sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Juízes contra a democracia

É o Judiciário que deve servir à sociedade, não o contrário.


            O compositor Renato Bento Luiz criou um samba-enredo chamado “Covardia nacional”, apresentado no carnaval pelo bloco “Acorda Peão”, do Sindicato dos Metalúrgicos. A letra diz o seguinte:

A moradia é um direito constitucional
Atacaram o Pinheirinho, covardia nacional
Alckmin e Cury sujaram de sangue este chão
Promessa de casa é até passar a eleição

Sou vereador da situação
Fiquei quietinho, o Pinheirinho está no chão
Pinheirinho e estudante é um tormento
Se juntaram e derrubaram meu aumento

Desaproprie o Pinheirinho
Dilma vem pra luta agora
Pra mostrar a diferença dos tucanos
Tá na hora

Prefeitura e a Justiça
Comando do batalhão
Mete bala em inocente
E liberta o ladrão

É carnaval e o bandido vai pra farra
Gastar a propina do Naji Nahas

Falou Eliana Calmon
Espalha rápido essa droga
Em São José já tem bandido de toga

Vai ter punição, isto é Brasil
Só que ela vem lá em 1º de abril

A moral desta gente não se mede
Dizia Cazuza, a burguesia fede

            A juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, ingressou com representação criminal contra o compositor, por calúnia, difamação e injúria.
            Após a desastrada operação de desocupação do Pinheirinho, que desalojou mais de 1.500 famílias, o Senador Aloysio Nunes, do PSDB, publicou em 27 de janeiro deste ano um artigo na Folha de São Paulo afirmando que “a operação foi planejada por mais de quatro meses, a pedido da juíza”. A juíza, portanto, preocupou-se mais com a preparação do aparato policial para a retirada das famílias do que com o destino dessa gente. Ou esses mesmos quatro meses que o poder público levou para se preparar para expulsar as famílias não são tempo mais do que suficiente para encontrar um local para realocá-las, mais adequado do que as quadras de futebol sem estrutura alguma em que elas foram jogadas?
            Embora o nome da juíza não seja mencionado em parte alguma da letra, ela enxergou alguma ofensa pessoal no samba e correu para a delegacia. Afinal, que país é esse em que cidadãos podem sair por aí criticando juízes, mesmo que de forma indireta?
            A postura da juíza é um reflexo da visão que o Judiciário paulista tem de sua relação com a sociedade. A despeito das louváveis (e felizmente não poucas) exceções, há um número significativo de juízes e desembargadores paulistas que não querem diálogo com a sociedade a que servem. Não se veem como servidores públicos, mas como majestades encasteladas em seus próprios feudos. Atendem advogados e partes apenas se e quando têm vontade e, embora isso seja proibido, não recebem qualquer punição ou reprimenda.
            O último concurso da Magistratura de São Paulo foi suspenso pelo CNJ, porque as perguntas feitas aos candidatos nas entrevistas pessoais eram simplesmente absurdas. Segundo notícia publicada no site do Estadão em 24 de setembro, “durante as provas orais, que constituem a quarta etapa do concurso e são realizadas em sessões fechadas, sem a presença de público, alguns desembargadores perguntaram a candidatas grávidas se elas ‘não achavam que já começariam a carreira como um estorvo ao Judiciário’. No caso de candidatos vindos do Distrito Federal, desembargadores do TJSP afirmaram que ‘gente de Brasília não costuma se adaptar a São Paulo” e indagaram se eles estavam ‘convictos de seus propósitos’. No decorrer das entrevistas, também houve perguntas sobre a religião dos candidatos, a profissão de suas esposas e a solidez de seus casamentos” (leia a reportagem na íntegra aqui).
A própria existência de uma entrevista pessoal capaz de, por si só, eliminar um candidato (embora o TJSP negue, qualquer “concursando” sabe que na prática a entrevista é, sim, eliminatória – e o próprio ministro Ayres Britto já refutou essa afirmação do tribunal) já demonstra o viés antidemocrático da magistratura paulista. Na fase final do concurso, os critérios perdem a objetividade que deve nortear qualquer certame público. E como recorrer de uma avaliação subjetiva de que não há registro ou mesmo nota?
A ministra do STJ Eliana Calmon, quando presidiu o CNJ, destacou em inúmeras entrevistas a dificuldade de fiscalizar o tribunal paulista, chamando-o de “fechado” e “refratário ao trabalho do CNJ”. Em janeiro, o presidente do TJSP Ivan Sartori chegou a desafiar Eliana a mostrar seu contracheque se quisesse informações sobre os pagamentos dos juízes paulistas. Nas palavras da então corregedora-chefe, referindo-se ao TJSP: “Sabe o dia em que vou inspecionar esse tribunal? No dia em que o Sargento Garcia prender o Zorro.”
            Não se trata de fatos isolados. É claro que toda carreira pública tem as suas figuras caricatas, como o juiz carioca que, em 2004, ganhou uma ação no TJ do Rio que obrigava o porteiro e os condôminos do prédio em que morava, em São Gonçalo, a chamá-lo de “doutor” ou “excelência”. O problema aqui é outro. É perceber que, numa sociedade que valoriza e busca cada vez mais a transparência e a proximidade com os órgãos públicos, o Judiciário paulista parece preservar uma mentalidade medieval, da qual a postura da juíza que responde a críticas com processos criminais e a “entrevista pessoal” dos concursos para juiz (na Bahia, por exemplo, há anos não existe sequer prova oral para o concurso de ingresso na magistratura - e não há qualquer indício de que os juízes baianos sejam piores do que os paulistas por isso) são emblemáticos – e lamentáveis – exemplos.
            Assim como os juízes paulistas mais liberais e comprometidos com os direitos fundamentais fundaram, em 1991, a Associação Juízes para a Democracia, talvez essa outra ala do Judiciário devesse também fundar uma associação para defender suas ideias e valores. Fica a sugestão do nome: Juízes contra a Democracia.

2 comentários:

  1. Como advogada militante há quinze anos, lamento profundamente que ao me entrevistar com um cliente tenha que alertá-lo, além de orientá-lo, que o "seu" caso, acima de um bom trabalho, também dependerá de SORTE. Explico: Vai depender da Vara que cair... Vai depender do entendimento do Juiz... Vai depender da equidade praticada... Enfim... Vai depender de um pouco de SORTE!!! É lamentável ter que dizer isto à um cidadão, que tem no poder Judiciário a autoridade estatal mais próxima de si, já que falar com Vereadores, Deputados e Senadores é muito difícil. E com Prefeitos, Governadores e com o Presidente da República é simplesmente IMPOSSÍVEL. Sobra o Juiz, que ao entender do cidadão irá ouvi-lo e lhe dar alguma razão... Infelizmente, sei que não é assim. Os juízes (ou boa parte deles) não estão muito interessados em ouvir o cidadão que traz suas mazelas para apreciação e decisão daquela Autoridade. Em regra, estão muito mais preocupados e se livrar de mais um processo em suas prateleiras... É triste esse abandono. Lamentável mesmo... Não desisto da profissão, porque ela já me trouxe muitas alegrias, porém, já sem nenhuma ilusão. Hoje não acredito mais em JUSTIÇA. Acredito apenas na LEI e sigo buscando fazer valer os direitos dos meus constituintes.

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  2. Pois é, Ester, nesses mesmos 15 anos também já vi e ouvi coisas de arrepiar os cabelos. Estado de direito, para alguns juízes, deve ser expressão que se decora na fase de concurso e se esquece imediatamente a seguir...

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