudou a planejar e organizar o evento) teremos uma excelente resposta para dar.
               Valeu, moçada!


Silvio de Almeida
Frederico de Almeida


(Obs.: as fotografias foram tiradas e gentilmente cedidas pela Ludmila Siviero, aluna do curso de Rádio e TV.)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Jesus no Mundo Maravilha



Lúcio, o "Charles Bronson de Itaquera":
bandido bom é bandido morto.

        
            “A minha mãe de criação foi vítima de latrocínio. Na época eu tinha de 16 para 17 anos e tentei algumas vezes visitar o sujeito, um deles foi preso, na época no DEIC. Sinceramente, a minha intenção era matar ele lá dentro. Eu ia matá-lo, você não tenha dúvida, meu intuito era pegar ele. Não vou te falar que sou um gênio, mas a gente assiste alguns filmes, você tem algumas ideias, e eu assisti a um filme, tive um ideia lá – e eu fiz. Era um faroeste que tinha uma bíblia e um revólver, e aquilo me inspirou. Eu fiz. Arrumei uma arma, comprei, e fui no DEIC pra matar o cara. E funcionou, até cinco metros da cela dele. Eu sentia o gosto da vingança. Aí o tira tava saindo e me reconheceu. Frustrou meu plano, quase acabei ficando preso, mas como o delegado que atendeu a ocorrência da minha mãe tava lá: ‘Já que você tanto quer caçar bandido, por que não entra pra polícia?’ – e aquilo, eu falei ‘esse delegado tem razão! Vou ser polícia. E bandido eu vou caçar’. E cacei, durante 25 anos. Cacei. Todos que eu vi eu cacei. O que eu deveria e mais por alguém. Eu nunca deixei a desejar, graças a Deus.”

Esse depoimento, dado pelo ex-policial Lúcio, abre o documentário Jesus no Mundo Maravilha (e outras histórias da Polícia Brasileira), de Newton Cannito, que se debruça sobre o cotidiano de três policiais expulsos da corporação.
Lúcio, o “Charles Bronson de Itaquera”, afirma, sem o menor constrangimento, ter matado “mais de 80 e menos 100 bandidos”. Não demonstra qualquer arrependimento por essas mortes e, ao longo do documentário, trata de temas como a tortura e homicídio de marginais com leveza e bom humor.
Jesus, deprimido por causa da exoneração,
chegou a tentar o suicídio.
Jesus, outro policial expulso da corporação, vive deprimido porque o militarismo é o centro da sua existência. A depressão o levou a tentar o suicídio. Ele não entende por que foi exonerado, e luta na Justiça para ser reintegrado à polícia. Enquanto isso não acontece, trabalha como segurança em vários locais, dentre os quais o Mundo Maravilha, o parque de diversões que dá nome ao filme.
O terceiro policial, Pereira, tornou-se pastor evangélico após cumprir pena e consegue enxergar a fragilidade moral do papel de matador que assumiu antes de ser preso.
Paralelamente a essas três histórias, um casal que teve o filho assassinado por um policial (segundo a mãe, por ser negro) tenta conviver com a dor da ausência e com a luta para que o matador de seu filho seja preso.
Completando o quadro, o Palhaço Maravilha, uma presença felliniana que perambula pelo parque enquanto o documentário é feito, transmite uma imagem de inocência quase infantil, até revelar, em determinado momento, uma ambição tão ingênua quanto oportunista.
Essas personagens seguem seus próprios caminhos ao longo do documentário, rumo a um encontro difícil que, embora constrangedor, não traz qualquer espécie de redenção ou aprendizado aos envolvidos. Confrontados com as palavras severas e o olhar duro dos pais do jovem assassinado, os ex-policiais sentem o momentâneo desconforto de enxergar o marginal, o bandido, o outro, não como um alvo, mas como um ser humano.
Mas essa fugaz colisão de mundos não gera nenhuma explosão. Os pais que perderam o filho não passarão a entender melhor o mundo dos ex-policiais, que, por sua vez, não deixarão de ver a “bandidagem” como escória a ser eliminada. No incômodo encontro produzido por Cannito, ao qual não faltaram os “representantes dos direitos humanos” – cujo discurso, tão correto quanto vazio, não alcança as realidades dos envolvidos nas tragédias, sejam as vítimas ou os algozes – não há qualquer troca verdadeira, além do curto momento de amargura e constrangimento que, fica bem claro, não passará disso – um momento.
Que talvez tenha repercutido mais profundamente em uma única pessoa – o hoje pastor Pereira, que, ao ouvir do pai do jovem morto: “Não leve a mal, não, mas eu sei lá por que você está com essa bíblia hoje aqui? De repente você cometeu um erro grave e se arrependeu”, contorce o rosto e baixa os olhos, no que é provavelmente o momento de maior humanidade de todo o filme.
Cannito transmite essa incomunicabilidade, em que todos falam, mas ninguém parece disposto a ouvir, sobrepondo às palavras ora uma sonata de Mozart, ora a abertura da ópera Guilherme Tell, de Rossini. A ironia, por sinal, é a linha condutora da narrativa, e a dissonância entre o humor da forma e a gravidade do conteúdo gera uma intencional sensação de perplexidade. A opção de narrar a quase totalidade da história num parque de diversões pobre e decadente fortalece a sensação de irrealidade.
Um filme indispensável.
Cannito explica que usou o humor porque queria despertar o choque, porque a forma do drama social está tão desgastada que perdeu o impacto, e que “para revelar novamente essa realidade cruel era preciso mostrá-la em uma nova forma” (leia a entrevista na íntegra aqui). Sem dúvida, seu objetivo foi alcançado.
“A polícia perdeu a moral totalmente, tudo devido às emissoras de televisão. Ocorrência policial não pode ser filmada. Na nossa época nós impúnhamos moral e ninguém falava nada para nós”, afirma um policial aposentado, defensor enfático da pena de morte e dos esquadrões da morte (enquanto o filme mostra cenas de tortura e abuso policial na Favela Naval, em Diadema, registradas em 1997).
“Foram 25 anos de guerra honesta, e eu nunca desisti”, diz Lúcio. E resume numa frase a convicção de muitos, não só policiais: “Hoje, infelizmente, o Estado não quer que você faça nada mais do que o que está na lei. Por isso que aumenta a criminalidade”.
Feito em 2007, Jesus no Mundo Maravilha é indispensável para quem quer conhecer melhor a mentalidade de uma parte dos membros da polícia, que enxergam a lei não como fundamento, e sim como empecilho à sua atuação. Claro que nem todos pensam assim. Mas o universo mostrado no filme retrata a visão de mundo de muita gente – policiais e não policiais. É o que basta para confirmar a relevância da obra.
            

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Defender a lei não é defender bandidos

A polícia que não se submete à lei. Criticar os desvios da
instituição, mais que um direito, é um dever da socidade.

               Neste momento de verdadeira guerra civil pelo qual passamos, em que policiais são assassinados em suas horas de folga e as chacinas nas periferias se proliferam, em que a sociedade se sente acuada em meio a uma batalha entre a polícia e o crime organizado – esquecendo-se de que tanto os policiais quanto os bandidos fazem parte dessa mesma sociedade que, portanto, não está do lado de fora dessa guerra – , neste momento em que o ciclo de violência urbana parece se intensificar, caminhando rumo a uma espécie de moto-perpétuo gerador de infindáveis cadáveres perfurados a bala, os defensores do pensamento conservador, cuja melhor síntese é o argumento de que “bandido bom é bandido morto”, buscam justificar a escalada de violência com a premissa de que a polícia só reage a agressões prévias, como se o aparato policial não tivesse também sua parcela de responsabilidade por essa escalada, como se a violência em resposta à violência levasse à paz social, e não, como se vê diariamente nos jornais, a uma violência ainda maior.
            A turma do “bandido bom é bandido morto”, como todo grupo conservador, usa a simplificação como blindagem a qualquer crítica que lhe seja dirigida. Assim, quem não concorda com as chacinas nas periferias, com as execuções extrajudiciais travestidas de “resistências seguidas de mortes”, com o extermínio puro e simples dos marginais, de preferência à noite, em alguma viela escura, sem direito a processo ou a defesa, é gente que “defende bandido”.
Quem comete crime é bandido. Mesmo que esteja fardado.
Ainda que haja – e há – grupos de extermínio, ainda que haja – e há – policiais que, revoltados com a “impunidade” que impera no Brasil (a despeito do número cada vez maior de prisões e da lotação dos estabelecimentos carcerários) e com a legislação que é "muito benevolente" com os criminosos, decidem tomar a lei nas próprias mãos e agir como promotores, juízes e carrascos, ainda que em inúmeras situações a ação desses maus policiais seja uma violação explícita à lei, quem critica essa linha de raciocínio – em outras palavras, quem sustenta a singela ideia de que o policial, como agente público de segurança, deve cumprir a lei – é criticado por ser “defensor de bandido”.
Resumindo, defender o cumprimento da lei significa defender a bandidagem – um raciocínio reducionista e rasteiro, mas cada vez mais difundido nos meios conservadores.
Que fique bem claro: não estou me referindo àquelas situações de confronto aberto entre policiais e bandidos, nas quais os policiais agem, muitas vezes com letalidade, para proteger suas próprias vidas e a sociedade. Certo grau de violência é inerente à ação policial (já que a polícia é a força física do Estado) e muitas vezes é inevitável. Refiro-me às cada vez mais frequentes chacinas e execuções de pessoas que, no momento da morte, não ofereciam qualquer perigo. É o bandido já dominado, o indivíduo “fichado” que está no bar, o trombadinha que incomoda o bairro e é fuzilado quando está dormindo ao relento. É, em suma, a pessoa que deve ser detida, processada e, se for o caso, condenada pelo Poder Judiciário, e não executada na calada da noite como um cachorro louco.
Essa mentalidade de milícia muitas vezes encontra eco e apoio não só em órgãos públicos, que, por trás do discurso midiático de que “quem errou será investigado e punido”, endossa silenciosamente a reação violenta, como também em parcela considerável da sociedade, que, acuada pela criminalidade, assustada pela violência, muitas vezes sem sentido, de que é vítima, e frustrada com o lugar-comum de que “o Brasil é o país da impunidade” (lugar-comum que, por sinal, não explica a superlotação dos presídios), apóia essa política do extermínio. Páginas do Facebook como Admiradores Rota e Eu nasci pra ser Polícia (dentre outras) trazem inúmeros comentários, por parte de seus leitores, que aplaudem – e muitas vezes pedem sem o menor constrangimento – a matança pura e simples.
E quem quer que defenda a ideia de que o policial deve cumprir a lei, prendendo os marginais ao invés de executá-los, é rotulado como “defensor dos bandidos”. São inúmeros os comentários do tipo “leva o bandido pra sua casa”, “criticam a polícia, mas ligam para 190 quando precisam” ou “não gosta da polícia? Chama o Batman”.
Mas defender a lei e defender o crime são duas coisas bem diferentes. E a polícia não está, nem pode jamais se considerar, imune a críticas. A crítica à polícia visa antes de tudo aprimorá-la, torná-la melhor, pela óbvia razão de que precisamos dela. E porque precisamos da polícia, devemos analisar suas posturas, e principalmente seus desvios, de forma tão crítica quanto severa - o que implica o reconhecimento, e não a negação, da sua importância.
Quando um policial atira contra um indivíduo, é o Estado quem está puxando o gatilho. Quando um policial agride desnecessariamente um suspeito, é o poder público quem dá o tapa. Quando o governo coloca uma arma de fogo nas mãos de um homem, essas mãos são as mãos do governo enquanto ele está fardado. E a sociedade tem, mais do que o direito, o dever de fiscalizar a ação desses agentes públicos.
Blindar-se contra críticas com um argumento tão idiota como o de que criticar a polícia é defender o crime não colabora em nada para o aperfeiçoamento dos policiais. Fazer isso é evitar um debate necessário, é isolar a polícia da sociedade, é compactuar com erros estruturais crassos que precisam ser corrigidos. É, em última análise, posicionar-se contra os bons policiais, aqueles que cumprem a lei, que desempenham diariamente sua função (muitas vezes difícil e perigosa, e quase sempre mal remunerada) sem cruzar aquela linha que separa o policial do bandido.
Quem consegue enxergar isso não isenta a polícia da crítica necessária e muitas vezes dura, mesmo que a defenda com unhas e dentes. Quem acha que criticar a polícia é o mesmo que defender bandido deveria estudar mais o assunto, ou procurar outra coisa para fazer: jogar videogame ou montar quebra-cabeças de 5.000 peças, talvez. E deixar esse debate para quem pretende levá-lo a sério.



segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Bungee Jump eleitoral

O domingo numa imagem.


  
          Embora o primeiro turno da eleição para prefeito de São Paulo tenha tido momentos inusitados e surpreendentes, uma análise fria dos acontecimentos mostra que eles ao menos são compreensíveis.
            O favoritismo quase incontestável de Serra no início da campanha deu lugar a um até então inimaginável crescimento de Russomano, que chegou a ultrapassar o tucano. Em 5 de setembro, o Datafolha indicava que Russomano tinha 35% das intenções de voto, contra 21% de Serra e 16% de Haddad, percentuais repetidos em 20 de setembro. O Ibope apontava números similares.
            A percepção inicial dos principais partidos que disputavam a prefeitura – o PSDB de Serra e o PT de Haddad – era de que a candidatura de Russomano não passava de fogo de palha, que assim que tivesse início o horário eleitoral ele começaria a despencar. Não foi o que aconteceu. Até duas semanas atrás, Russomano só fez crescer, e tudo indicava que o azarão ganharia a corrida pela prefeitura.
            De repente, no curtíssimo espaço de duas semanas, Russomano despencou e Serra reassumiu a liderança. A última pesquisa, às vésperas da eleição, mostrou um resultado inédito em São Paulo: os três principais candidatos, Russomano, Serra e Haddad, estavam tecnicamente empatados nas pesquisas, com 20%, 24% e 23%. Ontem, ao final da contagem, Russomano ficou de fora do segundo turno da eleição. Foi como se Serra tivesse saltado de bungee jump ao mesmo tempo em que Russomano pulava numa cama elástica. Haddad também não escapou da montanha-russa. Um parque temático eleitoral, em resumo.
            Mas esse resultado, embora inesperado, é compreensível.
            Russomano cresceu nas pesquisas porque seus principais adversários não o levaram a sério. Mais preocupados um com o outro do que com o azarão, Serra e Haddad gastaram munição pesada entre si, contando com uma queda natural de Russomano nas intenções de voto. Só que essa queda não acontecia. Russomano, esperto, não entrou na briga de Serra e Haddad e aproveitou para correr por fora.
            Mas surgiu um problema: como o sucesso de Russomano atingiu uma dimensão que nem mesmo ele esperava, faltou preparo para lidar com as cobranças que esse sucesso trouxe. Quais eram as propostas de Russomano? Quem elaborou seu plano de governo? Quais suas relações com as igrejas evangélicas?
            Faltou a Russomano a perspicácia para lidar com essas questões. Ele não soube explicar bem o que queria para São Paulo (embora seu “vamos falar de São Paulo?” tenha virado um bordão repetido ad nauseam); questionado sobre quem havia elaborado seu pífio plano de governo, recusou-se a divulgar os nomes dos autores, “para preservá-los de perseguições”, mostrando uma falta de transparência antidemocrática e inadequada no calor de uma eleição em reta final; sua proposta para o transporte coletivo simplesmente matava o Bilhete Único, embora ele, de modo um tanto confuso, afirmasse o contrário.
            Paralelamente a isso, Serra e Haddad se deram conta de que Russomano não cairia naturalmente com a rapidez que lhes era necessária, e pararam de atacar um ao outro, voltando-se para o inimigo comum. A estratégia deu certo. Os dois foram para o segundo turno e tiraram Russomano do páreo.
               Em suma, como ocorre nessas situações, não houve um fator determinante para a virada do jogo, e sim uma série de fatores que, em conjunto, levaram Russomano à lona.
            A cidade ganhou com isso. Serra e Haddad são políticos mais experientes e têm plataformas muito mais sólidas do que Russomano, cujas fragilidades ficaram evidentes na reta final. Quem quer que seja o próximo prefeito de São Paulo, a cidade estará em melhores mãos do que se estivesse sob a tutela de Russomano.
            Mas Russomano também ganhou. Passou de mero azarão a adversário a ser levado em consideração com cuidado. Fortaleceu-se politicamente. E como é jovem, esse resultado – expressivo apesar de tudo – lhe servirá de trampolim e lhe dará fôlego para voos futuros.
            O eleitorado paulistano mostrou, ainda que no último minuto, que sabe que governar uma cidade do tamanho e da complexidade de São Paulo não é tarefa para amador nem para aventureiro. O que nos resta, agora, é torcer para que o eleito, seja Serra ou Haddad, se mostre digno da confiança que nele será depositada. Agora é cruzar os dedos e torcer.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Ted, o ursinho do mal



Ted: um ursinho contra os valores da família brasileira?

            O deputado federal Protógenes Queiroz parece sentir falta dos tempos em que, delegado federal, ignorava leis e violava direitos a fim de se tornar o grande inquisidor dos bandidos de colarinho branco do país. Parece também sentir saudade dos tempos em que o poder público era mais forte e podia dizer à sociedade o que ver e o que não ver no cinema.
            No final de semana passado, nosso mais novo censor resolveu levar o filho de 11 anos para assistir à comédia Ted, de Seth MacFarlene – um filme classificado para maiores de 16 anos. Papai Protógenes deve ter pensado que, embora seu filho tenha bem menos do que 16 anos, assistir ao filme ao lado do grande paladino da justiça brasileira impediria que o menino se deixasse influenciar por valores contrários à moral e aos bons costumes.
            Protógenes saiu do cinema horrorizado, e afirmou na terça-feira (25 de setembro) que pediria aos Ministérios da Justiça e da Cultura que suspendessem a exibição do filme. Por quê? Porque segundo o deputado, o filme “passa a mensagem de que quem consome drogas, não trabalha e não estuda é feliz”. A reação à infeliz declaração do neocensor foi tamanha, e o ridículo de suas afirmações tão óbvio, que ele já voltou atrás. O surto autoritário, aliás, turbinou a bilheteria do filme, o que não deve ter deixado o deputado muito feliz.
            O curioso é que Protógenes afirmou que tinha lido as críticas e resenhas do filme, portanto, sabia do que se tratava. Mas é preciso ter mestrado e doutorado em idiotice para achar que um adolescente de 16 anos ou mais vai começar a se drogar – ou a fazer qualquer outra coisa – porque viu um urso de pelúcia fazendo isso no cinema.
            Aliás, Protógenes, pelo jeito, não vai ao cinema há um bom tempo. Sorte nossa. Se fosse, era capaz de pedir para fechar todos as salas de cinema do Brasil. Vamos seguir o raciocínio do neocensor: Os Mercenários 2 passa a mensagem de que quem vive de matar os outros é feliz; E aí... comeu? passa a mensagem de que quem cai na farra é feliz; On the road – na estrada passa a mensagem de que quem sai por aí viajando, se drogando e transando com quem topar pela frente é feliz. E por aí vai. Censura a todos, então. Tiremos todos de cartaz.
            Mas por que se limitar ao cinema? Avenida Brasil passa a mensagem de que quem é polígamo é feliz; desenhos como Pica-pau e papa-léguas passam a mensagem de que quem engana os outros é feliz; o livro Cinquenta tons de cinza passa a mensagem de que quem se submete a uma relação sadomasoquista é feliz. Censura, censura a tudo isso, em nome da família brasileira!
O deputado Protógenes Queiroz: #chatiado
            Embora as bobagens do neocensor não tenham chance de sucesso, a mentalidade que elas evidenciam encontra eco em muitos aspectos da atual realidade brasileira. A censura tem nos cercado de forma cada vez mais ostensiva.
            Provavelmente somos o único país civilizado em que não se pode escrever a biografia não-autorizada de quem quer que seja. Ou seja, biografia, no Brasil, só se for chapa-branca, supervisionada e aprovada pelo biografado ou por seus parentes. Prateleiras e prateleiras contando a vida de heróis, pois que personagem ou parente dará autorização para um biógrafo narrar aquela prisão por pedofilia ou aquele escândalo de corrupção? “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. O poema em linha reta de Fernando Pessoa já prenunciava o atual mercado de biografias no Brasil.
            O diretor financeiro do Google no Brasil, Edmundo Luiz Pinto Balthazar, foi preso por crimes de desobediência, por não excluir textos do Google e vídeos do Youtube ofensivos a alguns candidatos na atual eleição Brasil afora. Aparentemente escapa à percepção dos juízes que deram essas ordens de prisão que os vídeos podem ser colocados e recolocados no Youtube por particulares, sendo impossível que o diretor financeiro, ou mesmo um grupo grande de funcionários, consiga detectar todos os vídeos que indivíduos postam. Claro que nem os juízes, nem os candidatos ofendidos cogitaram tentar encontrar quem de fato postou os vídeos, tarefa bem mais trabalhosa.
            No começo do ano, o Itamaraty e o Palácio do Planalto vetaram a entrada de membros da equipe do CQC em suas dependências.
            Em 2007, a exposição Heróis, com fotografias de Luiz Garrido, foi proibida na Câmara dos Deputados, em Brasília, por conter fotos da transformista Rogéria.
            Em agosto de 2011, o horroroso filme sérvio A Serbian Film teve sua exibição proibida em todo o Brasil.
            Em 25 de setembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo anunciou que proibiu a exibição no Youtube do trailler do filme A inocência dos muçulmanos (uma das maiores idiotices da história – não digo do cinema, porque é tão ruim que sequer merece essa classificação – , que deveria ter sido solenemente ignorada pelo mundo, e provavelmente seria, não fossem os protestos dos muçulmanos contra o filme) sob pena de multa diária. 
            Os exemplos são inúmeros, e surgem novos a cada dia. Nem a coitada da Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo, escapou. E como já visto por aqui, até um samba-enredo que critica a desocupação do Pinheirinho, como o "Covardia Nacional", pode dar cadeia.
            É claro que a liberdade de expressão não é absoluta e precisa de limites. Mas no Brasil atual os limites vêm se sobrepondo à própria liberdade de tal maneira que, daqui a pouco, até os contos de fada e as canções de ninar vão encontrar um Protógenes que queira proibi-los.
           

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Quatro chineses e um terminal



            
Spielberg imaginou, o Brasil transformou em realidade.

              Na verdade ninguém sabe se eles são mesmo chineses.
            São dois casais de orientais que estão detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, sem poder entrar nem sair do Brasil. A Polícia Federal, embora desconfie que sejam chineses, ainda não conseguiu apurar suas nacionalidades. Eles entraram no Brasil com passaportes coreanos falsos, e se recusam a dizer de onde vieram. Embora tenham sido presos ao chegar ao Galeão, em um voo doméstico vindo de Cumbica, a polícia não conseguiu identificar, pelos nomes constantes dos passaportes que carregavam, em que voo chegaram ao Brasil. É possível que tenham jogado fora os passaportes com que viajaram após passar pela alfândega.
            Como a polícia não sabe de onde eles vieram, não tem como mandá-los de volta. Os quatro estão há três meses numa sala reservada do aeroporto. Por lei, a responsabilidade de mantê-los é da companhia aérea. Como a polícia não foi sequer capaz de identificar em que voo eles chegaram ao Brasil, a manutenção dos viajantes misteriosos ficou a cargo da Gol, que os levou de Cumbica ao Galeão. Além da alimentação, a Gol ainda paga um segurança para monitorá-los.
            Esses fatos já são mais do que suficientes para que se constate o absurdo da situação. A incompetência da Polícia Federal, agravada pela greve iniciada em 7 de agosto, é tamanha que três meses não foram suficientes para descobrir de onde os imigrantes ilegais vieram, embora estejam sob vigilância constante. E atribuir à Gol a responsabilidade pela manutenção dos quatro em razão de um voo doméstico, só porque houve incompetência para descobrir o voo internacional no qual chegaram ao Brasil, é um descalabro.
            Infelizmente o surrealismo da situação não para por aí.
            Os quatro são representados pelo advogado Luiz Fernando Nicolelis, que, segundo a Folha de São Paulo, já impetrou três habeas corpus, todos indeferidos, inclusive pelas instâncias superiores do Judiciário. A justificativa para os indeferimentos é patética: eles não estão presos. A situação alcançou tamanho grau de insanidade que o advogado vem pedindo que a Polícia Federal prenda seus clientes para que ele possa impetrar novo habeas corpus.
            Chegamos, portanto, a uma situação tão tresloucada que o advogado precisa pedir à polícia que prenda seus clientes, para só depois conseguir adotar as providências necessárias para soltá-los.
            É claro que qualquer um identifica esses fatos com aquele filme preguiçoso do Spielberg, O Terminal, em que a personagem de Tom Hanks vive uma situação muito parecida com a dos orientais encurralados em Cumbica.
            Mas há uma outra situação, infelizmente bastante comum no passado brasileiro, muito mais parecida com a dos viajantes misteriosos.
            No período da ditadura, era comum que as pessoas fossem presas sem acusação formal, e que ficassem encarceradas por períodos indeterminados sem saber sequer a razão de suas prisões. Nos momentos mais deploráveis do período, não era raro que juízes e tribunais – o Supremo Tribunal Federal inclusive – voltassem as costas aos injustamente presos, valendo-se de argumentos sem nenhum sentido.
            É exatamente isso o que está acontecendo com os moradores involuntários de Cumbica.
            É inadmissível que essas quatro pessoas fiquem confinadas numa sala reservada por três meses sem que haja acusação formal contra elas. A Polícia Federal afirma que o porte de documento falso não é crime, apenas o uso. Então, se não há indício de crime, por que os quatro ainda estão detidos em Cumbica? Ou a polícia arruma um crime para acusá-los, ou deve soltá-los. Se eles foram detidos no Galeão e não estavam usando os passaportes falsos, sua situação tem que ser vista como a de qualquer turista estrangeiro que tenha perdido os documentos (num assalto, por exemplo).
            Aos juízes e desembargadores que indeferiram os pedidos de habeas corpus porque os estrangeiros “não estão presos”, sugiro que passem três meses em uma sala reservada do aeroporto, vigiados por um segurança, sem poder ir a lugar algum. Encarceramento é encarceramento. Privação de liberdade é privação de liberdade. E o habeas corpus existe para proteger a liberdade, que é um direito, não um amontoado de palavras espalhadas por textos legais. Um magistrado incapaz de enxergar privação de liberdade nessa situação deveria procurar outro emprego.
            O mais grave é que essa prisão (sim, é esta a palavra exata) ilegal está sendo bancada por uma empresa privada, a Gol, que, embora nada tenha a ver com a incompetência da Polícia Federal, já gastou mais de R$ 30.000,00 com a manutenção dos quatro moradores de Cumbica.
            Diga o que quiser a Polícia Federal, o fato é que há quatro estrangeiros detidos há três meses no aeroporto de Cumbica, sem nenhuma acusação formal. E o Poder Judiciário, embora ciente dessa barbaridade, não determina que sejam libertados, apesar dos reiterados pedidos do advogado deles.
            Enquanto a Polícia Federal não se decidir em relação ao cometimento ou não de crime, e o Poder Judiciário mantiver os braços cruzados e os olhos fechados diante dessa violação absurda das leis brasileiras, da Constituição e dos direitos desses quatro estrangeiros, o Brasil pode se considerar de volta aos anos de chumbo. O tratamento dado pelo poder público a essas quatro pessoas, estrangeiras ou não, criminosas ou não, não difere em nada do tratamento dado aos presos políticos durante a ditadura.
            Estarão nossas autoridades com saudade daqueles tempos?