É o Judiciário que deve servir à sociedade, não o contrário. |
O compositor Renato Bento Luiz criou um samba-enredo chamado “Covardia nacional”, apresentado no carnaval pelo bloco “Acorda Peão”, do Sindicato dos Metalúrgicos. A letra diz o seguinte:
A
moradia é um direito constitucional
Atacaram
o Pinheirinho, covardia nacional
Alckmin
e Cury sujaram de sangue este chão
Promessa
de casa é até passar a eleição
Sou
vereador da situação
Fiquei
quietinho, o Pinheirinho está no chão
Pinheirinho
e estudante é um tormento
Se
juntaram e derrubaram meu aumento
Desaproprie
o Pinheirinho
Dilma
vem pra luta agora
Pra
mostrar a diferença dos tucanos
Tá
na hora
Prefeitura
e a Justiça
Comando
do batalhão
Mete
bala em inocente
E
liberta o ladrão
É
carnaval e o bandido vai pra farra
Gastar
a propina do Naji Nahas
Falou
Eliana Calmon
Espalha
rápido essa droga
Em
São José já tem bandido de toga
Vai
ter punição, isto é Brasil
Só
que ela vem lá em 1º de abril
A
moral desta gente não se mede
Dizia
Cazuza, a burguesia fede
A
juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, ingressou com
representação criminal contra o compositor, por calúnia, difamação e injúria.
Após
a desastrada operação de desocupação do Pinheirinho, que desalojou mais de
1.500 famílias, o Senador Aloysio Nunes, do PSDB, publicou em 27 de janeiro
deste ano um artigo na Folha de São Paulo afirmando que “a operação foi planejada por mais de quatro meses, a pedido da juíza”.
A juíza, portanto, preocupou-se mais com a preparação do aparato policial para
a retirada das famílias do que com o destino dessa gente. Ou esses mesmos
quatro meses que o poder público levou para se preparar para expulsar as
famílias não são tempo mais do que suficiente para encontrar um local para
realocá-las, mais adequado do que as quadras de futebol sem estrutura alguma em
que elas foram jogadas?
Embora
o nome da juíza não seja mencionado em parte alguma da letra, ela enxergou
alguma ofensa pessoal no samba e correu para a delegacia. Afinal, que país é
esse em que cidadãos podem sair por aí criticando juízes, mesmo que de forma
indireta?
A
postura da juíza é um reflexo da visão que o Judiciário paulista tem de sua
relação com a sociedade. A despeito das louváveis (e felizmente não poucas) exceções, há um número significativo de juízes e desembargadores
paulistas que não querem diálogo com a sociedade a que servem. Não se veem como servidores
públicos, mas como majestades encasteladas em seus próprios feudos. Atendem
advogados e partes apenas se e quando têm vontade e, embora isso seja proibido,
não recebem qualquer punição ou reprimenda.
O
último concurso da Magistratura de São Paulo foi suspenso pelo CNJ, porque as
perguntas feitas aos candidatos nas entrevistas pessoais eram simplesmente
absurdas. Segundo notícia publicada no site do Estadão em 24 de setembro, “durante as provas orais, que constituem a
quarta etapa do concurso e são realizadas em sessões fechadas, sem a presença
de público, alguns desembargadores perguntaram a candidatas grávidas se elas
‘não achavam que já começariam a carreira como um estorvo ao Judiciário’. No
caso de candidatos vindos do Distrito Federal, desembargadores do TJSP
afirmaram que ‘gente de Brasília não costuma se adaptar a São Paulo” e
indagaram se eles estavam ‘convictos de seus propósitos’. No decorrer das
entrevistas, também houve perguntas sobre a religião dos candidatos, a
profissão de suas esposas e a solidez de seus casamentos” (leia a
reportagem na íntegra aqui).
A própria existência de uma
entrevista pessoal capaz de, por si só, eliminar um candidato (embora o TJSP
negue, qualquer “concursando” sabe que na prática a entrevista é, sim, eliminatória
– e o próprio ministro Ayres Britto já refutou essa afirmação do tribunal) já demonstra o
viés antidemocrático da magistratura paulista. Na fase final do concurso, os
critérios perdem a objetividade que deve nortear qualquer certame público. E como
recorrer de uma avaliação subjetiva de que não há registro ou mesmo nota?
A ministra do STJ Eliana
Calmon, quando presidiu o CNJ, destacou em inúmeras entrevistas a dificuldade
de fiscalizar o tribunal paulista, chamando-o de “fechado” e “refratário ao
trabalho do CNJ”. Em janeiro, o presidente do TJSP Ivan Sartori chegou a
desafiar Eliana a mostrar seu contracheque se quisesse informações sobre os
pagamentos dos juízes paulistas. Nas palavras da então corregedora-chefe,
referindo-se ao TJSP: “Sabe o dia em que vou inspecionar esse tribunal? No dia
em que o Sargento Garcia prender o Zorro.”
Não
se trata de fatos isolados. É claro que toda carreira pública tem as suas
figuras caricatas, como o juiz carioca que, em 2004, ganhou uma ação no TJ do
Rio que obrigava o porteiro e os condôminos do prédio em que morava, em São
Gonçalo, a chamá-lo de “doutor” ou “excelência”. O problema aqui é outro. É
perceber que, numa sociedade que valoriza e busca cada vez mais a transparência
e a proximidade com os órgãos públicos, o Judiciário paulista parece preservar
uma mentalidade medieval, da qual a postura da juíza que responde a críticas
com processos criminais e a “entrevista pessoal” dos concursos para juiz (na
Bahia, por exemplo, há anos não existe sequer prova oral para o concurso de ingresso
na magistratura - e não há qualquer indício de que os juízes baianos sejam piores do que os paulistas por isso) são emblemáticos – e lamentáveis – exemplos.
Assim
como os juízes paulistas mais liberais e comprometidos com os direitos fundamentais
fundaram, em 1991, a Associação Juízes para a Democracia, talvez essa outra ala
do Judiciário devesse também fundar uma associação para defender suas
ideias e valores. Fica a sugestão do nome: Juízes contra a Democracia.