Jacira Sampaio, a Tia Nastácia da versão do Sítio do Picapau Amarelo dos anos 70/80. |
Ontem à noite, no gabinete do
ministro Luiz Fux, do STF, reuniram-se membros do MEC, do Instituto de
Advocacia Racial (IARA) e o técnico em gestão educacional Antonio Gomes da
Costa Neto, para discutir a adoção do livro Caçadas
de Pedrinho, de Monteiro Lobato, pelo Programa Nacional Biblioteca na
Escola (PNBE). O IARA e Costa Neto impetraram um mandado de segurança para
retirar a obra do PNBE, por conta das expressões racistas que Monteiro Lobato
usa para se referir à personagem Tia Nastácia, do Sítio do Picapau Amarelo, tais como “macaca de carvão”.
Para
o MEC, uma nota explicativa, contextualizando o enfoque (inegavelmente racista)
da obra – que, é bom lembrar, foi escrita na década de 30 – é alerta suficiente
para os alunos. O IARA e Costa Neto informaram à imprensa que podem desistir da
ação se o MEC adotar medidas mais concretas, como a capacitação dos professores
para explicar a obra aos alunos.
Pergunto-me
que tipo de qualificação seria necessária para que um professor lidasse com o
tema do racismo em salas de aula. Vendo por outro ângulo: um professor que não
saiba discutir racismo com uma sala de aula pode ser professor?
Monteiro Lobato |
Monteiro
Lobato era não só racista – se alguém duvida, basta ler O Presidente Negro, seu único romance para adultos, no qual defende
a eugenia e critica a miscigenação – como também reacionário de carteirinha. Em
seu artigo Paranoia ou mistificação,
de 1917, atacou a segunda exposição de Anita Malfati com ferocidade,
equiparando seus “quadrinhos” a caricaturas e tornando-a mártir dos
modernistas. Nos inúmeros livros do Sítio
do Picapau Amarelo, as duas únicas personagens negras “fixas” são Tia
Nastácia e o Saci. E não é só em Caçadas de Pedrinho que Tia Nastácia é tratada de forma racista. No segundo volume de Reinações de Narizinho, por exemplo, há o seguinte diálogo:
Todos tomaram café, menos Cinderela.
- Só tomo leite - explicou a linda princesa. - Tenho medo de que o café me deixe morena.
- Faz muito bem - disse Emília. - Foi de tanto tomar café que Tia Nastácia ficou preta assim...
É
claro que é preciso contextualizar as obras de arte, principalmente quando
apresentadas a crianças. É claro que outros livros da coleção do Sítio, que não contivessem expressões
racistas tão evidentes, poderiam ter sido adotados. Mas acreditar que o poder
público pode elaborar uma orientação normativa geral, válida para os quatro
cantos do país, para capacitar professores a lidar com o racismo é uma
ingenuidade. Será que um professor de Santa Catarina deve lidar com o racismo
em sala de aula nos mesmos termos que um professor do Rio Grande do Norte? Acredito que não. As abordagens têm de ser adaptadas às realidades com as quais
o professor lida.
É também ingenuidade achar que uma criança se tornará mais (ou menos) racista por ter lido Caçadas de Pedrinho.
Racismo
não é algo que surge da leitura de um livro infantil, nem algo que se combata
de forma simplista. É um sentimento (não é possível entender o racismo como algo racional) de tal modo entranhado na estrutura social que seu
combate exige uma atuação conjunta de pais, do Estado e da sociedade como um
todo.
E não há nada pior, para
lidar com um problema, do que fingir que ele não existe. Esconder o preconceito presente em obras de arte não faz com que esse preconceito desapareça. A análise
do contexto histórico e cultural faz parte da compreensão de qualquer obra. Mas é óbvio que a luta contra os preconceitos não pode descambar para o ridículo. Há alguns anos foi lançada nos EUA uma versão “reeditada”
da Bíblia (um dos livros mais misóginos da história da humanidade) em que Deus era sempre chamado de God-Godess,
He-She etc., porque, para os
editores, tratar Deus como um personagem masculino era machismo. Em fevereiro
deste ano, o Ministério Público Federal tentou tirar de circulação o dicionário
Houaiss, porque seus editores se recusaram a mudar o verbete cigano, que conteria expressões
“pejorativas e preconceituosas” (deveria ser tirado de circulação também Dom Casmurro, de Machado de Assis, cuja
personagem Capitu é descrita com “olhos
de cigana oblíqua e dissimulada”?). Os exemplos são inúmeros.
E por acaso as crianças eventualmente
poupadas da leitura de Caçadas de
Pedrinho também serão poupadas de marchinhas de carnaval como O teu cabelo não nega (“mas como a cor
não pega, mulata, mulata eu quero teu amor”), dos personagens homossexuais das
novelas e programas de TV (praticamente todos caricaturais – o que é, claro,
uma forma de preconceito), da leitura da Bíblia (indiscutivelmente misógina), dos filmes americanos em que o vilão é sempre o
estrangeiro, geralmente árabe, agora que os russos estão fora de moda
(xenofobia pura)? Nesse mundo em que os mais diversos preconceitos saltam aos
olhos, vindos de todas as direções, proibir a distribuição de Caçadas de Pedrinho ou bolar uma
estratégia para “capacitar professores” a lidar com o racismo implícito (ou
explícito) na obra – o que me parece inviável do ponto de vista pragmático –
vai resolver algum problema?
Há muito a ser feito para
combater os inúmeros preconceitos que existem na sociedade. A iniciativa da
IARA, embora bem intencionada, não vai ter qualquer resultado prático. Ninguém que não
seja racista passará a sê-lo por ler Caçadas
de Pedrinho. Nenhum racista deixará de sê-lo (ou será menos racista) por não ter lido o livro. E
nenhum adulto, professor ou não, precisa receber capacitação especial (o que quer que isso signifique) para
explicar a uma criança que o racismo é um mal terrível a ser combatido.
Qualquer adulto minimamente instruído sabe disso. Quanto aos (inúmeros) adultos
racistas, de que lhes serviria qualquer capacitação vinda do MEC?
Diz o ditado que a maior
artimanha do diabo é convencer os outros de que ele não existe. A pior forma de
lidar com o preconceito é escondê-lo e fingir que ele não está lá. Livros,
filmes, músicas, qualquer manifestação de pensamento tem de ser entendida à luz
de seu tempo e de suas circunstâncias. Ignorar isso é tentar apagar o passado.
E como se sabe, quem apaga o passado tende a repetir, no futuro, erros já cometidos.
Olá René, gostei desta matéria, porém não compreendi este trecho: " A análise do contexto histórico e cultural faz parte da compreensão de qualquer obra. Mas é óbvio que a luta contra os preconceitos não pode descambar para o ridículo." pode me explicar por favor?
ResponderExcluirOlá, Ground. Obrigado pela visita ao blog e pelo comentário. Fico feliz que você tenha gostado do post.
ResponderExcluirQuanto à explicação, tomemos o próprio Monteiro Lobato como exemplo: para compreender "Caçadas de Pedrinho" adequadamente, é preciso que se saiba que a obra é da década de 30, período em que o racismo era mais enraizado na sociedade do que é hoje. Também é bom ler a obra tendo em mente o fato de que Monteiro Lobato era um sujeito conservador e meio racista. Apesar disso, entendo que não cabe censurar ou alterar qualquer obra de arte, mesmo que contenha expressões racistas, porque toda obra tem a marca do seu tempo. Querer editar livros clássicos, suprimindo trechos hoje considerados "politicamente incorretos" é, a meu ver, descambar para o ridículo. Acredito que não se combate o preconceito escondendo-o ou fingindo que ele não existe, e sim analisando suas circunstâncias e apresentando argumentos racionais para demonstrar nosso ponto de vista.
Espero ter conseguido esclarecer sua dúvida. Um abraço.