quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O palhaço ri por último


Il Pagliacci: o melhor deputado federal do Brasil?

              Subitamente, uma bigorna despenca dos céus e esmaga nossas certezas.
            A eleição de Tiririca para a Câmara dos Deputados entrou para o imaginário dos “esclarecidos” como a prova viva de que “povo não sabe votar”. Embora os votos desses “esclarecidos” não sejam qualitativamente melhores do que os do “povão” (ou “povinho”, para os que preferem um termo ainda mais pejorativo e segregador) – tema, aliás, do segundo post desse blog, "O cisco e a trave" – as circunstâncias levavam a crer que Tiririca não tinha condições de ser um bom parlamentar. Havia fundadas suspeitas de que o palhaço era analfabeto e em sua própria campanha o então candidato afirmava categoricamente não saber o que fazia um deputado federal. Como se não fosse suficiente, suas propagandas eram marcadas por um tom jocoso e descompromissado, e não havia qualquer projeto político sério à vista.
            Tudo sugeria que sua atuação como parlamentar seria uma catástrofe. Era o que muitos de nós pensávamos e esperávamos.
            Estávamos completamente enganados.
            Somos mulheres de malandro do senso comum e da racionalidade estrita. Não importa o quanto esses dois nos traiam, sempre voltamos a eles, sempre lhes damos novas chances de nos enganar. Tiririca, de quem se esperava o pior, acaba de ser indicado para o Prêmio Congresso em Foco, que elege os 25 melhores deputados federais do ano.
            Na atual edição do prêmio (a sétima), 186 jornalistas que cobrem o Congresso Nacional votaram na indicação dos 25 deputados selecionados. A segunda fase da votação, que vai até 15 de outubro, ficará a cargo dos internautas (a lista completa pode ser conferida aqui). Tiririca, portanto, pode ser eleito o melhor deputado federal do Brasil.
        Antes que se pense em qualquer forma de favorecimento ou se alegue falta de seriedade do prêmio, é importante analisar os dados levantados sobre o parlamentar Tiririca.
            Segundo o Congresso em Foco, apenas nove deputados registraram presença em todas as 171 seções de votação na Câmara. Tiririca foi um deles. Participou de 106 das 120 reuniões da Comissão de Educação e Cultura, mesmo não sendo obrigatória sua presença. Apresentou sete projetos de lei, referentes ao circo e à educação (um deles, que acaba de ser encaminhado à CCJ da Câmara, propõe a criação de um programa de amparo social a profissionais circenses). Não discursou no plenário uma única vez. E não há qualquer denúncia envolvendo sua pessoa (o regulamento do prêmio proíbe expressamente a indicação de parlamentares que respondam a processos criminais perante o STF, a processos nos conselhos de ética da Câmara ou do Senado ou que tenham sido denunciados por ofensas graves a direitos humanos).
            Por critérios puramente objetivos, Tiririca atropelou as convicções mais arraigadas da dita “classe pensante”. Pisoteou-as com aqueles sapatos enormes de palhaço. E não há contra-argumento possível aos números apresentados. Gostemos ou não da presença do palhaço no Congresso Nacional, é inegável que esses números mostram que ele vem se saindo melhor do que muitos “políticos profissionais” que receberam votos "sérios" e que lá estão para garantir seus interesses pessoais (no mais das vezes ilícitos) e só.
            Se o Poder Legislativo, em especial a Câmara dos Deputados, deve ser formado por representantes do povo, é evidente que os parlamentares não precisam ser grandes especialistas em processo legislativo. Nem é o que se deve esperar deles. Essencial é que representem a parcela da população que neles se vê espelhada ou neles reconhece valores e ideais que pretende ver defendidos, dos extremistas que votam em Jair Bolsonaro (RJ) aos evangélicos que votam em Marco Feliciano (SP) e Lauriete (ES), dos ecologistas que votam em Fábio Ramalho (MG) aos cadeirantes que votam em Mara Gabrilli (SP). Para o lado técnico, a legística e o juridiquês, existe a verba de gabinete, que serve (ou deveria servir) para a contratação dos assessores que darão às ideias e propostas do parlamentar a forma tecnicamente adequada. Para isso existem também as comissões de constituição e justiça das duas casas legislativas. Quem acha que é preciso uma formação técnica ou acadêmica sólida (como, por exemplo, a de um Paulo Maluf) para ser parlamentar não compreende a dinâmica básica da democracia representativa. E não olha para a realidade nacional.
             É óbvio que seria melhor se o parlamentar conhecesse a fundo não só os problemas nacionais que terá de discutir com seus colegas como também a delicada dinâmica do xadrez político, aspectos da atividade parlamentar que Tiririca aparentemente não domina. Também é óbvio que o parâmetro quantitativo (quantidade de presenças etc.) pouco diz sobre o qualitativo, igualmente importante. Apesar disso, Tiririca indiscutivelmente superou as expectativas a seu respeito. Quantos "candidatos-piada" (dos quais Enéas Carneiro e Clodovil Hernandez são exemplos notórios) se destacaram por um trabalho minimamente decente após eleitos? Até nesse ineditismo o palhaço surpreendeu.
            Tiririca representa uma parcela da população que enxerga nele algo com que se identifica. É o suficiente para justificar sua presença no Congresso (ao menos tanto quanto a de gente muito pior do que ele, e profissionalizada no assalto aos cofres públicos). E é inegável que ele está se saindo muito melhor do que todos (provavelmente até seus eleitores) esperavam.
            Nada disso altera o fato de que o voto dado a título de piada, assim como o voto dado ao "político profissional" de quem nada se sabe além do que é mostrado em 30 segundos de horário eleitoral (nada mais, portanto, do que um produto cujo conteúdo se desconhece), constituem um problema gravíssimo do nosso sistema representativo, consequência da imaturidade de nossa consciência cidadã, ainda em (lento) processo de construção. Só o tempo será capaz de, aos poucos, fazer com que a população como um todo se dê conta da importância e da seriedade do voto.
            Enquanto isso não acontece, o voto, mesmo mal dado, pode levar a boas surpresas como a atuação de Tiririca na Câmara, no mínimo mais correta do que a da maioria de seus colegas. 
           Resta torcer para que os demais deputados – aqueles que têm ficha suja, que estão sempre ausentes, que não apresentam nenhum projeto – se espelhem no “padrão-Tiririca” e, principalmente, para que não ocorra justamente o contrário.

8 comentários:

  1. Pois é René, as aparências enganaram.
    Tiririca tem se mostrado bem mais que um mero "Cacareco".
    Parafraseando Sartre, "Cacareco são os outros".
    Aproveito para cumprimentá-lo pelo Blog.
    Excelente iniciativa e conteúdo.

    Márcia Semer

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  2. Márcia, que alegria vê-la por aqui! Obrigado por visitar o blog, pelo elogio e pelo comentário. Muito boa a paráfrase sartreana, perfeitamente adequada ao surrealismo de nossos tempos modernos. Do jeito que anda o nível dos nossos parlamentares, talvez até o próprio Cacareco fizesse um trabalho melhor. Abraço!

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  3. Oi René!

    Parabéns pelo blog! Adorei...
    Abs
    Fabiana Mulato

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  4. Obrigado, Fabiana. Fico feliz que tenha gostado. Um abraço!

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  5. Boa Tarde!

    Iniciei a leitura por conta de um tema, passei por outro, outro, outro... e quando me dei conta do tempo, o tempo fluiu sem que percebesse.

    Uma ótima e agradável leitura.

    Parabéns!

    Sinto me honrado em ter partilhado por um bom tempo de uma competente companhia.

    Abraços, meu amigo.

    Hélio Araújo de Lima

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  6. Obrigado, Hélio. Amizade não diminui com a distância, você sabe. Um forte abraço!

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  7. Parabéns meu caro.
    A postura do Tiririca expõe algo que não se aprende em Academias (contrastando com o que você brilhantemente relatou a respeito das formações acadêmicas da maioria dos "políticos profissionais"); trata-se de CARÁTER e isso vem de berço. Sem essa virtude, não podemos esperar grandes coisas de alguém por mais culto que seja.
    Prova clara de que não precisamos de representantes que esbanjem eloquência ou intelectualidade; mas o mínimo dessa virtude atualmente tão escassa, especialmente no meio político.
    Imenso abraço.
    Evangivaldo Ferreira

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  8. Obrigado, Evangivaldo. Como eu escrevi, nosso senso comum pode nos enganar, e nos engana com frequência. Felizmente a realidade nos dá esses tapas na cara de vez em quando. A esperança é que aprendamos com eles.

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