Há
poucos dias, um aluno pediu minha opinião sobre o comentário feito por Arnaldo
Jabor na CBN a respeito do livro Não
somos racistas, de Ali Kamel (http://www.youtube.com/watch?v=Y5Jjke0PbVI).
Li o
livro quando foi lançado, em 2006, e o reli agora, pois o tema das
cotas voltou à tona na semana passada, quando o projeto de lei de cotas nas universidades federais aprovado pelo
Congresso foi encaminhado para sanção ou veto da Presidenta Dilma, provocando
protestos e manifestações. Tratarei primeiro do livro, depois do comentário de
Arnaldo Jabor.
A
tese defendida por Ali Kamel – e endossada por Arnaldo Jabor – é (sintetizando
muito) a de que no Brasil não existe um racismo efetivo, pois há muita miscigenação
e muitos semitons entre o branco e o negro. O que há, para Ali Kamel, é
“classismo” – ou seja, discrimina-se o negro não por sua cor, mas por sua
classe social. Um negro bem vestido, educado e rico não será vítima de
preconceito, apenas o pobre (branco ou negro).
O
livro não é nenhum delírio de um lunático reacionário. O autor faz um estudo
aprofundado da obra acadêmica do jovem sociólogo FHC sobre o racismo no Brasil e demonstra como ele se
conduziu, anos depois, na Presidência da República, de acordo com as convicções de sua juventude. A obra analisa com clareza dados colhidos pelo IBGE
sobre a relação entre a cor da pele e os níveis econômico e educacional da
população brasileira, apontando, com razoável coerência, certas falhas
metodológicas que levam a conclusões equivocadas, indevidamente apropriadas por
ideológos de plantão para justificar suas ideias (como a divisão entre brancos e negros, sem a distinção dos pardos). O tempo todo o autor
afirma que não existem raças e que o racismo é um mal. As ideias contidas no
livro são excelentes argumentos para quem é contrário à política de cotas
raciais. Concorde-se ou não com elas, não se pode afirmar que Ali Kamel
escreveu um panfleto raivoso e reacionário.
Não
cabe no post de um blog analisar a fundo os argumentos da obra. Mas destaco as
três razões pelas quais a teoria de Ali Kamel não me convence. Primeiro, uma
obra que pretenda analisar o papel do negro na sociedade brasileira não pode
deixar de lado o substrato histórico que é a causa primeira dos problemas
envolvendo racismo no Brasil. E, nas 143 páginas do livro, não há uma única
menção ao fato de que, com o fim da escravidão, a população negra foi despejada na
sociedade sem bens, sem instrução, sem qualquer apoio do governo e com
pouquíssimo espaço no mercado de trabalho. Segundo, Ali Kamel ataca uma ideia
que não existe. Se o salário, o grau de instrução e a posição dos negros em
geral na sociedade não são iguais aos dos brancos, isso não ocorre porque a sociedade é essencialmente
racista, e sim por conta da circunstância histórica que o livro desconsidera (e que leva, é claro, a posturas racistas). E
terceiro, o Brasil em que Ali Kamel afirma viver não é o mesmo Brasil em que eu
vivo.
Eu
gostaria muito que o Brasil não fosse um país racista, e que o problema com
os negros se restringisse ao “classismo”. Mas, se as coisas são como Ali Kamel
afirma, por que há tão poucos negros em novelas (a não ser que estejam na
cozinha), nos telejornais e programas de auditório (quantos são os
apresentadores negros?), em cargos políticos de relevância (quantos deputados e
senadores negros existem no Brasil?), nas universidades? Quantos negros são
vistos em restaurantes caros, em shopping
centers, em concertos no Teatro Municipal? Quantos, em suma, ocupam posições de destaque na sociedade? E não nos esqueçamos do show de mau gosto dos atuais "humoristas" brasileiros, que acham que comparar negro a macaco é piada.
O
Brasil é miscigenado, sim. Não há só negros e brancos, há inúmeros semitons
entre o branco e o negro – e muitos pardos são tão vítimas de preconceitos
contra os negros. Mas ao contrário do que sustenta o livro, não conheço esse
país em que os mil tons de pele convivem harmoniosamente, celebrando
alegremente a diversidade “racial” (“raças” não existem, como bem lembra Ali
Kamel), enquanto um governo mal intencionado maliciosamente cria um preconceito que não existe
na realidade. Quem dera fosse assim. Mas não é. Perguntei a vários amigos e
alunos negros, alguns muito bem sucedidos na vida, se existe preconceito no
Brasil. A resposta de todos eles foi uma só, e é bem diferente da de Ali Kamel
– que, por sinal, é branco.
Não
vou tratar propriamente da política de cotas, o que será objeto de outro post.
Mas repito: concorde-se ou não com a teoria de Ali Kamel, ela não é um delírio.
É, à sua maneira, bem fundamentada e construída.
Ao
contrário do comentário de Arnaldo Jabor.
Reli
o livro depois de ouvir o comentário. Primeira surpresa: não posso afirmar que
Jabor não leu a obra, mas ele se limita a repetir literalmente o que está na orelha do livro. Como não consta o
nome dele na orelha, só posso deduzir que não foi ele quem a escreveu.
Quanto
às cotas, Jabor critica a “burrice sectária e esquemática da proposta”, afirma
que quem discorda dela é tachado de racista, de ser da elite branca, fala de um
“racismo criado artificialmente” pelo governo e por aí vai.
Tirando
a reprodução ipsis litteris do que
consta na orelha do livro, seu comentário não tem nada a ver com a obra de Ali
Kamel. É um protesto panfletário, furioso e emocional, típico de um adolescente e não de um
jornalista experiente.
Bem,
defendo o sistema de cotas porque acredito que negros e brancos, por razões históricas, disputam uma
corrida com duas linhas de partida diferentes. Reconheço a validade dos
argumentos em sentido contrário, mas discordo deles respeitosamente e tenho
bons argumentos para isso. Como a imensa maioria das pessoas que defendem o
sistema de cotas com quem já conversei, não considero que quem defende o
contrário seja racista. O que faz de mim, então, um burro sectário?
Burrice
é copiar um trecho de uma ideia sem conhecê-la completamente. Burrice é se
fechar em seu próprio mundo e ser incapaz de enxergar pontos de vista
diferentes. Burrice é se apegar a certezas e se recusar a questioná-las.
Arnaldo
Jabor tem textos excelentes, e é uma miséria o que fazem com ele na internet.
Atribuem-lhe indevidamente as maiores barbaridades, frases de autoajuda rasas
como um pires e textos que nem mesmo um analfabeto funcional teria coragem de
assinar. Eu gostaria muito que o comentário sobre o livro de Ali Kamel fosse
uma dessas falsificações. Infelizmente – mais para ele do que para mim – não é.
Esse tema me diz respeito por motivos óbvios. Sou fruto da miscigenação, mas me identifico com a raça negra, essa raça que não existe em tese, mas existe na prática, essa prática que serve de palco para a discriminação. Além disso, faço parte da classe que, segundo os autores citados, não discrimina seus pares, ainda que negros. Discordo frontalmente. Fui discriminada várias vezes, vestida de Armani ou sandálias havianas. Alías, o próprio autor, Ali Kamel, se trai quando diz que, se o negro estiver bem vestido, evidenciar os símbolos de status, ele não será discriminado. Ou seja, o branco pode entrar e sair do jeito que quiser, será sempre aceito ou pelo menos não será rejeitado a priori. O negro não tem essa opção, terá sempre que se vestir de gala para ao supermercado, para não ser confundido com o motorista, segurança ou empregada doméstica. Se isso não é preconceito, não sei mais o que é.
ResponderExcluirAh, esqueci de falar que apesar de tudo, eu não sou a favor das cotas na universidade. Ou melhor, acho que é um paliativo que beira a ineficácia. Acho que não iremos solucionar as desigualdades cronicas que decorrem da impossibilidade dos negros de frequentarem uma escola de base de qualidade. É ai o problema. Implementar cotas no final do percusso educacional não funciona, no meu entender. Continuaremos vendo poucos negros ascendendo socialmente. Beijo.
ResponderExcluirEvie, o tema das cotas me atormentou durante muito tempo. Demorei para definir uma posição, hoje estou convicto da sua (parcial) eficácia, por uma série de razões que não cabem nessa resposta. Mas é um paliativo, uma solução a ser paulatinamente abolida (que palavra pertinente!) na medida em que o ensino de base for melhorando. Se formos PRIMEIRO resolver a base para solucionar o problema, o benefício só chegará para a população negra daqui a meio século - sendo otimista.
ResponderExcluirLi recentemente um texto, se não me engano postado por vc mesmo René Zamlutti e coincide com o fato, Gosto de certos comentários do Cineasta, porém ja estou exausto dos "Catedráticos" de plantão tentando e fazendo opinião pública, a tal ponto de ouvir de um negro que a política de cotas é segregativa, nenhum problema com a opinião se fosse formada conscientemente e não "comprada" como produto barato de um marketing cruel, e me desculpem o extremismo: de uma elite branca sim, a mesma que ingressa com pedidos a justiça da constitucionalidade da política racial, a mesma que faz alunos do Curso de Direito de uma renomada Instituição de Ensino Superior paulistana parar a Consolação em manifestação contra o ENEM.
ResponderExcluirSófaltou dizer que o Texto é da Marilena Chauí.
ResponderExcluirRené, meu amigo
ResponderExcluirConcordo com vc em muito da análise, embora não tenha lido o livro e me recuse a ver o comentário de Jabor (porque há um limite para a nossa capacidade de digerir). Mas acho que vc esquece de um ponto fundamental, que é a disputa simbólica. O racismo não existe por tratar-se de uma diferença de classe social herdada de uma libertação "mal-feita" dos escravos. Existe porque, desde seu início, a escravidão foi justificada por tratar-se do subjugo de uma raça inferior, primitiva, sem capacidade de desenvolver-se por si nem capacidade de crer em Deus. Essa é a ideia que persiste, mesmo que de forma menos explícita. Os negros não são discriminados porque são pobres - há preconceito de classe, obviamente, mas este não é o ponto principal -, mas porque ainda são considerados "inferiores": seus cabelos são mais "feios" ou "ruins", eles não se encaixam nos modelos nacionais de beleza e seus atributos valorizados são justamente os físicos (que os aproximariam de sua natureza "primitiva"). Assim, há, ainda hoje, uma disputa sobre valores hegemônicos e as cotas cumprem um papel não apenas econômico, mas de povoar todos os círculos - econômicos, políticos, culturais - com a diversidade brasileira, para que seja cada vez mais difícil negar a importância dessa diversidade ou afirmar valores "puristas".
Em tempo: o livro de Kamel pode não ser uma obra "fanática reacionária", mas com certeza é reacionária. E, de novo, vc tem razão: em geral as criticas e esforços mais veementes contra as cotas são de brancos. Uma vez, ainda querendo formar um posicionamento sobre a questão, perguntei a um amigo de pele clara e traços evidentemente negros, como seria possível o governo dizer se ele era negro ou não. A resposta: "o governo eu não sei, mas no carnaval os policiais sabem direitinho quem é negro e quem não é".
Grande mestre Iuri, não esqueci da disputa simbólica, não. Aliás, ela é o cerne do meu argumento. Dizer que o Brasil é racista sim é afirmar que há muitos brancos que se consideram biologicamente/racialmente superiores aos negros. Ainda quero escrever bastante sobre as cotas, eu e os alunos temos discutido muito esse assunto, inclusive depois que a aula acaba (o que me alegra muito, pois mostra o interesse do pessoal em se informar para firmar uma posição), mas postagem de blog é, como você sabe, algo miseravelmente curto. Ainda assim voltarei ao tema em breve - e acredito que mais de uma vez. E sempre vou querer saber sua opinião. Abração!
ResponderExcluirAh, e o seu amigo está certíssimo.
Acho lindo isso, só branco é racista e o resto das pessoas são todas boazinhas e coitadinhas!
ResponderExcluirO racismo está em toda parte, em todos o níveis sociais, todas as "raças", e é cruel! Porém não podemos acreditar que todos os brasileiros, ou a maioria deles, são racistas, bem como não devemos utilizarmos de algo tão perverso em benefício próprio. O racismo não se combate sendo racista. Por vezes, desejamos a morte de estupradores, acreditamos ser certo "roubar" do Estado, ou coisas parecidas, mas devemos lutar contra esses sentimentos. Em nossa Constituição Federal, princípios como o da igualdade e do combate ao racismo, são totalmente ignorados com ações afirmativas como essas das cotas. Não concordo que fechem os olhos para a situação do negro no Brasil, porém poderiam ser resolvidas de outra forma. O fato de possuírem bem menos negros em universidades não está diretamente ligado ao racismo (embora ele esteja muito presente no ambiente universitário), muito menos a competência intelectual do negro, mas pelo fato de a maioria da população negra pertencer a classes sociais mais baixas, e com isso serem muito mais atingidos pela omissão do poder público na área educacional (entre outras). E como por conta da história do negro no Brasil, onde ele foi abandonado a sua própria sorte, sofrendo além do desprezo daqueles que se sentiam superiores por suas "raças", as dificuldades financeiras das quais até hoje se refletem em nossa sociedade. Algo que seria a meu ver, adequado a tal situação seria a cota para estudantes de escolas públicas, em percentual a ser calculado com base em dados de institutos de pesquisa como o IBGE, onde o problema do ensino superior atenderia não apenas a inclusão de negros, e sim a inclusão social, que além de promover uma melhor proporcionalidade de "raças" e classes nos centros universitários, não ferindo assim aos princípios fundamentais de nosso Estado e não promovendo mais racismo. Lembrando que essa seria ainda uma medida paliativa ao problema da educação e paralelamente ao do racismo, mas me parece o melhor caminho. Devemos lutar contra o racismo e não apoiá-lo!!!O negro deve ocupar seu espaço, mas não por ser negro!!!Os erros cometidos no passado devem servir para que não erremos mais, e não justificar nossos erros!!!
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